segunda-feira, 9 de setembro de 2019

A sede


 Sempre gostei de bebidas quentes, desde criança. A origem deste gosto, tão caro aos ingleses, em minha pessoa me parece incerta. Talvez ainda feto informe tenha me afeito ao líquido amniótico, este verdadeiro caldo da vida. Talvez, já infante, o contato com outras bebidas que o engenho humano possibilita seria a verdadeira chave de meu gosto peculiar. Li certa vez que, em quase todas as línguas, as palavras para chá se assemelham, dada a origem comum da difusão deste hábito no sul da China. O certo é que, em polonês, herbata é o termo, e não guarda muitas relações com outros vocábulos, como Tea, Thé ou Tee.

            O mais certo, longe das genealogias bambas, é que o chá foi a continuação de meu vício. Tomava chás de todos os gêneros, de ervas, de legumes, meros caldos, sopas. Nada poderia se interpor entre um homem e sua fixação. Para mim, era necessário sempre mais, e o mero ritual dos chá das cinco eu transformava em uma verdadeira compulsão por me brindar com chá a todo instante, não só de ervas, como dito.

            Meu jantares, ainda na infância, eram sempre regados a sopas. Nunca gaspacho, esta verdadeira heresia ibérica, mas, sim, sopas muito quentes, sem sólidos flutuando, ao contrário: gostava de tudo bem batido, bem homogêneo. Dizem que o universo já foi homogêneo e que tende à homogeneidade, quando a cobra comerá o rabo e a energia se esvairá. Estes impulsos primitivos me guiavam, ainda que inconscientes, na busca pela melhor bebida quente.

            Nascendo os dentes do juízo, e, agora, senhor de minha vida, pude dar vazão acentuada aos meus instintos. Lenta mas firmamente fui me guiando na experimentação de outros tipos de bebidas quentes. Se antes, sopas e caldos eram meu ápice, agora o perigoso álcool se assomava. Como diz Baudelaire, devemos sempre nos embriagar, se não de álcool, de vida. Eu unia a alga com o touro, tal qual Lorca, e me satisfazia com os prazeres que os etílicos podem nos proporcionar.

            Não me confundam com um relés alcoólatra. Não bebia porque era líquido, à moda da tirada de Jânio, mas porque era quente, dando vida ao esqueleto. Como se sabe, em alguns idiomas as bebidas alcoólicas são conhecidas como “spirits”, exatamente porque nos concedem ânimo, dando forças para que a carcomida carcaça cotidiana possa ir adiante, mais uma hora, mais alguns dias. Bebia exatamente para buscar o calor que a bebida, sendo energética, podia proporcionar.

            Eu possuía meu trabalho, estudava, namorava. Mantinha relações humanas normais. Mas a curiosidade é o maior mal e o maior bem do homem. Pela curiosidade nos tornamos a espécie dominante do planeta, quiçá do cosmos; pela mesma curiosidade devemos presas do infortúnio e do desconhecido, afinal, nos expomos a ele. Quem poderia imaginar que, em minha vida de dipsômano quente eu iria me entregar ao inaudito, ao misterioso, ao absolutamente novo, ao menos para mim?

            Um dia, em minha casa, passando pelos canais de televisão, vi uma disputa pela sobrevivência levada aos últimos níveis. Não, nada de corpos dilacerados, mas homens comendo os piores insetos, se sujeito, a troco do vil metal, à situações perigosas, à infâmias mil. Um destes acintes consistia em beber sua própria urina. Terminado o programa, fui me deitar, a fim de dormir e, no dia seguinte, contribuir como produtivo cidadão de nossa sociedade de capitalismo periférico brutal. Mas o sono não vinha. Minha cabeça rodava entre imagens, provenientes de um sonho lúcido, onde eu invadia a privada de meus vizinhos objetivando coletar o mel de seu canal excretor. Somente depois de me fartar com outras bebidas quentes, como nossa boa e velha branquinha, consegui encontrar a paz e me adormecer.

            Mas não foi vitória, somente uma trégua. Dias se passavam e eu era tomado por um impulso crescente de tomar minha própria urina. A idéia me repugnava, eu a rejeitava fisicamente, sentindo fortes ânsias de vômitos quando era chegada a hora de mijar. Se o inferno realmente existir, e tivermos a infelicidade de descer aos domínios do Tinhoso, haverá a hora em que mesmo ele, tornado nossa residência, nos assomará como agradável, e as brasas escorchantes se assemelharão ao fogo de um isqueiro. Assim, com o tempo, fui me acostumando com a idéia, e o que eram náuseas logo se tornou o mais puro desejo. A cachaça, o uísque, o vinho, tudo isso se assemelhava em meus pensamentos a traques, quando as bombas atômicas eram produzidas de hora em hora por mim.

            Destarte, me entreguei ao desejo. Em outra madrugada de insônia entreguei-me a tragar o tão cobiçado néctar. Minha primeira reação foi a do sublime. Kant, em um de seus livros, descreve o sublime como a sensação de se estar diante de algo muito maior que nós mesmos, infinitamente grande, como o mar revolto ou uma grande montanha. Nunca estive em montanhas, mas certamente as sensações devem guardar relações. Aquele caldo de mim mesmo, quente, bem líquido, de cores e fragrâncias variadas, tudo isso me preenche de tal forma que posso dizer que já freqüentei os céus.

            Hoje me vejo na solitária posição de me tornar amigo de cadeirantes apenas para poder afanar suas garrafas de urina e vertê-las em minha goela. Invado banheiros e capto, no auge de minha dipsomania, o suprassumo de desconhecidos, somente para poder apreciá-los com uma boa refeição. Fermento a urina para produzir urina alcoólica e assim, me embriagar duplamente.

            Os dias passam. Nunca conhecemos suficientemente nosso próprio eu, senão diante de experiências extremas. Dizem que a urina possui poderes curativos. Não o posso afirmar medicalmente, mas, em termos de boaventurança, certamente, todos nós guardamos o paraíso em  nossa fábrica daquele líquido dourado com ouro, que inspira os melhores sentimentos e possui o aroma de um deus.

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