sábado, 29 de agosto de 2020

Elogio da barriga [crônica]

 

Os novos tempos. Tantas vezes imaginados, retratados, sonhados. Mais do que isto, em torno do futuro se organiza mesmo toda nossa vida. Como seremos, nosso trabalho do futuro, as coisas que pretendemos adquirir, as lutas que vamos travar, os objetivos a conquistar. A boa e velha esperança, esta que nos torna tão estoicos e tão combativos. Resignar-se, eis palavra proibida, tanto mais em tempos de coaches, estes que querem nos habituar a engrandecer as forças do pensamento, tomado como vetor mesmo das mudanças. Basta pensar que, como em um passe de mágica, nossos projetos tomam forma, se concretizam e a realidade esperada devém o que pretendemos.

As redes sociais, verdadeiras maravilhas tecnológicas, vem para consumar nossas esperanças. Com tantos sucessos divulgados, tantos e vídeos de qualidade (ou nem tanto), como se desfazer da busca pelas maravilhas prometidas no céu azul de uma sociedade na periferia do mundo? Como imaginar que, por causa de nossas mazelas, os sonhos prometidos estão mais para pesadelos. Em uma sociedade da disputa, traço que talvez remeta aos gregos, há sempre ganhadores e perdedores. As parcas vitórias de certos dotados alimentam a esperança da massa de falidos. Os lucros bilionários do vendedor das cadeias de restaurantes, acalentam os sonhos de grandeza do vendedor de lanches da esquina. Sonhar, ainda não há uma taxa para isso. Mas não forneçamos ideias. Pode ser que este singelo texto chegue ás mãos de algum capitalista de visão maior e logo inventem uma forma de cobrar para ter sonhos; um tônico, talvez pílulas que ajudem nos devaneios. Ou, quem sabe, estejamos atrasados e o mercado dos sonhos já esteja na ordem do dia, em paragens mais estranhas, mas nem por isso menos dissociadas do real.

Em minhas pausas dos estudos, onde me aventuro pelos caminhos e descaminhos das redes sociais, é comum terminar em fotos de homens (ou mulheres) super sarados, com as invejadas barrigas de tanquinhos, os músculos à mostra, por vezes maior que suas respectivas cabeças e o bronzeado — prova última da pertença de classe, visto que o horário comercial coincide com o horário do brilho maior de nossa estrela guia — que não faz nenhuma inveja a Trump, trunfo oculto das forças reacionárias, e, por nossa infelicidade maior, esperança do excrementíssimo presidente desta república de bananas. Esses corpos todo trabalhados são ostentados por perfis de nomes incomuns, estranhos aos silva e santos da população brasileira. Eu, que nem sobrenome tenho, já me sinto escanteado de princípio, perto dos Fassheber, dos Michelin e coisa que o valha.  

Essa mixórdia europeizada, que destas nossas plagas, nossa língua e nossa gente, tudo fazendo para se adequar ao, perdoem o anglicismo, script das redes multinacionais de cinema, me fizeram pensar nos problemas que enfrentam nossa população, no tangente a seu amor próprio. Pode parecer conversa de coach, mas se valorizar, mesmo pelas pequenas qualidades que todos possuímos, é uma forma de conseguir se situar no mundo e de, enquanto segmento social, com características próprias, agir melhor, ter confiança nas próprias capacidades. Uma população espoliada em todos os sentidos, como é a brasileira, não pode se dar ao luxo de deixar escapar o próprio núcleo mesmo da subjetividade, o sentimento do próprio corpo, e entrega-lo de bandeja aos padrões internacionais que nos insuflam o desprezo dessas palmeiras e sabiás em benefício de sei lá qual nome europeu.

Por isso, resolvi escrever singelo texto onde nosso autêntico brasileiro, dos quais eu não poderia nem mesmo enumerar, fosse louvado. O homem com barriga. Muitos me acusarão de hipocrisia, mas entre a farroupilha e a hipostasia, uma breve louvação do puro fruto de nossa terra só há de nos fazer bem.

O núcleo mesmo de homem brasileiro só pode ser a barriga. Homem forte, afeito ao trabalho, é na barriga que se concentram suas preocupações, dados os míseros salários dessa terra de gigantes com nanismo, como aqueles do sertão nordestino, fartamente estudados há não muitos anos. O excesso de barriga só pode significar uma incomum fartura, isto em um país onde as classes abastadas, alimentadas do suor proletário, se fazem emagrecer em clínicas caríssimas, inacessíveis a maior parte da população. A barriga é a fortuna de uma gente esquecida, que necessita de reservas para poder garantir que terá esperanças. A magreza, índice da morte certa — e os urubus comedores de carniça grassam nesta terra.

Mas também a barriga é fruto certa do principal passatempo de uma gente judiada, o churrasco com cerveja. Para nós, aquela carne assada, de preferência com uma boa capa de gordura ,a se somar a nossas reservas acumuladas com inumerável esmero,  com uma boa cerveja é o sumo da felicidade. A carne, como se sabe, não é das melhores, assim como a cerveja. Esta é adulterada e os mais velhos se lembram de cepas de melhor procedência. Mas, é melhor uma caneca na mão do que duas voando. Na falta de produtos melhores, nossa cerveja oligopolizada só pode nos trazer felicidade e contribuir para essa arte oculta, mesmo entre os antigos, do cultivo da barriga.

A carne, fruto de indizível sofrimento animal, já está tão arraigada no imaginário do povo brasileiro que séculos serão necessários para tornar esse povo afeito a outra forma de aleitamento de seu descarrego de estresse. O churrasco aos finais de semana é um patrimônio imemorial do povo brasileiro, não se restringindo aos gaúchos. Sempre que pode, o trabalhador brasileiro faz um churrasco: aniversários, jogos de futebol, nascimentos.

O cultivo da barriga é a prova mesma da idade de uma pessoa. Quando jovens, a magreza é a regra. O correr dos anos, o vincar das preocupações, o assentar das querelas, tudo isso vai encontrar sua sedimentação natural na barriga do homem. Por isso, é um absurdo querer comparar esses meninos despreocupados, com a vida feita, com outros, crescidos em meio a guerra, para os quais seus pequenos prazeres de final de semana, trégua breve de uma guerra chamada Brasil, oferecem o oásis de um conflito interminável.

Não que o cultivo da barriga se ofereça como esporte regulamentar. Ao contrário, os médicos o proíbe. Pena que a medicina ainda não tenha inventado pílula que cesse com as mazelas de um país como o Brasil. Os antigos já possuíam o apotegma da adequação entre corpo são e mente são. No Brasil, ambos são luxos. Louvar a barriga é louvar o povo e seu modo de vida. Um povo são depende de um país são. E, no Brasil, são  tem outro significado: os brasileiros são todos vítimas de um sistema descarrilhado. Essa é a nossa sanidade. Para esquerdá-lo, aí sim, um povo são se forjará. Até lá, a barriga do homem médio é a senha que nos permite divisar uma outra sociedade. Caso possua barriga, não se envergonhe. É a prova da pertença a um povo despossuído, desprovido e bestializado.

sexta-feira, 28 de agosto de 2020

Apotegma de Alcidamas

 

"Todos livres deus deixou, ninguém escravo a natureza fizera"

Ἐλευθέρους ἀφῆκε πάντας (ὁ) θεός, οὐδένα δοῦλον ἡ φύσις πεποίηκεν".

(Alquidamas ou Alcidamas, orador sofista dos séculos V-IV a.C.)

quarta-feira, 26 de agosto de 2020

Barafusteio

 você reclama demais,

é um barafusteio.

A vida se desfaz

no correr das horas

mas também se cria

nas novas auroras.

Amor, não reclame tanto

A vida não é só pranto.

Agora deite aqui

conte-me mais,

seu corpo é tão bonito

quando visto por trás.


Ribeirão Preto, inverno de 2020

Do gozo

 Gozar, eis meu amor.

Gozar, não é este nosso penhor?

Gozar a coisa simples

e também a cara,

gozar enquanto se pode

é esta minha tara.

Gozar a fria noite

e a reluzente aurora.

Gozar o dia todo.

Gozar, eis meu apodo.

E assim levo vida

sem tanto reclamar

gozo na saída

depois de muito entrar.

Meus dias se sucedem,

um dia irão findar,

mas nada me impede

de até lá gozar.


Ribeirão Preto, inverno de 2020

sábado, 15 de agosto de 2020

Anacreônticas V [tradução]

 

A terra negra bebe,

bebe pois da terra as árvores 

bebe o oceano a brisa

o sol [bebe], o mar

e do sol [bebe] a lua

Por que comigo ralhais, companheiros,

eu que também quero beber?


Ἡ γῆ μέλαινα πίνει,

πίνει δὲ δένδρε' αὖ γῆν,

πίνει θάλασσα δ'αὔρας,

ὁ δ'ἥλιος θάλασσαν,

τὸν δ'ἡλιον σελήνη·

τί μοις μάχεσθ', ἑταῖροι,

καὐτῷ θέλοντι πίνειν;


Anacreonte (sec. VI-V aC.)

sexta-feira, 14 de agosto de 2020

Anacredônticas IV [tradução]

Livrai-me de seus deuses,

beber, beber sem fechar a boca

Desejo, desejo enlouquecer.

Enlouqueceu Alcmeão

e Orestes, dos pés alvos

mães possuindo*:

eu nenhuma possuo

bebendo o escarlate vinho

desejo, desejo enlouquecer.

Enlouqueceu outrora Herácles  

que terrível tumulto presenciou

e atirou flecha em Ifiteão;

enlouqueceu outrora Ajax

com escudo abalado

esfaqueado por Heitor;

eu tendo taça

e uma coroa destes cabelos esvoaçantes

não lanço flechas, não esfaqueio,

Desejo, desejo enlouquecer.

* [nota da edição original] Alcmeão, filho de Amfiaraus e Erifyle, como Orestes, matou sua mãe para vingar a morte de seu pai. Ambos foram conduzidos à loucura pelas Fúrias.


᾿Άφες με, τοὺς θηούς σοι,

πιεῖν πιεῖν ἀμυστί·

θέλω θέλω μανῆναι.

ἐμαίνετ' Ἀλκμέων τε

χὠ λευκόπους Ὀρέστης,

τὰς μητέρας κτανόντες;

ἐγω δὲμηδένα κτáς,

πιὼν δ'ἐρυθτρὸν οἶνον

θέλω θέλω μανῆναι.

ἐμαίνετ' Ἠρακλῆς πρὶν

δεινὴν κλονῶν φαρέτρην

καὶ τόξον Ἰφίτειον·

ἐμαίνετο πρὶν Αἰáς

μετ' ἀσπíδος κραδαίνων

τὴν Ἕλτορος μάχαιραν·

ἐγω δ'ἔχων κύπελλον

καὶ στέμμα τοῦτο χαίταις,

οὐ τόξον, οὐ μάχαιραν,

θέλω θέλω μανῆναι.

quarta-feira, 12 de agosto de 2020

Anacreônticas III [tradução]

Os da bela Cibele [deusa frígia]

da meio fêmea Attis [sacerdotisa de Cibele]

Nos céus gritando

falando de enlouquecer.

Os junto a Klaros [clérigo de Zeus e objeto para se tirar a sorte] afligidos

Portadores do louro de Medo [Phoibos, um deus]

falavam bebendo água

denunciando ao gritar.

eu, de minha parte, de Dionísio

e da jovem perfumada de mirra

e de minha companheira [ἑταίρης, companheira ou prostituta]

desejo, desejo enlouquecer.


Οἵ  μὲν καλὴν Κυβήβην

τὸν ἡμίθηλυν Ἄττιν

ἐν οὔρεσιν βοῶντα

λέγουσιν ἐκμανῆναι.

ὁι δὲ Κλάρου παρ'ὄχθαις

δαφνηφόροιο Φοίβου

λάλον πιότες ὔδωρ

μεμηνότες βοῶσιν

ἐγὼ δὲ τοῦ Λυαίου

καὶ τοῦ μύρου κορεσθηεὶς 

καὶ τῆς ἐμῆς ἑταίρης

θέλω θέλω μανῆναι

terça-feira, 11 de agosto de 2020

Anacreônticas II [Tradução]'

Dai-me a lira, Homero

das cordas apartadas do sangue

traga-me o cálice das leis

traga-me a dos costumes taça

embriago-me a fim de dançar

sob sábia ira

após o canto do barbito [espécie de lira]

estando de fogo, ajudarei

dai-me a lira, Homero

das cordas apartadas do sangue


Anacreonte

sexta-feira, 7 de agosto de 2020

10 apotegmas de Menandro [tradução]

 1. Não é vergonha ao ignorar, aprender

οὐκ ἒστιν αἰσχρὸν ἀγνοοὔντα μανθάνειν

2. Não é sabedoria as posses tomar como o mais digno de honra

Οὐκ ἔστι σοφίας κτῆμα τῖμιώτερον

3. Nosso espírito está em cada deus

ὁ νοῦς γὰρ ἡμῶν ἐστιν ἐν ἑκάστῳ θεός

4. Sabedoria é aprender aquilo que não tínhamos em mente

σοφία γάρ ἐστι καὶ μαθηεῖν ἃ μὴ νοεῖς

5. A sabedoria do rico é a propriedade honrar

σοφία γάρ δὲ πλούτου κτῆμα τῖμιώτερον

6. Pelo prazer o sábio não se deixa agarrar

ὑφ᾿ ἡδονῆς ὁ φρόνιμος οὐχ ἁλίσκεται

7. Sabedoria e temperança são da vida os dois bens

ὑγίεια καὶ νοῦς ἀγαθα τῷ βίῳ δύο

8. Como nada aprende, não está presente de espírito

ὡς οὐδὲν ἡ μάθησις ἂν μὴ νοῦς παρῇ

9. O conhecer a si mesmo é dito ser útil

τὸ γνῶωι σαυτὸν πᾶσίν ἐστι χρήσιμον

10. Luz é deus pela eternidade fitar com a mente

φῶς ἐστι τῷ νῷ πρὸς θεὸν βλέπειν ἀεί

terça-feira, 4 de agosto de 2020

Apotegma de Menandro I [tradução]

"Quando preparares para teu próximo maldizer, primeiro de si mesmo examinai
os males"

Menandro

ὅτε ἄν τις μέλλης σὸν πλησίον κακηγορέιν, πρῶτον σεῦ αὐτοῦ ἐπισκέπτεο κακά


sábado, 1 de agosto de 2020

Anacreônticas I [Tradução]

Doce cantar de Anacreonte
mais doce o de Safo.
Os pindáricos me preocupam
misturados com o vinho vertido
O terceiro deste me parece
pois Dionisío vindo
e Paphie  de tez brilhante
e ele do Amor beberia

O original pode ser baixado em https://archive.org/stream/anacreonticssele0000anac?ref=ol