terça-feira, 31 de dezembro de 2019

Lista de livros lidos em 2019

1. Le petit prince - St. Exupéry
2. Zweites buch
3. Manual de Economia da USP
4. Mythos - Esopo
5. Tractatus Logico Philosophicus -  Wittgenstein
6. La edad heroica de la ciencia - Heidel
7. Hellenika - Jacynto Lins Brandão
8. Gramática Essencial do Alemão - Mônica Riemann
9. Langue et civilisation françaises vol IV
10. História do pensamento econômico - Henri Denis
11. Introdução aos pré-socráticos - André Laks
12. O legado de Foucault - Scavone
13. O longo século XX - Giovanni Arrighi
14. Economia: modo de usar - Chang
15: Chutando a escada - Chang
16. Um estudo em vermelho - A. C. Doyle
17. História em perspectiva vol. 6
18. Grammaire progressive du français débutant
19. Triste fim de Policarpo Quaresma - Lima Barreto
20. Using French
21. La pratique de l’allemand
22. Introdução à lógica - Mortari
23. La philosophie Bantoue -  R. P. Placid Tempels
24. O espanhol passo-a-passo - Charles Berlitz
25. Dialogos - prácticas del griego antiguo - Martinez
26. Manuel de Grec Ancien - 
27. Capitães da areia - Jorge Amado
28. A filosofia no Brasil - Ivan Domingues
29. Ruy Mauro Marini (vida e obra) - Ruy Mauro Marini
30. Departamento francês de ultramar - Paulo Arantes
31. Harry Potter e a criança amaldiçoada - J.K. Rowling
32. A invenção do filósofo ilustrado - José Roberto Sanabria de Aleluia
33. A escola francesa de historiografia da filosofia - Ubirajara Rancan de Azevedo Marques
34. Vocabulaire Grec - Fontoynont
35. Les misérables Tome 1 - Victor Hugo
36. Asalto a la razón - Lukács
37. O estruturalismo e a miséria da razão - Coutinho
38. Como fazer filosofia sem ser grego, um gênio ou estar morto - Palácios
39. Crise do marxismo e irracionalismo pós-moderno - João Evangelista de Souza
40. O senhor dos anéis: as duas torres - Tolkien
41. O senhor dos anéis: o retorno do rei - Tolkien
42. As grandes guerras da história -  Liddell Hart
43. Michel Foucault - Eribon
44. Foucault, seu pensamento, sua pessoa - Veyne
45. Histoire de la folie à l’âge classique - Foucault
46. Michel Foucault y sus contemporaneos - Eribon
47. Maladie mentale et personalité - Foucault

48. O senhor dos anéis - a sociedade do anel - Tolkien

sexta-feira, 13 de dezembro de 2019

O fim do macho


Como todas as coisas grandes, começou pequena. Um elefante, em um dia já longínquo, já foi apenas um minúsculo espermatozóide. Hitler e Mussolini, antes de se tornarem estas figuras odiosas, foram somente soldados, um dentre tantos, nas linhas de frente da Primeira Guerra Mundial. Mas, como fermento, cresceu. E se agigantou sem que ninguém soubesse dar respostas, nem mesmo os mais famosos cientistas do planeta. A origem, hoje é clara: uma pequena cidade do interior do Brasil, justamente lá onde a figura do macho é a mais forte. Macho de machão, aquele que não leva desaforo para casa, vive de sua honra, à guisa samurai, raspa a peixeira no chão e canta alto, igual a estes galos de terreiro, que acordam os vizinhos com sua voz alta e estridente. Que tenha começado pequena, há de ser lição a nossas crianças, para que não desanimem de suas metas, objetivos, perspectivas. O irônico é que, ao que parece, principiou-se como uma doença que atingia galinhas, em um primeiro momento, mas que logo se expandiu para os galos galináceos, daí para os bodes, logo para o macho superior, esta besta fera de duas patas, o homem.

            De que se deu? Era uma espécie de gripe, forte, com espaços e sangramento. Terçã e malsã, transmitia-se pelo ar, o menor contato sendo suficiente para apanhá-la. Era forte — e letal. Do interior do Brasil, espalhou-se pelo mundo, atingindo os grandes centros. Primeiro, Recife, logo todo o nordeste; enfim, São Paulo e Rio, as portas de entrada do país. Daí para ir fazer um tour na Europa e na América do Norte, foi um passo, realmente, um pequeno passo. Os jornais noticiavam, os homens andavam nas ruas com máscaras, evitavam contato com outros homens. Mas, como o destino é engraçado, eram justamente nas barbas, nos fios dos cabelos do peito e na genitália e na cerveja, que o vírus se alojava e encontrava guarida. E não ficou restrita a humanos, infectando todos os malfadados machos do planeta.

            Era uma gripe que matava em questão de dias, imobilizando, provocando alucinações pantagruelescas. A pele inchava, os olhos ficavam vermelhos e saltavam, surgiam purulências verde-musgo em toda a pele, como na varíola. Foi cognominado “o vírus do macho”, porque só atingiam representantes masculinos das espécies. Houve uma verdadeira corrida contra o tempo para mitigar seus efeitos, mas, ao cabo de um ano, todos os machos do planeta se encontravam mortos. Enfim, o sonhos de algumas feministas, como Solanas: o macho reduzido à condição de merda, merda mesmo, esterco, substrato de bactérias.

            Em um primeiro momento, as viúvas se aglomeravam, chorando seus finados esposos, talvez, podemos dizer mordazmente, com saudades das brigas, das cacetadas, do descaso e pretensa superioridade masculina. Mas, é o que a filosofia e a ciência vêm apontando já faz alguns séculos, os fatos falam mais altos. Repentinamente, os níveis de criminalidade diminuíram. As cervejas no bar já não redundavam mais em brigas contra ou a favor do Flamengo. A violência doméstica caiu desmesuradamente, indo a níveis baixíssimos. Já não havia mais disputas sobre abaixar ou não a tampa do vaso, nem sobre participação das mulheres na política. Agora, o mundo parecia se aquietar, e, finalmente, havia chegado o tempo do progresso.

            Não sem custos, óbvio. Agora, todas as crianças, e filhotes em geral, eram feitos em laboratório, graças às mais finas técnicas de manipulação genética, as quais, outra ironia, os próprios machos ajudaram a desenvolver. Mas, mesmo com a maquinaria biotecnológica, só nasciam fêmeas, algo intrigante. Ao que parece, o vírus infectou mesmo as mulheres, alterando seu DNA, de modo a que somente representantes do sexo feminino fossem gerados. É, já escreveu Darwin, este macho sagaz, sobre a evolução das espécies, pressagiando seu próprio fim enquanto subespécie. O mundo marchava, a terra se movia, dando lume a um novo planeta, uma nova civilização, a civilização da xereca.

            Claro, como dito, houve lamentos. Nenhuma mãe perde seu filho sem lástimas. Mas, agora, o globo era dominado pela língua universal. Nos dias de TPM, obtinha-se folga do emprego. Os casos de pedofilia haviam baixado drasticamente. Já o estupro, praticamente desaparecera. Agora, o mundo pertencia às lésbicas, com suas gírias seu jeito, sua ginga pró´ria.

            O mundo sem o macho renascia, dotado de um encanto todo seu. Engenheiras, cientistas, mecânicas, políticas. Levou certo tempo, mas o trauma foi superado. Agora, o século era das mulheres. Agora, vivemos em paz.

           

                       

terça-feira, 10 de dezembro de 2019

Sobre o livro Michel Foucault y sus conteporáneos, de Didier Eribon

ERIBON, D. Michel Foucault y suas contemporáneos, Buenos Aires: Ediciones Nueva Visión, 1995

Didier Eribon, ainda vivo e atuante, é um dos comentadores mais privilegiados de Foucault, visto que conheceu toda a geração que elaborou a dita "French theory", como ademais publicou muitas obras de filosofia, isto é, conhece o meio e os termos filosóficos, não cometendo erros como o de outros jornalistas, que se propõem a emular áreas que não as suas e acabam caindo em gafes monumentais, caso de Narloch, com seus livros profundamente enviesados. Eribon, que escreveu a mais famosa biografia de Foucault, divide este livro em duas partes: a primeira se propõe a desconstruir outros escritos sobre a vida de Foucault, escritos estes que seriam completamente desatinados, querendo reduzir a obra de Foucault à sua homossexualidade; além do que, estes escritos, nomeadamente o de James Miller (James Miller, The Passion of Michel Foucault, New York, Simon and Shuster, 1993) cometeriam outros erros crassos, abundatemente comentados por Eribon, desautorizando todo o trabalho. A segunda parte é mais fecunda, posto que se trata de elaborar um itinerário de Foucault na França de então, perscrutando as relações do filósofo francês com seus colegas hodiernos, desde os menos conhecidos, como Dumézil, até aqueles notáveis, como Lacan e Althusser. Não é só a obra de Foucault que é aclarada como a desses companheiros de viagem. É constante no livro a referência a biografia que Eribon escreveu de Foucault, mas o tom de ambas é muito distinto. Na biografia, como era de se esperar, o personagem principal é Foucault. Aqui, por vezes Foucault é eclipsado em benefício da exposição da teoria e trajetória de outros intelectuais. É interessante notar que Foucault criticou várias das noções caras a Eribon, como autor e obra; mas, até segunda ordem, são os melhores instrumentos para se analisar a trajetória de um escritor, especialmente um que vem chamando a atenção de todo o globo. O livro é um verdadeiro tesouro para os estudiosos de Foucault e da filosofia francesa contemporânea. Claro, bem escrito, bem informado. Por esses méritos, merece ser lido. Mas, recomendamos que antes dele se consulte a biografia que Eribon elaborou sobre Foucault; há de facilitar a leitura e aprimorar as conexões a serem feitas.

quarta-feira, 4 de dezembro de 2019

A possibilidade da filosofia africana segundo Foucault



 Introdução: a carta de Foucault a Rolf Italiaanander

Os Dits et écrits (Ditos e escritos) recolhem toda a produção de Foucault, à exceção de livros; até mesmo algumas cartas estão lá expostas ao pesquisador. É sobre uma destas cartas que recaí nosso interesse. No Natal de 1960 Foucault enviou uma carta à Rolf Italiaanander, carta esta muito interessante (FOUCAULT, 2001 pp. 257-260). Italiaanander foi um intelectual e artista alemão, com múltiplas produções. Especialmente importante para nosso fito é o fato dele ter se aproximado da arte africana, fazendo inúmeras viagens ao continente negro, especialmente para o norte da África, enquanto membro da Legião Estrangeira, e, mais tarde, para a região do Congo Brazzaville, região tropical do continente, onde foi ensinar aos nativos técnicas artísticas, como a gravura sobre o cobre. Italiaanander tem uma vasta produção de obras etnográficas e, até mesmo, de livros para jovens.

Na epístola referida, Foucault afirma algumas coisas interessantes. Foucault fala da amargura de um mundo em que tanta coisa acontece sem que se tenha controle sobre os fatos. Afirma ainda que havia muito a contar a Italiaanander, e somente a ele. Comentando um dos livros para jovens de Italiaanander, Foucault fala de tempos originários (originaires), que estavam bloqueados graças a palavras vazias. Trata ainda da démarche que conduz a homens livres. Então, ele comenta sobre a colonização, abordando os jesuítas, os quais, na América então colonizada, tomavam os selvagens por animais, enquanto eram considerados deuses pelos autóctones. Foucault assevera que Rolf Italiaanander é um europeu pronto a reencontrar deuses em uma humanidade onde estes estão morrendo. Então, ele diz “Nossa era é de tal modo feita que a inteligência não tem outra aplicação que questionar a razão até o suplício e de retirar de seu sonho (sonho no qual Goya representa o homem moderno) a potência dupla e irrepreensível que ela analisa” (FOUCAULT, 2001, p. 259).

Comentando a experiência do intelectual alemão em Brazzaville, onde ele foi ensinar técnicas artísticas aos nativos, conforme apontado, Foucault assevera que eram jovens de condição social dificultada pela experiência colonial aos quais se dirigia o ensinamento de Italiaanander. Estes jovens, que agora dominavam uma técnica simples, repentinamente se sentiram estrangeiros em um mundo onde os europeus já viviam, e, de repente, um cosmos mudo se abriu a eles. Segundo Foucault, que critica a noção de primitivo e sua suposta psicologia, algo que Fanon também elabora, as pesquisas africanas do artista tedesco não se contentavam em descobrir, nem em converter em prática; elas serviriam para aportar uma renovação e despregar-se do passado e restabelecer a verdade do presente, de modo que Italianaander ensinaria para aprender: “Preparar para mais tarde uma língua com a qual a África exprimirá toda sua verdade” (FOUCAULT, 2001, p. 260, a tradução é nossa).

Para Foucault, não é por que foi Italiaanander que ajudou a preparar as gravuras que elas não trariam novidades aos europeus. “A troca”, diz Foucault, “é a condição do futuro do mundo moderno” (FOUCAULT, 2001, p. 260). Não se deveria utilizar o termo folclore, que seria uma hipocrisia dos ditos civilizados:

“A verdade da África — esta também dos primeiros escultores das florestas —, é a história da África mesma que nos narrará, et, claro, na língua que se forma agora. Ensinar a arte gráfica aos africanos não significa desfigurar uma arte milenar, mas, ao contrário, desenvolver a forma de expressão de sua verdade” (FOUCAULT, 2001, p. 260)

            Foucault termina a missiva saudando Rolf Italiaanander e sua ausência de preconceitos em relação aos africanos. A carta traz traços de poesia, tornando sua leitura prazerosa.

            No Vocabulário Foucault (CASTRO, 2006) não encontramos nem os verbetes África, nem colonização, muito menos africanos. Tampouco no Le Vocabulaire Foucault (REVEL, 2002) estes termos aparecem. Além do mais, em nossas pesquisas, que duram já uma década e meia, não constatamos no pensamento de Foucault uma reflexão sobre a África, embora ele lá tenha residindo quando de seu período na Tunísia. O aparato colonial tampouco foi objeto de reflexão, malgrado as tentativas francesas de manter suas colônias na Indochina e na Argélia, acontecimentos estes que, certamente, não passaram despercebidos a Foucault. Além do que, era na França que se desencadeava um dos principais movimentos de afirmação da filosofia africana, como nos relata Montoya (2010).

            Mas, cremos, na carta a qual acima demos as linhas mestras, pode-se tentar ensejar uma suposta posição de Foucault sobre a filosofia africana, a qual somaremos outros textos do pensador francês, a fim de chegar a dita posição.

Foucault e  arte (e filosofia) africana: os gregos e a estratégia


            Na missiva destaca-se a felicidade e a receptividade de Foucault em relação a arte africana. Ele parecia não considerá-la inferior ou menos refinada que a arte européia, como aquelas figuram que adornam e convidam à reflexão em nossa edição de La philosophie bantoue, do padre Tempels. Foucault e Italiaanander organizaram, mesmo, uma exposição de arte africana quando da presença do intelectual francês em Hamburgo. Foucault vê a arte africana com bons olhos, e critica a colonização por tentar reduzir o africano ao papel de primitivo, termo este que abunda no livro de Tempels, missionário belga em África.  Ao contrário, Foucault entende que uma cultura deve ser aberta às mudanças, o que seria uma condição das sociedades modernas, e saber empreender trocas com o meio. Abrindo a cultura francesa às influências africanas, podemos especular que Foucault pensaria o mesmo da filosofia africana, que, atualmente, existe sem sombras de dúvidas, e vem formando intelectuais com voz global, como Mbembe. Assim, se os europeus têm o que ensinar em matéria de arte e filosofia aos africanos, também têm o que aprender.

            A arte africana se comunicaria com um tempo originário, diz Foucault. Talvez o mesmo possa ser dito da filosofia africana. Alguns autores, como Obenga (apud OCHIENG-ODHIAMBO, 2010, p. 12), insistem nas conexões entre o grego sophos, sábio, de onde vem a própria palavra filosofia, e o egípcio sebe, que indica a mesma coisa. Além do mais, tanto Tales quanto Platão viajaram para o Egito, somado ao fato das constantes trocas comerciais e, certamente, culturais entre as culturas, o que pode dar azo a especulações de toda ordem. Não temos condições de julgar a pertinência destas colocações. O mais certo é que os gregos herdaram algo das demais civilizações da bacia do Mediterrâneo e do Oriente próximo. Mas ao mesmo tempo, como vários autores apontam (KIRK et ali, 1994; FARRIGNTON, 1961), se os gregos herdaram aspectos das culturas orientais, eles também souberam construir novas teorizações, especialmente abstraindo as meras técnicas, como a metalurgia, para dar-lhes o caráter de ciência, isto é, de busca por princípios. A polêmica sobre a origem egipcía da filosofia reorganizaria todo o saber filosófico, posto que seriam em novas fontes que deveriam ser buscados os textos seminais, hoje incontestavelmente gregos; a egiptologia, disciplina pouco afeita aos estudos filosóficos, se tornaria basilar, e compreender a mitologia dos povos do Nilo assomaria como verdadeira Meca, substituindo os velhos textos de Hesíodo e sua influência no limiar do pensamento filosófico.

Talvez fosse com referência à origem africana da humanidade que Foucault se referisse quando utilizou o termo "originário". Mas este pensamento, que coloca um fundamento no umbral de um pensamento, é completamente estranho às produções de Foucault. Em muitos textos, como por exemplo a Archéologie du savoir (1969), e Nietzsche, la généalogie et l'histoire (1972) a noção de fundamento (arché) é muito criticada. Foucault é conhecido por salientar as descontinuidades, as rupturas, uma herança do pensamento de Bachelard e Canguilhem. A ideia de um fundamento suprahistórico, ou de um suave desenvolvimento, como quer a tradição hegeliana, é alvo de seu crivo.

Por que estes autores insistem neste caráter egípcio da origem da filosofia, egípcios estes que são tomados como uma população negróide (DIOP, 2010)? Para humanizar o negro, mostrar-lhe como capaz de pensamento. É de conhecimento comum que a escravidão que se abateu sobre os negros os subtraía de qualquer traço humano, reduzindo-os ao caráter de coisas as quais se pode manejar ao bel prazer, que podem ser vendidas, marcadas, mortas. O mérito dos autores que começam com o debate sobre filosofia africana é o de defender que o negro possui plenas capacidades de pensamento crítico; isto ocorre em meio ao colonialismo o mais cruel, e prossegue por todo o século XX, seguindo atual até os dias presentes.

            Foucault afirma que os ensinamentos de Italiaanander serviriam para, mais tarde permitir que os africanos se exprimissem em sua própria língua, expondo sua verdade. Alguns estudos, como o de Tempels (1961) tem um papel pedagógico, salientado no final do livro. Descrevendo a ontologia banto, Tempels intenta que os próprios negros se tornem conscientes de sua cultura, a fim de encetar uma civilização própria. É claro que se lhe pode reprovar o intuito por trás, quer dizer, de colonizar, mais especificamente, de introduzir o cristianismo no seio dos povos bantos. Mas seu estudo guarda o mérito de reconhecer no negro uma racionalidade de mesmo valor que seus colonizadores. Outros estudos, e de Montoya (2010) e textos que podem ser conferidos no site do professor Wanderson Flor, da UnB[1], também salientam este aspecto. É o caso de se indagar, no entanto, se existiria uma filosofia africana não no sentido de produções hodiernas, mas, sim, de uma autêntica tradição africana. Para alguns, como Obega, a filosofia ela mesma seria de origem africana. Autores diversos vão salientar o papel da noção de ubuntu, e Tempels mostra como a própria organização social dos bantos é calcada em uma ontologia própria. A nosso ver, a questão segue polêmica. O fato de se tratar de uma tradição até bem pouco tempo ágrafa ou versada no árabe dificulta as coisas. No campo da História, no entanto, houve um desbloqueio epistemológico a fim de possibilitar o fabrico de documentos através da história oral. Não seria o caso da filosofia incluir também através da oralidade produções filosóficas? Basta lembrar que uma das figuras fundadoras do fazer filosófico, Sócrates de Atenas, não deixou uma única linha escrita, sendo famoso pela maiêutica, arte do dialogo dirigido. Assim, querer excluir as produções africanas somente pelo fato de algumas dentre elas serem de tradição oral parece um contrassenso improdutivo, a menos que se queira aplicar o veto também a Sócrates e seus discípulos, como Platão e os megáricos.

            A questão, no entanto, é um pouco mais profunda, de caráter metodológico, com implicações políticas. Heidegger, o filósofo do nazismo, propõe que a linha mestra para se descobrir o que é filosofia passa pela genealogia do nome, que é grego. Assim, a história da filosofia seria uma linha que vai de Tales até Onfray, no tempo presente. Outras produções, por não serem desta linhagem ocidental, ou, ainda melhor, européia-norte-americana, deveriam ser excluídas. Talvez, mesmo, tudo que não seja grego ou alemão já não possui pedigree para ser considerado filosófico, dado que Heidegger considerava que a verdadeira filosofia só é feita nos idiomas helênico e teutônico, um disparate o qual Palácios (1997) analisa bastante negativamente, e com o qual concordamos. Assim, produções fora do que poderíamos chamar de eixo do Atlântico Norte estariam excluídas do fazer filosófico. Ora, esta é uma velha história. Já Hegel (1983) afirmava que não seria autêntica filosofia aquela chinesa, mas, sim, filosofemas. Hegel, contudo, escreve no limiar de um mundo, e o mesmo pode-se dizer de Heidegger. Já não existem colônias políticas e, desde a grande Revolução Francesa, há um movimento que intenta democratizar o mundo, afirmando a igualdade radical de todos os humanos, independente da cor de sua pele, sexo, orientação sexual, etc. Então, se todos possuem as mesmas capacidades, qual seria o motivo de vetar o direito à filosofia a uma categoria de seres humanos? A verdade é que Heidegger se inscreve em um outro registro, este de pensadores não guiados pela idéia de emancipação, mas, sim, de conflito entre civlizações; aos alemães, tidos por ele como os gregos modernos, compete guiar o mundo, um povo que seria o autêntico Führer da humanidade já cindida entre senhores e escravos; não à toa, o pensamento de Heidegger é utilizado pelo espectro da extrema-direita xenófoba, que intenta privar as pessoas do direito de melhorar sua condição de vida, tal como aponta Farias (2017).

            Esta via de interpretação, que quer estabelecer uma linha histórico-causal na história da filosofia, pode se sentir incomodada assim, em abarcar outras produções. A outra via, que é a de Tempels e da filosofia africana vai afirma uma outra coisa: a filosofia é própria ao modo de ser dos humanos neste planeta, tendo como fito a resposta a questões fundamentais, como o que é bom, o que é belo, o que deve ser feito, o que é o ser, enfim. Enquanto tal, não existiria uma díade de povos que filosofaram e povos que não filosofaram, mas, sim, uma plêiade de autores, temas e produções que abarcariam a diversidade da própria espécie humana. Esta posição parece ser decididamente mais democrática, se inscrevendo em um registro todo outro em relação ao heideggeriano. Seria própria a um mundo com múltiplas vozes onde as diferenças não são sinal de que alguns irão dominar e outros serão escravos, mas, sim de multiplicidade, de valorização e acolhida do outro. Podemos chamar esta via de democrática.

            Contudo, ela não é a nossa. A Montoya (2010) e Tempels (1961) falta, talvez, a consciência da própria colonização. Ela se deu nos marcos de um conflito, de lutas múltiplas entre civilizações, classes sociais e gêneros. A colonização e a minoração de outros seres humanos, reduzidos a condição de objetos, vêm responder a imperativos de toda ordem. O fato da filosofia ser afirmada como privilégio de alguns povos, do homem branco, não pode ser desligado das noções de que a filosofia representava o ápice da produção intelectual humana. Há uma linha interpretativa recente (LUIZ, 2019; LUIZ, 2017a; LUIZ, 2017b) que vem afirmando caráter profundamente político da filosofia ao tomá-la como uma estratégia.

O conceito de estratégia tem larga história; aqui o utilizamos desde uma perspectiva foucaultiana, precisando assim que se trata de uma noção belicosa, que envolve tomar a história e as sociedades como lugares de enfrentamento; uma estratégia histórica. Para Foucault, dado os marcos da luta geral que envolve as sociedades, cada movimento é tático e, como o devir é belicoso, os resultado, sempre parciais, são estratégicos. Assim, há de se ver que, na sociedade grega, a filosofia se somou ao movimento que colocava fim ao mundo de Hesíodo e Homero e ensejava as forças que redundariam no século de Péricles e, na seqüência, na civilização helenística. Em Hesíodo e em Homero, além de Arquíloco, dentre outros, são os deuses, as moiras ou outras forças que governam o kosmos; a vida humana é joguete de forças maiores. Ultrapassar seu limite, seu quinhão próprio, despespeitar a themis conduz à nemesis divina, à desgraça. O lícito e o ilícito, a origem do mundo, o belo, enfim, todos estes elementos eram dominados por aspectos que ultrapassavam a vida humana.

A filosofia coloca estes elementos em perspectiva, advogando não mais pelo mythos e o epos dos poetas, mas, sim, pelo logos, que pense o presente e a solução para os dilemas daquela sociedade. Assim, Xenofánes se ria dos deuses antropomorfizados. Heráclito queria chicotear os poetas, colocando no lugar dos deuses que regeriam o universo um pólemos que determina quem são os deuses. Até mesmo Platão intenta expulsar de sua cidade ideal os poetas, enquanto Aristóteles torna a poesia mais um objeto de reflexão filosófica. A filosofia constitui-se assim em uma estratégia histórica de engendramento de uma nova sociedade. Enquanto estratégia uniu-se aos rumos de uma civilização a fim de encetar, com muitas outras forças, nosso mundo, dominado pelo Ocidente, um mundo guiado pela ciência, que os gregos inventaram, e pela religião, que, se bem tenha uma origem oriental, foi unir-se às elucubrações filosóficas para dotar-se de uma teologia racional. Um mundo que redundou no colonialismo e na escravidão.

É claro, não se deve superestimar os poderes da filosofia. Em fato, ela não é a única estratégia histórica nos termos que ora colocamos, mas uma dentre outras. Contudo, pela pretensão dos primeiros filósofos em abarcar e explicar o kosmos com suas produções, a filosofia intentaria se adonar do ser ele mesmo, alterá-lo, dominá-lo. O que os primeiros filósofos, e ainda Aristóteles, buscavam era descobrir a arché do kosmos. Arché é uma palavra grega que significa tanto princípio quanto comando. Era no intuito de se apoderar desse princípio que comanda que se encaminhava a reflexão. Se, para muitos, a ciência grega era meramente teorética, outros, como Heidel (1946) e Farrington (1961) mostram o caráter prático das múltiplas explicações, especialmente se nos atentarmos à medicina, por exemplo. Além disso, o corolário das múltiplas filosofias antigas é uma ética e/ou uma política, jogando por terra a anedota de Tales caindo no poço por descuido ao pesquisar as coisas celestes.

            Podemos, então, teorizar sobre estes aspectos. Se a filosofia é uma estratégia histórica, portanto situada em uma correlação de forças, ela responde ao seu meio. As civilizações que filosofaram na história do mundo estavam se projetando a fim de dominar as demais, estabelecendo um império, uma arché, outro sentido do termo. Precisamente porque visavam a dominação, talvez, assim, minorizando os conflitos internos que as vergavam, como, por exemplo, o entre senhores e escravos ou entre homens e mulheres, estas civilizações intentavam constituir posições próprias sobre os grandes dilemas da existência, estes os quais a filosofia toma como objeto.

            Nas modernas teorias de estratégia militar (por exemplo, ECEME, 2011) toma-se que existem Poderes Nacionais em disputa. Este Poder Nacional tem muitas expressões, como, por exemplo, Científica, Pssicosocial, Diplomática, Militar. O objetivo do Estado é majorar seu Poder Nacional em suas múltiplas facetas, se dotando de uma estratégia que condiga com seus interesses. Assim, busca-se minimizar os conflitos internos, que minem os fundamentos do Poder Nacional, em benefício de sua expressão externa, na disputa entre os estados-nação.

            Chegaríamos, munidos destas informações, ao colonialismo conduzido por alguns estados europeus, que escravizou os negros, submeteu e mesmo extinguiu outras culturas e dominou todo o globo. Se a filosofia é uma das expressões do Poder Nacional; e se o colonialismo quis retirar dos povos colonizados a capacidade de filosofarem; é exatamente porque a filosofia pode servir como um dos guias para outras relações no mundo e com o mundo, não mais marcada pela idéia do domínio (arché) nem sobre outros humanos nem sobre a natureza. A filosofia contribuiria para dar dignidade aos povos outrora colonizados, afirmando tanto sua dignidade enquanto seres inteligentes, quanto seria a expressão de que eles já não são mais colônias, mas, sim, senhores de seu próprio destino. Talvez aí se esconda o sentido da frase de Foucault de que a arte africana, por extensão, conforme nossa hipótese, a filosofia africana serviria para que os africanos descobrissem sua própria verdade. Neste novo mundo, marcado pela troca, constituiríamos não mais um universo dividido entre superiores e inferiores, mas uma verdadeira humanidade, enfim reconciliada consigo própria; porque hoje, onde alguns são objetificados, enquanto outros são os objetificadores, esta humanidade ainda não existe. Constituir a humanidade é uma das tarefas mais prementes do tempo presente, tarefa esta a qual a filosofia e seus corolários, como a ciência política, pode contribuir. Mas não será sem, como quer Foucault, uma luta renhida contra as forças do colonialismo redivivo, que insiste em nos aprisionar no passado, e renasce sob formas contemporâneas, como mostra Chang (2005).

Conclusões


            Vimos que Foucault não aborda diretamente, até onde vão nossos conhecimentos, a filosofia africana. É a partir das pistas que ele deixa em sua posição sobre a arte africana, em carta trocada com o artista alemão Rolf Italiaanander, que buscamos as pegadas para chegar a qual seria sua posição sobre a dita filosofia. Vimos que alguns tentam negar o direito de outros povos, que não sejam gregos e alemães, à filosofia, posição esta a fim ao nazismo. Ao mesmo tempo, expusemos uma outra interpretação da filosofia africana, um tanto quanto ingênua, como Tempels, visto que descola a possibilidade desta filosofia da situação colonial dos povos africanos. Então, ensejamos uma interpretação própria que salienta os múltiplos conflitos em que a filosofia se envolveu historicamente, conflitos estes que a filosofia africana não pode se furtar. Para se estabelecer, múltiplos combates, em muitas frentes, hão de ser travados. A filosofia africana traz consigo a esperança de um mundo novo, onde possa ser forjada uma humanidade, uma verdadeira comunidade de homens e mulheres, visto que, para que o negro vença o racismo, é necessário que sejam vencidas as forças que dão suporte à opressão racial e que reduzem o outro à condição de objeto. Estas forças, as mesmas que suportaram o colonialismo, seguem vivas e atuantes, talvez agora mais fortes do que nunca. A filosofia africana, a nosso ver, deve ser entendida como uma estratégia para um mundo novo. Se houver filosofia africana nas escolas e universidades, na vida, enfim, ela será fruto de lutas sociais, que lhe darão guarida e lhe mostrarão o caminho. Este deve ser seu compromisso histórico.

Bibliografia


CASTRO, E.; Vocabulário Foucault, BH: Autêntica, 2006
CHANG, H.-J.;             Chutando a escada, SP: EDUNESP, 2005
ECEME; Introdução à estratégia, s/l: 2011, disponível em http://www.eceme.eb.mil.br/images/cpeceme/publicacoes/Introd_Estrat11.pdf acessado dia 04/12/2019
FARIAS, V.; Heidegger e sua herança - o neonazismo, o neofascismo e o fundamentalismo islâmico, SP: É realizações, 2017
FARRINGTON, B.; A ciência grega : e o que significa para nós, São Paulo: Ibrasa, 1961, Tradução de João Cunha Andrade e Lívio Xavier
FOUCAULT, M.; Archéologie du savoir, Paris: Gallimard, 1969
______________; Dits et écrits I 1954-1975, Paris:Gallimard, 2001
HEGEL, G.W.F.; Introdução à história da filosofia, SP: Hemus, 1983
HEIDEGGER, M.; Qu'est-ce Que La Philosophie?, Paris: Gallimard, 1957, 4ª edição
HEIDEL, W. A.; La edad heroica de la ciencia. El concepto, los ideales y metodos de la ciencia entre los antiguos griegos, Buenos Aires: Espasa-Calpe, 1946, Tradução de Augusta de Mondolfo
KIRK, G. S.et ali.; Os filósofos pré-socráticos, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1994, 4ª edição
LUIZ, F.; As filosofias não ocidentais: a filosofia africana e a ontologia banto segundo Tempels. Revista Reflexões , v. 8, p. 132-144, 2019
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MBEMBE, A.; Crítica da razão negra, Lisboa: Antígona, 2014
MONTOYA, F. S.; Introducción a la filosofia africana. Un pensamiento desde el cogito de la supervivencia, Tenerife: Idea, 2010
OCHIENG-ODHIAMBO, F.; Trends and issues in African Philosophy, New York: Peter Lang Publishing, 2010
PALÁCIOS, G. A.; De como fazer filosofia sem ser grego, estar morto ou ser um gênio, Goiânia: EDUFG, 1997
REVEL, J.; Le Vocabulaire Foucault,  Paris: Édition Marketing, 2002
TEMPELS, R.P.P.; La philosophie bantoue, Paris: Présence africaine, 1961

sexta-feira, 15 de novembro de 2019

Sobre o livro de Paul Veyne: Foucault, seu pensamento, sua pessoa

VEYNE, P.; Foucault, seu pensamento, sua pessoa, Lisboa: Texto e Grafia, 2009

Paul Veyne é um dos maiores historiadores vivos, e um dos grandes intelectuais ainda remanescentes de um tempo em que a França exercia verdadeiro fascínio em relação ao restante do globo. Por ter vivido boa parte do século XX, é uma das figuras mais qualificadas no que tange à possibilidade de elaboração de um retrato de Foucault, intelectual de cimeira, muito influente. Veyne e Foucault eram amigos pessoais, o que só reforça a possibilidade do historiador traçar um quadro interessante do filósofo. E assim o é. Veyne aborda o pensamento de Foucault com muito conhecimento de causa, esboçando uma análise onde se confudem as etapas do pensamento de Foucault, não diustinguindo entre genealogia e arqueologia, o que, certamente, é polêmico, especialmente desde nosso ponto de vista, para o qual a arqqueologia, primeiro método de Foucault, faliu por suas próprias pretensões.Veyne nos traça um quadro de Foucault ao memo tempo pessoal e intelectual, mostrando os limites do pensamento do filósofo francês, e os justificando.  Para ele, Foucault é um cético e, em política, um reformador, ao mesmo tempo que, contraditoriamente, Foucault, diz Veyne, sentia-se propenso a apoiar todo tipo de revolta social; mas ele não teria um programa a propor, tal qual nos descreve o professor Bruni, em seu célebre artigo. É como se Veyne nos dissesse que Foucault quer as revoltas, e ele aponta os motivos para se revoltar, mas sem ter em mente algo que possa substituir a atual ordem das coisas. O lirvo de Veyne não se detem em grandes polêmicas, apenas pontuando a recusa de Foucault em apoiar Miterrand ou sua participação na Revolução Iraniana. Enquanto retrato de um tempo ido, basta. Mas como avaliação do pensamento de Foucault, deixa a desejar. Por se tratar de uma obra de um grande amigo de Foucault, merece ser lido, mas sem grandes expectativas de se encontrar aí a resposta aos grandes dilemas foucaultianos ou uma exposição de sua doutrina, a qual considera-se que o leitor já conheça.

sábado, 2 de novembro de 2019

Letra de música: Goiânia

Tava na cidade de Goiânia
fumando um baseado
eu só queria ir no mercado
eu só queria ir no mercado

Mas em Goiânia não tem trem
em Goiânia não tem trem
O busão tá sempre lotado
lá em Goiânia não tem trem

Em Goiânia não tem trem,
em Goiânia não tem trem
O busão tá sempre lotado
em Goiânia não tem trem

Marília, 2013

quarta-feira, 16 de outubro de 2019

Clausewitz, Liddel Hart, Beaufre, Foucault: O conceito filosófico de estratégia


Panorama da estratégia

Estratégia. A ideia é muito antiga. Em sua Anthologie Mondiale de l’estratégie Chaliand, um dos maiores especialistas vivos no tema, regride até o Egito antigo para mostrar que desde lá a idéia de se mobilizar dados meios a fim de realizar certos fins já estava presente. Mas o nome estratégia é de estirpe grega. É tarefa hercúlea pesquisar, nas milhares de páginas que nos sobraram dos sábios helenos, qual foi a primeira aparição do termo e qual a idéia que era expressa, tarefa esta que recai sobre o pesquisador e que algum dia realizaremos. Por ora, nos contentaremos em fazer alguns apontamentos etimológicos; depois, em um salto milenar, mostraremos algumas das principais concepções contemporâneas de estratégia — Clausewitz, Liddel Hart e Beaufre — para, por fim, chegar ao nosso objeto propriamente falando, tal seja, a utilização sui generis que encontramos na obra de Foucault do conceito de estratégia, no que vimos chamando de conceito filosófico de estratégia, uma idéia de filosofia da história.

Os gregos eram um povo muito belicoso. Não à toa, foram eles que, na boca de Heráclito, disseram que a guerra é de todas as coisas pai, no fragmento 53 DK. Mas o conceito de estratégia não guarda raiz com o pólemos, stásis, éris, agon ou palé, termos gregos que indicam, com matizes de significado, a guerra. É na idéia de stratos, exército, e um de seus derivados, strategos, general, que encontraremos a raiz comum, segundo Chantraine (1968). A língua grega, pela sua precisão, permitia que se substantivasse as ações no neutro ou certos nomes para dar uma idéia de pertencimento ou de elementos gerais. Assim, philosophia e ta philosophia, as coisas da filosofia; stratos e ta stratia, as coisas do exército; strategos e ta strategia, as coisas do general, quer dizer, a conduta do exército, a hoplomaquia, as melhores condições de combate, inclsuive as metereológicas, como nos revelam tratados antigos de estratégia, como o de Vegêcio, etc. A noção por trás de estratégia, em seu sentido grego, é que se trata das coisas relativas ao general, a arte deste, seus negócios. É curioso que Péricles, em seu famoso discurso à Boule grega por ocasião do início dos conflitos da Guerra do Peloponeso, embora indique uma estratégia de conduta na guerra a porvir, não emprega o termo estratégia. Do mesmo modo Xenofonte, narrando a retirada dos dez mil, não utiliza o termo. Isso pode indicar que ele ainda não estava suficientemente difundido, ou, senão, que as idéias ainda não estavam tão claras para os gregos, nossos ancestrais intelectuais.

Esta última hipótese talvez seja a mais forte, visto que somente muito tardiamente o termo estratégia foi popularizado e aceito universalmente. Ainda Napoleão não o utilizava, preferindo se valer da noção de grande tática. É com Bülow, um intérprete teutônico das guerras revolucionárias francesas e napoleônicas, que a noção se populariza. Bülow intentava matematizar, bem no esprit du temps, a guerra, tornando-a uma ciência exata; em seu pensamento, a estratégia é reduzida a esquemas lógicos, perdendo um dos aspectos que a etimologia revela que é a importância do comandante, no que Clausewitz chamará, talvez influenciado pelo romantismo, do gênio militar.

É praticamente consenso que o maior escritos militar da história do Ocidente foi Clausewitz. Muitos vieram depois dele, e muitos antes; mas sua monumental obra é um verdadeiro divisor de águas, seja pela riqueza das proposições, ou também pela duração de sua influência. Rapoport chega a flar de uma era clasewiziana das relações internacionais, que cobriria a maior parte do século XIX e cessaria com a Primeira Guerra Mundial, quando novas filosofias da guerra emergiriam, como a leninista. Algumas proposições clausewitzianas se tornaram verdadeiro senso comum, como aquela segundo a qual a guerra é a política continuada por outros meios, máxima que Foucault inverte, e que teremos a chance de comentar. Quanto à estratégia, o pensador militar prussiano ficou famoso por propor que a estratégia é arte de organizar as batalhas visando certo fim, fim este estabelecido pela política. A tática seria a conduta na batalha propriamente falando, de modo que tática e estratégia mantêm uma interação dinâmica, com a estratégia determinando a tática.

No esquema de Clausewitz, que alguns, como Meira Mattos, seguem, a política dita os fins, a estratégia os executa. Podemos abstrair para a seguinte tese: a filosofia política, em suas elucubrações, dita as características mais gerais de uma sociedade. A ciência política viabiliza as construções da filosofia política e a estratégia executa, quando estes fins envolvem força militar. Por exemplo, peguemos uma das principais filosofias políticas contemporâneas, o marxismo. Marx e Engels, em um grande esforço, plasmaram as diretrizes das novas sociedades em seu aspecto mais geral. Outros e outras — e são muitos — buscaram viabilizar esta nova sociedade já não mais no âmbito da filosofia política, mas no âmbito da ciência política e, por vezes, se valeram de um instrumento estratégico, a guerra revolucionária, que derruba o poder burguês e, em seu lugar, coloca o poder nascente do proletariado. Veremos que, hodiernamente, o conceito de estratégia expandiu-se, não estando mais restrito à mera utilização violenta da força; embora Clausewitz, em algumas passagens, deixe claro que, em níveis elevados, estratégia e governo se confundem, é sobretudo do âmbito da organização das batalhas que ele a situa.

É curioso notar que, para outras filosofias políticas, como o anarquismo, a relação entre fins e meios, ou entre estratégia e tática, é diferente. Para os anarquistas, são os meios que determinam os fins, quer dizer, a forma como empreendemos a luta hoje deve refletir a sociedade que almejemos. Ou no dizer de alguém como João Bernardo, que não é anarquista, mas marxista libertário, a autogestão da sociedade prepara-se na autogestão das lutas. Isto é especialmente claro nas proposições dos sindicalistas revolucionários e anarcossindicalistas, que propunham que o sindicato, órgão de organização das lutas operárias contra o capital e sua sociedade, seria o embrião da gestão econômica da nova sociedade.

Para Clausewitz, enfim, a estratégia é a organização das batalhas ou das campanhas, quer dizer, do enfrentamento belicoso, âmbito da tática, dentro dos fins visados pela política. Na batalha, o objetivo é tomar o centro do dispositivo inimigo, se valendo de toda a força possível, a fim de desorganizar este dispositivo e desbaratar as forças adversárias.

Esta visão, um tanto quanto reducionista do intrincado pensamento clausewitziano, foi chamada por alguns comentadores, como Liddel Hart, de estratégia direta. A nosso ver, malgrado deixe passar certas minúcias, a caracterização é válida, e por isso a adotamos, especialmente porque outro de nossos interlocutores,como Beaufre, se valem dela, de modo que a uniformidade terminológica será de grande valia.

Liddel Hart foi um escritor prolífico, sendo autor de muitas obras. Gozou também de certa influência política. Sua principal proposição é a noção de estratégia indireta. Analisando diferentes campanhas ao longo da história, de Lisandro à Segunda Guerra Mundial, Liddel Hart argumenta que as principais vitórias militares da história foram obtidas por meio de uma aproximação indireta ao dispositivo inimigo. Por exemplo, cortar-lhe as linhas de comunicação ou a linha de suprimentos; se valer da ordem oblíqua de batalha ou flanquear, surpreendê-lo. Tudo isso visa a desorganizar a formação de batlha do inimigo enquanto nós mesmos, seguindo o princípio da economia de forças, atuamos em várias frentes, a fim de confundir o inimigo, para só então,  com as forças adversárias desdobradas em muitas frentes, aplicar o golpe decisivo.

Liddel Hart propõe ainda a noção de grande estratégia, quer dizer, a política de guerra, que implica pensar as condições para a paz, sendo esta o verdadeiro objetivo da guerra. Para ele, a diplomacia, a economia e o campo psicossocial são formas de pressionar o adversário, enfraquecê-lo, sangrá-lo, para, só então, atacá-lo. Haveria uma relação dinâmica entre grande estratégia e estratégia, e o bom comandante, submetido, geralmente à grande estratégia, deveria saber manobrar em seus limites de modo a obter resultados favoráveis. Nem sempre, nos diz Liddel Hart, houve uma opção consciente, nas campanhas vitoriosas, pela estratégia indireta; muitas vezes, ela é fruto do contexto. Em sua epígrafe, ele coloca algumas citações, por exemplo, de Sun Tzu, onde se afirma que o maior general é aquele que vence sem sequer lutar. Isto ilustra muita bem sua posição, e dá a tônica de seu livro Strategy. Assim, pode-se dizer que Liddel Hart e Clausewitz divergem, posto que, para este, a forma de vencer a guerra é obter a batalha decisiva entre dois amassamentos humanos contrapostos, com elevado custo humano e material; para Liddel Hart, a batalha é seguimento da manobra, e o melhor general será aquele que ganhar sem combater. Por isso apontamos acima que houve um sistema clausewitziano de guerra, cujo ápice é a Primeira Guerra Mundial, onde os exércitos buscavam, através da conscrição ativa, aumentar seus efetivos e esmagar os adversários. Como se sabe, e Paret trabalha estas questões, Clausewitz não foi um teórico da guerra naval, muito menos das potencialidades da mobilidade que a mecanização desencadeou. Ademais, distinguia entre a guerra absoluta, onde a violência é sempre crescente e ilimitada, e a guerra real, onde a política modula a aplicação de forças. Liddel Hart critica Clausewitz, visto que este não abordou as guerras de objetivo limitado, realidade bélica do mundo, sempre tendo pensado em guerras onde a aniquilação do inimigo era realidade.

Esta característica do pensamento estratégico de Clausewitz é retomada também por Beaufre, o último militar que analisaremos, posto que ele fecha este debate. Beaufre aponta que Clausewitz com suas proposições selou o destino da Europa, posto que sua influência e a busca cega pela aniquilação do inimigo fez com que as potências européias se destruíssem, determinando assim a perda de sua supremacia no mundo. Contudo, ao invés de propor outro modelo estratégico, como o direto ou indireto, Beaufre sustenta que a estratégia é um método de pensamento, é o conhecimento de quando se adotar certos meios, disponibilizados pela política, para certos fins, determinados pela política. Para ele, a estratégia alargou-se e, de mera questão militar, tomou a variadas expressões, para utilizar a terminologia do Exército brasileiro, tais quais a econômica, a diplomática, a científica, a psicossocial e também a militar. A questão é como coordenar estas distintas estratégias objetivando os fins fixados pela política. Pode-se dizer que, para Beaufre, Clausewitz e Liddel Hart estão equivocados, porque a melhor estratégia não é nem a indireta nem a direta, mas a adequada à determinada situação. Ele nos oferece modelos de ação, segundo tenhamos inimigos fortes ou fracos, meios suficientes ou insuficientes, etc. Para, a situação na década de 1960 era a de luta de estratégia indiretas e a URSS estava ganhando, visto o levante geral do Terceiro Mundo contra a supremacia estadunidense. Esta situação de estratégia indireta  era reforçada pela questão da arma atômica, que impedia um conflito aberto entre as potências. No prefácio ao livro de Beaufre, Liddel Hart escreve que concorda com as posições do general francês, de modo a ser possível afirmar que Beaufre fecha um debate de cento e cinqüenta anos.

Um conceito filosófico de estratégia


            Enquanto Beaufre escreve seu livro (1963), Foucault  grajea fama crescente. Em seu segundo livro, Histoire de la folie à l’âge classique (1961), o filósofo francês escreveu um prefácio, depois substituído na década de 1970. Entre um e outro uma diferença: em toda a história da loucura o termo estratégia não aparece, mas o termo stratagème. Já no prefácio de 1972, vemos o termo estratégia se delinear claramente. É como se, no meio do caminho, Foucault repentinamente descobrisse a noção de estratégia e passasse a se valer dela. Se na Archéologie du savoir (1969) ele se valerá deste conceito, mas em um contexto muito próprio, é sobretudo em suas produções da década de 1970, década do Foucault militante, interessado nas relações de poder, que ela se desdobrará. Atualmente pesquisamos exatamente quando o conceito apareceu pela primeira vez, qual seu significado e quais as mutações conceituais que passou. Trata-se de uma pesquisa em curso, de modo que agora apresentaremos os resultados parciais.

            A dar razão a Castro (2016), Foucault utilizou o conceito de estratégia em quatro sentidos diferentes: 1º a racionalidade (meios) utilizada para se obter determinados fins; 2º os movimentos de um jogador em um jogo, a partir do que pensa de como os outros jogadores se comportarão; 3º os movimentos destinados a privar o inimigo de seus instrumentos de luta; por fim, 4º os meios utilizados para manter em funcionamento um dispositivo de poder.

Polemizamos com Castro na medida em que acreditamos poder encontrar em Foucault um outro sentido de estratégia. Em uma discussão, uma interlocutora de Foucault fala que, na obra deste, existe uma estratégia sem sujeito. Com isto ela quer apontar que, dada a belicosidade do devir, cada posicionamento é tático, com conseqüências estratégicas. Assim, pode-se afirmar que a biopolítica é uma estratégia sem sujeito, na medida em que foi se delineando historicamente e, sem ser pensada por alguém enquanto estratégia de dominação social, constituiu-se desta maneira. Como o termo estratégia sem sujeito dá a impressão que não há sujeitos envolvidos, preferimos chamar de estratégia histórica; o que não há é um gênio estrategista, na sombra do mundo, pensando em como dominar a todos. O dispositivo carcerário, o grande internamento, o dispositivo da aliança; todos eles são estratégias históricas, plasmadas nos combates que determinaram o mundo contemporâneo. Certamente há outros e, no trabalho de pesquisa rumo a uma ontologia do presente, devem aparecer.
           
Como se vê, se trata de um conceito filosófico de estratégia que guarda raízes no alargamento contemporâneo da noção de estratégia. Antes tratada como mero negócio do general, passar a aumentar seu escopo com Liddel Hart e sua grande estratégia, até ganhar um alcance inaudito com o general Beaufre. Se na guerra e mesmo na paz, há variadas expressões do poder nacional em disputa, não seria o caso de tomar a própria formação do poder nacional, quer dizer, de uma sociedade com sua expressão política mais comum, o estado, como frutos de uma guerra, de um conflito?

Isto nos encaminha para outra questão. Como se sabe, no curso de 1976 no Collège de France, Foucault dedicou-se a analisar o pensamento de Clausewitz, propondo uma curiosa inversão: se o militar prussiano propunha que a guerra é a política continuada por outros meios, já Foucault pensará que a política é a guerra pensada por outros meios. As diferentes sociedades estariam tomadas por conflitos de toda ordem; isto dá azo para que Gros (2012) fale de um neomarxismo de Foucault. De toda forma, o pensador francês se encaminha no sentido de analisar o discurso histórico de certa nobreza francesa do século XVIII, que  analisava a formação da sociedade francesa em termos de guerra, no caso guerra de raças. O estado seria fruto de um conflito, as leis, a paz civil, tudo isso, prolongação de uma dominação principiada pela guerra. Para manter esta dominação, o estado se vale de variados meios, inclusive de estratégias históricas, como a biopolítica. Mas a luta não se restringe ao estado, englobando meios paraestatais e infraestatais, como se pode ver em Surveiller et punir.

Conclusões


            Passamos em revista alguns dos principais conceitos contemporâneos de estratégia, seguindo um fio de continuidade. É fato que deixamos de lado produção expressiva, como Mão Tse Tung e outros teóricos das guerrilhas, dentre outros. Mas tentamos mostrar como há um diálogo entre pensadores militares de primeira grandeza, buscando incluir Foucault como se não militar, ao menos como tendo contribuído com algum aspecto do pensamento estratégico.

            Vimos que Clausewitz propunha certa estratégia, Liddel Hart outra, e Beaufre arremata a questão, defendendo que a estratégia é sobremaneira um modo de pensamento diante de uma situação de conflito, destinada a fazer com que nossos interesses vençam os do adversário através do que ele chama de dialética das vontades. A estratégia se torna assim, sempre estratégia em certa situação, nunca uma perspectiva absoluta de sempre vencer os conflitos a partir de um trunfo dado de uma vez por todas.

            A contribuição de Foucault, nestes termos, pode ser a de pensar como uma sociedade se torna o que é, como certa característica do poder nacional se formou, os modos como uma sociedade se autoproduz, em uma perspectiva belicosa, de conflito de interesses e posições. Com Foucault, a estratégia adentra o luminoso reino da filosofia para, uma vez lá, fincar raízes e nos ajudar a desvendar o presente e a pensar como alterar uma sociedade visando certo objetivo estratégico, visado pela política, na hierarquia de saberes que estabelecemos.

Bibliografia


BEAUFRE, A.; Introdução à estratégia, RJ: BIBLIEX, 1998
CASTRO, E.; Vocabulário Foucault, BH: Autêntica, 2016, 2ª edição
CHALIAND, G.; Anthologie Mondiale de la stratégie, Paris: Robert Lafont,2009
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CLAUSEWITZ, C. von; Da guerra, SP: Martins Fontes, 1996, 2ª edição
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PARET, P. et ali; Makers of modern strategy: from Machiavelli to the Nuclear age, Princeton: Princeton University Press, 1986

quarta-feira, 9 de outubro de 2019

Marcela III

marcela
um ano sem tua chancela
ainda me vejo em tua janela
chorando sua negação
pois bem,
me disseste não
e eu que só queria tua mão
fiquei sozinho e além
de teu diapasão
nem por isso me senti menos querido
ao contrário, malgrado a oposição
me tomava como seu amigo
e gozava de sua forte mão
hoje, que já faz um ano de sua partida,
a hora passada
da sua inclemente ida
sinto-te ainda mais tua querida
mas em meu fundo digo-te não
não, pelo teu caminho
por ora estou sozinho,
em um mundo vasto como teu coração
Marília, inverno de 2019

quarta-feira, 25 de setembro de 2019

Tradução: Para Dionísio, de Ancreonte

Para Dionísio

Ó senhor, o jovem touro do amor
e as ninfas de aspecto sombrio,
de um lado, a púrpura afrodite
jogam juntas se voltando, de outro,
do alto vendo os cimos,
eu tocando em teu joelho, tu pois querida vinhas agradecida
ouvir os votos, dando-me ouvidos
a boceta [κλευβουλῳ] boa tendo devindo
símbolo do meu amor [ἔρωτ']
ó Deynuse, receba

sábado, 21 de setembro de 2019

Fragmento sobre a éris

Se duas pessoas discordam, há um conflito instalado. Pensar o conflito é tarefa da filosofia. Mas nem todos os filósofos salientam o conflito. Para alguns, há concordância impera, visto que, só há base para o conflito se houver acordo prévio em conflitar: pode-se dizer, mesmo na guerra há certos acordos. A filosofia nasce sob o signo do conflito. O primeiro filósofo que, segundo a tradição, escreveu, Anaximandro, fala do conflito cósmico, da injustiça que as coisas se pagam; mas, se há injustiça, há também, para ele, reparação na ordem do tempo, necessariamente. Esta noção é perpetuada por Heráclito que mostra como mesmo no pólemos, a guerra, há uma harmonie, uma harmonia. Estou dizendo estas coisas porque todas as principais teorias políticas da modernidade estão pautadas na ideia de conflito; o liberalismo e a competição, o nazifascismo e a luta contra os comunistas, o socialismo e a luta de classes. Reconhecer que há conflito é parte fundamental da própria colocação na disputa; posto que, caso não haja sobre o que disputar, não há necessidade sequer de falar. Lembremos as relações que o logos, a racionalidade do mundo, mantém com o verbo légein, dizer, falar. Se há conflito, é porque falamos, expomos nossas divergências. A própria noção de democracia pressupõe o conflito constante, mesmos em suas origens, posto que os gregos eram um povo que disputavam bastante. Quem se furta ao conflito, está condenado a perder posições, posto não reconhecer a necessidade de lutar para vencer. Nesse sentido, o Islã está mais bem paramentado que o cristianismo ou o taoísmo na luta pelo domínio do mundo, posto reconhecer a necessidade da luta para evangelizar. Os próprios protestantes neopentecostais estão na luta constante contra o diabo, que enxergam em toda parte. Se estar em sociedade significa conflito de interesses, penso ser necessário uma analítica que dê conta de mostrar os interesses em conflito em um gradil ontológico. Uma ontologia bélica, que situe o conflito no coração do ser, mas abrindo mão da harmonie heraclitiana, que se replica em Hegel e, por conseguinte, nos marxistas. Na minha modesta opinião, esta é uma tarefa que está para ser feita no campo da filosofia contemporânea.