domingo, 27 de setembro de 2020

Anacreônticas VIII [tradução]

 Não me preocupam as coisas de Giges

de Sardes rei,

nem persigo o fervor

tampouco invejo os tiranos.

Preocupam-me os perfumes

de secar os bigodes

Preocupo-me de, com rosas,

cobrir os cumes das montanhas.

O agora me preocupa

do amanhã, quem sabe?

como ainda o dia é sereno,

então beba e jogue

e faça a libação a Dionísio

não adoecendo, se alguém vier,

não é necessário que se diga para você beber


Anacreonte


Οὔ μοι μέλει τὰΓύγεω,

τοῦ Σαρδίων ἄνακτος,

οὐδ' εἶλέπώμε ζῆλος,

οὐδὲ φθονῶ τυράννοις.

ἐμοὶ μέλει μύροισιν

καταβρέχειν ὑπήνην,

ἐμοὶ μέλει ῥόδοισιν

καταστέφειν κάρηνα.

τὸ σήμερον μέλει μοι,

τὸ δ'αὔριον τίς οἶδεν;

ὡς οὖν ἒτ' ἐστίν,

καὶ πῖνε καὶ κύβευε

καὶ σπένδε τῷ Λυαίῳ,

μὴ νοῦσος, ἤν τις ἐλθῃ,

μὴδεῖν λέγῃ σε πίνειν.


Ἀνακρεων

domingo, 20 de setembro de 2020

Anacreônticas VI [tradução]

 Se, pois, o rico através do ouro

o viver fornece aos mortais,

com firmeza guardando,

para que, ao se aproximar o enterro, 

alguém pegue algo e esteja presente [no sepultamento].

se assim não comprasse 

o viver aos mortais

a que o ouro me serviria?

A ser enterrado estou destinado,

O que, pois, se aprende quando gemo?

O que, pois, conheceste me enviando outrora?

A mim deveio beber,

bebendo o vinho doce

de mim os amigos se aproximam.


῾ο πλοῦτος εἴ γε χρυσοῦ

τὸ ζῆν παρεῖχε θνητοῖς

ἐκατέρουν φυλáττων

ἵν', ἂθανεῖν ἐπέλθῃ

λάβῃ τι καὶπαρέκτῃ.

εἰ δ'οὖ τὸμὴπριάσθαι

τὸ ζῆν ἔνεστι θνητοῖς,

τίχρυσὸς ὠφελεῖ με;

θανεῖν γὰρ εἰ πέπρωται,

τί καὶ μάτην στενάζω;

τίκαὶγνοóυς προπέμπω;

ἐμοὶγένοιτο πίνειν,

πινόντι δ'οἶνον ἡδὺν

ἐμοῖς φίλοις συνεῖναι.

terça-feira, 15 de setembro de 2020

Notas sobre a conjuntura em 15/09/2020

 Os inimigos são fortes e avançam em todas as frentes. Direitos sociais, ataques econômicos, meio-ambiente, informações. A sociedade é um verdadeiro campo de batalhas, e nessa guerra as forças progressistas estão sofrendo derrotas atrás de derrotas no Brasil e no mundo, não poupando nada, até mesmo na civilizada  Europa. O ano de 2020 não veio para brincadeiras. E o prognóstico para os próximos anos não parece muito bom. As esparsas ilhas de boas notícias são engolidas pela onda de más novas criando um clima, nos setores progressistas mais avançados na luta social de desespero, desesperança e desamparo. Do lado dos inimigos de um futuro digno do nome se avolumam recursos, apoiados que são pela maior máquina de guerra já feita, os EUA. Mesmo com uma eventual vitória de forças menos obscuras na terra de Mickey Mouse a situação deve permanecer crítica. Isso porque a direita que se aliou aos comunistas da URSS para vencer a guerra, uma direita formada nos cânones do liberalismo, está sob ataque de novos arautos antiluministas, que jogam contra os valores que alçaram a burguesia ao topo do planeta, valores como liberdade de informação, de organização, crença nos poderes da razão, confiança na ciência e uma perspectiva de que a humanidade poderia progredir em uma grande irmandade, sob os auspícios do livre-comércio e do capitalismo, em uma marcha triunfal cujo ápice seria dado somente pelo criador. Mas o capitalismo, debelado por crises contínuas e pela necessidade de crescimento contínuo, enfrenta limites. Para funcionar, o capitalismo precisa aumentar sua área de  escopo. Ao mesmo tempo, o neoliberalismo, que vem sendo posto em prática em boa parte do planeta há quase meio século, redundou em uma pauperização das classes trabalhadoras e até mesmo da classe média. Ademais, os recursos ambientais, a matéria prima da qual se nutre qualquer indústria, escasseia, impondo limites claros ao alargamento do sistema. A contínua propaganda nas mídias da feliz Europa e dos bem sucedidos EUA atraem multidões de miseráveis dos países periféricos, que fogem das inóspitas condições de vida que esse mesmo capitalismo, a nível global, gera nas rebordas do sistema. A conta não fecha: como conciliar a expectativa de melhora de vida das massas empobrecidas e desvalidas, prometidas pela propaganda do self-made man, com recursos escassos e uma lógica social que se alimenta da desigualdade? Somente com uma mentalidade aristocrática, onde as desigualdades sejam naturalizadas ou até mesmo divinizadas: se você não consegue ter uma boa vida, é vontade divina, inscrita nas fibras mesmas do mundo. Na rede mundial de computadores além desse pensamento que luta contra as conquistas do Iluminismo, expressão maior de uma burguesia ciosa de suas possibilidades e desejosa de poder, em guerra renhida contra a aristocracia feudal e o absolutismo de caráter divino, há expressões ainda mais cínicas de uma parcela da sociedade, que defende até mesmo a legalização da venda de órgãos humanos; e essas opiniões, dos limbos de pensadores obscuros, são amplificadas por setores dos tradicionais jornalões do país. Partes da esquerda, apoiadas em pensadores que criticavam as hipocrisias do Iluminismo, como o colonialismo ou a pesada disciplina social que pairava sobre as camadas marginalizadas da sociedade, viu seu pensamento ser virado contra si próprio por esses setores de uma direita criptofascista ou abertamente fascista; ironia do destino? Nas penas da nova direita, inimigos imaginários, como os gigantes de Quixote, são criados e qualquer avanço social é denunciado como comunismo, alimentando em países como os EUA ou Brasil uma onda de ódio contra minorias sociais, cujos direitos, frutos da própria modernização capitalista, são apontados como desagregadores dos últimos vestígios da sociedade pré-Iluminista que essa nova velha direita quer defender. É um pensamento que ultrapassa os razoados da lógicas posto que, tanto se apoia nas últimas tecnologias para ser espraiado, como defende a continuidade de expansão do sistema, — implicando na defesa das conquistas econômicas e sociais da ciência moderna — ao mesmo tempo que se opõe á algumas dessas conquistas, como feminismo, antirracismo, conquistas de gênero etc. Esquizofrênicos, não raro se poiam em uma espécie de pensamento mágico. A lógica das redes sociais, como Facebook, a mais difundida dentre elas, alimenta esse estrume mental, na medida em que isola os indivíduos em bolhas de opinião, criando a sensação de que todos concordam comigo. Assim, os delírios individuais, cuidadosamente implantados por think thanks, páginas e sites financiados por grandes bilionários e agências de inteligência, se desdobra e se vê confirmado do assentimento do outro.

                O sentimento de desespero, que toma conta dos setores progressistas, é outra arma nessa guerra, na medida em que pessoas doentes não podem lutar. Byung Chul Han trabalha com o conceito de psicopolítica, que seria um aprofundamento da lógica biopolítica neoliberal, tal qual descrita por Foucault. O capitalismo não se apropria somente do mais-valor produzido pelo conjunto dos trabalhadores, como lhes arremata até mesmo sua subjetividade, plasmando sujeitos manipuláveis, controláveis, fáceis de serem conduzidos, ou seja, governados — e não somente por mecanismos clássicos de governo. É na formação de um ideário condizente com as necessidades do sistema que se realiza o capitalismo, garantindo a perenidade de um sistema que se encontra diante de limites de difícil ultrapassagem.

                A um quadro já difícil, vem se ligar que os adversários do sistema não se encontram em condições de travar uma luta adequada. A velha classe trabalhadora sindicalizada foi destruída no Ocidente pelos avanços do neoliberalismo, pensado, justamente, como estratégia para quebrar as últimas resistências dessa capa social. O operariado e suas lutas, que garantiram um mínimo de civilidade ao sistema, se encontra desguarnecido, incapaz de fornecer  o mesmo apoio de outrora, mesmo porque parcelas consideráveis de seus membros foram seduzidos pelas promessas do sistema e se encontram presos nas ideias de meritocracia, empreendedorismo ou, quando não, atados á pensamentos religiosos muito distantes de uma parcela progressistas do operariado católico de outrora. O principal partido de esquerda no Brasil, o PT, se rendeu completamente a uma lógica eleitoreira, desprezando e mesmo sabotando as lutas dos setores oprimidos que ainda ousam se levantar, essencialmente funcionários públicos. As alternativas no horizonte, embora possuam muitas vezes bons programas e boa ideias, tampouco acreditam até o fim nos potenciais das lutas mais corporais dos marginalizados, isto quando possuem representação sindical séria.

                Nesse jogo, de adversários tão diferentes, ainda temos que nos bater contra os setores tucanos, que se valem de suas posições na mídia para triturar a esquerda, ao mesmo tempo em que dão guarida até mesmo a anarcocapitalistas, e todo pensamento progressista é barbarizado como démodé ou atentatório aos valores do Ocidente.

                O velho mundo está em ruínas. O Ocidente, tão defendido pelo baronato do pensamento liberal brasileiro da mídia amarela, está se desfazendo de um ou outro modo. O centro político perde força. E, em uma situação onde a maior parte da esquerda depôs as armas, o fascismo levanta cabeça e se propõem a avançar. O farol liberal do Ocidente volta a ser a Europa. Mas a história do liberalismo não é como a Rede Globo mostra. O projeto liberal historicamente está ligado a um projeto colonizador. O projeto fascista, do mesmo modo, mas sem as peias e as meias palavras que um liberal bem-educado ainda possa ter.

                Para falar claramente: a hegemonia atlântica euro-americana construída no pós-guerra, rivalizada pela URSS, está se desmanchando. O centro econômico do mundo será transferido tornará nas próximas décadas para a bacia do Pacífico, impulsionada pela China. Para defender o velho mundo, os setores mais afeitos á estratégia das capas dominantes pretendem se fiar em um pensamento claramente xenofóbico, que reafirme o império do homem burguês branco e instaure um Império que nunca acabe ou, no mínimo, outro século americano, potencializado pelo avanço das tecnologias de conquista espacial. Se o garant da velha ordem — em crise contínua, com um Estado fortemente endividado, que depende da liderança em xeque do dólar —se encontra sem condições de manter a ordem global, a nova ordem somente pode surgir de um conflito aberto entre as potências. O Império previsto por Negri e Hardt não se realizou; em seu lugar, emergiu um mundo de conflitos latentes, embebido em gasolina, cuja menor faísca pode desencadear um conflito de proporções titânicas.

                Somente as populações marginalizadas desses países, as periferias das respectivas nações, podem impedir uma guerra dessas proporções. Se o planeta encontra seus limites físicos, se o crescimento contínuo, substrato do capitalismo como conhecemos, se tornou inviável, se já rareiam os lugares para onde se expandir sem prejudicar seriamente os mecanismo de equilíbrio ecológico já abalado do planeta (lugares como a Amazônia, o Pantanal e as selvas africanas)  , é porque uma nova ordem social se faz necessária. Quem serão os atores que imporão uma ordem social diferente? A velha classe trabalhadora branca estadunidense, verdadeira chave de um novo mundo, parece ter se pendido para os lado do trumpismo.

                Por isso, porque parte importante da organização mesma do mundo está ao lado das forças que impulsionam uma nova ordem global, é necessário manter a esperança. Como se dizia há não muitos anos, pensar globalmente, atuar localmente. Mesmo no coração da máquina de guerra estadunidense movimentos inesperados se fazem, como o Black Lives Matter, que põe em xeque o funcionamento racista daquele Estado sem o qual ele não pode se manter. Em um país onde os armamentos são facilmente adquiridos uma explosão de conflitos armados nas ruas pode se fazer a qualquer instante.

                As batalhas que temos pela frente não serão fáceis. Mas é preciso, ao mesmo tempo em que se analisa friamente a correlação, ter otimismo em nossa capacidade de lutar. Um exército sem moral dificilmente ganha. Um exército com moral alta, que sabe que a única perspectiva de sobrevivência da espécie ou de seu povo reside nas forças que ele empunha, esse exército pode brigar até a morte e reverter situações de inferioridade numérica ou bélica como provam os vietnamitas e certos povos na África. E ainda que perca, travará uma grande batalha.  

segunda-feira, 14 de setembro de 2020

Marcela IV

 As horas correram

mas a ferida não fechou:

Aonde você estaria agora,

meu amor?


Já foram tantos dias,

já se passaram tantas estações,

e nesta poesia

se encontram nossos corações.


Ah, minha querida,

sinto tanto sua falta

Mas sei que descansa

do mundo que te esfalfa


Algum dia ainda vou te visitar.

Nessa hora hão de se unir

Minha terra e o teu mar.


Por enquanto, fica o vazio.

Mas, diante do abismo,

como tu sempre rias

eu também rio.


E assim que de ti 

vou sempre me lembrar

com teu largo sorriso

a minha jornada a abrilhantar


Este poema já está comprido.

Na lembrança viva te digo: adeus, querida!

Você responde: até breve, querido


E é até logo mesmo

Porque na poeira fria,

a esmo, cedo ou tarde irei te encontrar

eu, com minha terra,

você com teu mar.


Ribeirão Preto, 14 de setembro de 2020

Oração do café

Bendito seja o café


Bendito seja de dia

bendito seja de noite

bendito no batente,

o moderno açoite


Bendito na noite fria

bendito no dia quente,

mas ele deixa amarelo,

deixa amarelo o dente


O velho café

que nos trouxe tanta riqueza

e no sertão bandeirante fez do negro

e do índio presa


O café maquinista

de São Paulo

terra de conquista,

hoje apanágio do barista


O café tão bem falado

sob a mira dos coronéis

deixou o povo calado


Mas não culpemos a sagrada bebida

também a cerveja, nossa melhor amiga,

hoje fabricam de dourada espiga

e a usam para explorar


Ah, café, construiste nosso lar

lar tão surrado,

se hoje no coração do pantanal e do cerrado

indene o fogo está a crepitar


Que da terra queimada

possa um novo Brasil nascer

um Brasil da mão calejada

e Bolsonaro, ele que vá se f...der!


Ribeirão Preto, setembro de 2020

terça-feira, 8 de setembro de 2020

7 de setembro [poema]

 Assertar nem sempre é acertar

O presidente só asserta com dois esses

Quando mais ele assevera,

Mais o Brasil desvanece

 

Vamos, meu povo, não podemos ficar assim

Está pior

Vai ficar ainda mais ruim

Se não agirmos pra melhor

 

O tempo  é esse:

Reage Brasil!

Independência não é quermesse

É ardil!


Ribeirão Preto, setembro de 2020

segunda-feira, 7 de setembro de 2020

Análise de conjuntura

 Um dos primeiros tratados de política foi o livro homônimo de Aristóteles, Política. Neste como em outros textos o brilhantismo do Estagirita, como também é conhecido o filósofo, aflora. No atual momento, me chama atenção em específico a parte em que ele aborda as mudanças de regime. Aristóteles afirma que a base de um estado estável é a existência de uma classe média [to mesoi] firme, bem estabelecida. Quanto mais bem assentada for a classe média, ele nos diz, tanto mais firme será o regime. Tornada débil, as chances de revolução aumentam, com a consequente mudança de organização social. No pós -guerra, essa parece ter sido uma lição aprendida pelo Ocidente. Não só se verificou um crescimento econômico sem precedentes, como o produto social era dividido através do Estado, ou, talvez, mais bem dividido do que atualmente. Essa prosperidade caçou o espírito revolucionário das classes trabalhadoras nos países ricos em plena guerra fria,restringindo este aos guetos ou à populações ou países marginalizados, que não tinham parte na bonança global. Veio a contrarrevolução neoliberal e o assim chamado Estado de bem-estar social começou a ser dilapidado. As elites globais bem como as regionais passaram a apostar em um empobrecimento das classes inferiores, e buscavam quebrar a espinha dorsal do movimento operário de então, os sindicatos, em um contexto de URSS combalida e enfrentando dificuldades internas, como dissidências. Os anos correram, a URSS caiu, e a estratégia se aprofundou. O neoliberalismo e sua terceirização acabou com o poder dos sindicatos. A social democracia se bandeou para outro time e os empregos industriais do Ocidente migraram para o outro lado do mundo. Agora, no Ocidente, temos uma mistura de empregos precários e pauperização. A saudade de um tempo ido alimenta a extrema direita, e a esquerda, desprovida de sua base operária, encontra-se defendendo pautas rigidamente liberais, como casamento LGBT ou uso recreativo da maconha. Desorganizados, tudo se tolhe dos pobres. Se esse coquetel de condições é molotov, bastante explosivo, a ausência de uma perspectiva de luta somada a uma esquerda totalmente eleitoreira e adaptada dificulta o tracejo de estratégias. Em algum sentido, regredimos aos primórdios do capitalismo; em outro, estamos ainda piores do que lá, visto que nos falta o sentido de coletividade que os trabalhadores do campo chegando à cidade possuíam. Para ser viável e fugir das pequenas revoltas, como Junho, e suas pequenas vitórias, é necessário organização. Não um ou outro partido; organizações de classe. A crise não é de direção, mas de organicidade. Superar essa situação, com organizações de bairro, de estudo ou de trabalho é nossa principal tarefa. Nesse último caso, agravado pela burocracia, peleguismo e baixo número de militantes. Eu mesmo não me encontro militando após um grande período de atuação contínua. Convencer os velhos militantes é parte da tarefa. Ninguém falou que seria fácil mudar o mundo. A desesperança joga para o partido adversário. Sejamos crentes que a situação é explosiva e atuemos para potencializá-la em processos consistentes; afinal, trazemos um mundo novo em nossos corações.

sábado, 5 de setembro de 2020

Prefácio de um livro a escrever [nacionalismo e filosofia]

 

A filosofia brasileira é maltratada nos departamentos. Preferimos os Fischer, Hartman, Bonhomme e Stone. O filósofo de cepa estrangeira goza de maior reputação entre nós que o legítimo produto desta terrinha, para não dizer dos nossos companheiros de viagem latino-americanos. Preconceito tolo, fundado em um pathos  de pertença artificial ao centro como se, ao debatermos com os pensadores do centro, estivéssemos simbolicamente nos inserindo, com nossa frágil carne de Terceiro Mundo, no cerne mesmo do debate. Claro, há de se argumentar que as grandes produções estão no coração do sistema global e que a nós, fracos em todo o resto, a glosa da fina flor do núcleo do pensamento que vem transformando o globo nos últimos milênios é mais proveitosa que a discussão com esses caramelos da nessa nossa.

Há mesmo um mito de que não haveria filosofia brasileira, de que nessa terra de palmeira se sabiás, por uma mística força incontrolável do universo, o pensamento filosófico não tenha conseguido se instalar com jeito, que a reflexão sob o sol dos trópicos tenha cozinhado os cérebros da inteligência dos filhos que não fogem à luta, redundando em uma cultura de comentários e notas de rodapé aos grandes sistemas.

O conflito instalado, afora tudo isso, entre uma civilização de colonos, colonizados e colonizadores, herdeiros de prisca cultura, que remete às areias do Egito e aos zigurates da Babilônia, sem contar os tão repisados helenos, e as delícias de uma terra cheia de gente saradinha, dominada e exterminada; enfim, tudo isso só vem agravar uma falta de pertença, de sentimento de gozo das próprias paragens que nos afligem. Esses elementos foram elevados à milésima potência por um presidente patriota — patriotário para muitos — que prefere entregar o pouco que conquistamos ao invés de, segundo sua proclamada posição, investir no autóctone, no apanágio dessas plagas, fruto não mais encontrado em nenhum outro lugar. E a claque aplaude enquanto o país explode.

Conheci Cruz Costa em meados de 2012, enquanto fazia, curiosamente, uma leitura sistemática da história da filosofia, seguindo o cânone, quer dizer, principiava pelos gregos e me dirigia aos cimos da metafísica. O contato com Cruz Costa foi provavelmente mediado pelo C.A. de Filosofia da USP, que carregava o nome do digníssimo até bem pouco tempo. A leitura de seus livros destrói a maior parte destes mitos, como o da inexistência da filosofia brasileira. Não só existe, como é secular, remetendo ao projeto mesmo de colonização da terra brasilis. Segundo Cruz Costa, a marca dessa filosofia seria suas preocupações práticas, orientadas para a conquista do sertão, para o desbravamento de terras desconhecidas aos europeus, com suas ervas, bichos e gentes de outra cepa, estranha aos boreais ventos do Norte.

Cruz Costa escreve no rebote dos movimentos que sacudiram a Velha República, e se liga a um projeto de desenvolvimento do país, cuja figura maior foi Vargas, figura polêmica e central nos entremeios dessa nação gigante pela própria natureza. Considerado primeiro estudante da USP, mais tarde professor na mesma instituição, Cruz Costa legou ao país uma filosofia preocupada com as questões nacionais, com o desenrolar de um povo no país.

O contato com Álvaro Viera Pinto foi mais tardio. O conheci, creio, através da crítica que dele faz Ivan Domingues. Vieira Pinto foi um pesquisador do ISEB, o famoso instituto desenvolvimentista que, no pouco tempo de vida, também se ligou a um projeto de desenvolvimento nacional. Ele é mais explícito que Cruz Costa. Para ele, à filosofia caberia um papel de coordenação, de direção mesma, do processo de desenvolvimento em sua luta contra as forças regressivas, na época materializadas em autores como Gudin.

Domingues considera que Cruz Costa e Viera Pinto, por defenderem a ideia de autores fortemente engajados na transformação da realidade social do paíss, estariam ultrapassados e que agora seria a hora do intelectual global, conectado com os problemas do globo. O nacionalismo, verdadeira relíquia de era pristinas, teria se ido. Soa a hora do global thinker, do engajamento global, do pensamento da humanidade como conjunto.

O professor mineiro, Ivan Domingues, deixa clara sua influência: Weber, verdadeiro arauto do liberalismo, ainda que de um liberalismo inteligente, refinado. Nós, por nossa via, não almejamos um mundo de livre circulação de capitais, mas um planeta interligado por fortes laços de solidariedade, fundados da irmandade geral dos povos, a qual, por sua vez, se referencia em verdadeira integração global. Não só capitais, mas pessoas, ideias, orientadas para o autêntico bem e prosperidade planetárias.

Safatle, em um artigo publicado há não muitos anos, defendia uma ideia mais refinada, mas de cepa símile, ao propugnar que a filosofia brasileira deveria ser abandonada, tanto tendo em vista as fortes interlocuções filosóficas, com franceses comentando alemães, por exemplo, quanto a realidade de que a verdade é universal, ou seja, não possui nacionalidade. Safatle se esquece assim que a verdade não é um nome atemporal, mas que ela é conquista histórica, refinada ao longo das eras e das geografias. Para que alcançássemos o monismo, depois o materialismo, os milênios correram, e não sozinhos, mas deixando atrás de si rastros de sangue. A verdade da economia dos EUA não é a verdade da economia do Brasil. O que é bom para os EUA, enquanto país, não é bom para nosso país. A classe trabalhadora daquele país goza dos benefícios indiretos da dominação dessa terra sobre a nossa. Claro, pode-se argumentar que a unidade internacional dos povos é necessária e que, enquanto classe, partilhamos os mesmos objetivos. É fato, essa verdade é, mesmo, transhistórica, tanto mais se apelarmos para um nível ainda mais fundamental e apelarmos para a realidade das necessidades humanas, onde, de olhos puxados, de pele negra ou cabelos loiros, todos nos encontramos. Mas a realidade é que essas populações, em sua esmagadora maioria, vem apoiando um outro tipo de projeto, fundado não no entendimento universal dos povos, mas na continuidade de uma intenção e ação que nos oprime enquanto nações historicamente exploradas e saqueadas. Impossível não lembrar do texto do infeliz senador Cristovam Buarque: quando quiserem a irmandade um universal, pois bem, seremos os primeiros a aceita-la; mas enquanto insistirem em políticas que só beneficiam uma parcela de sua própria população, seremos os professores de uma nova realidade que, cada vez mais, precisa se insinuar.

O nacionalismo filosófico, na esteira de Cruz Costa e Pinto, insiste nesse gênero de ideias. O pensamento não pode se deixar perder nos píncaros da metafísica; deve estar ancorado nas grandes questões nacionais, se possível oferecendo os instrumentos para se apreender essa realidade  permitir que outras ciências construam os modelos que nos livrem do fardo da exploração imperialista, das regras dos organismos de comércio, da submissão militar e cultural, etc.

Consigo me recordar de um texto, creio que de Mário de Andrade. Nele, o velho literato afirmava que não seria nos dissolvendo na cultura universal que contribuiríamos com a mesma, mas, ao contrário, sendo resolutos brasileiros, exercendo nossa antropofagia de tupinambás, que poderíamos contribuir com o gênero humano.

 É nesse gênero de ideias que depositamos nossas forças, fazemos votos e por elas militamos.