terça-feira, 15 de setembro de 2020

Notas sobre a conjuntura em 15/09/2020

 Os inimigos são fortes e avançam em todas as frentes. Direitos sociais, ataques econômicos, meio-ambiente, informações. A sociedade é um verdadeiro campo de batalhas, e nessa guerra as forças progressistas estão sofrendo derrotas atrás de derrotas no Brasil e no mundo, não poupando nada, até mesmo na civilizada  Europa. O ano de 2020 não veio para brincadeiras. E o prognóstico para os próximos anos não parece muito bom. As esparsas ilhas de boas notícias são engolidas pela onda de más novas criando um clima, nos setores progressistas mais avançados na luta social de desespero, desesperança e desamparo. Do lado dos inimigos de um futuro digno do nome se avolumam recursos, apoiados que são pela maior máquina de guerra já feita, os EUA. Mesmo com uma eventual vitória de forças menos obscuras na terra de Mickey Mouse a situação deve permanecer crítica. Isso porque a direita que se aliou aos comunistas da URSS para vencer a guerra, uma direita formada nos cânones do liberalismo, está sob ataque de novos arautos antiluministas, que jogam contra os valores que alçaram a burguesia ao topo do planeta, valores como liberdade de informação, de organização, crença nos poderes da razão, confiança na ciência e uma perspectiva de que a humanidade poderia progredir em uma grande irmandade, sob os auspícios do livre-comércio e do capitalismo, em uma marcha triunfal cujo ápice seria dado somente pelo criador. Mas o capitalismo, debelado por crises contínuas e pela necessidade de crescimento contínuo, enfrenta limites. Para funcionar, o capitalismo precisa aumentar sua área de  escopo. Ao mesmo tempo, o neoliberalismo, que vem sendo posto em prática em boa parte do planeta há quase meio século, redundou em uma pauperização das classes trabalhadoras e até mesmo da classe média. Ademais, os recursos ambientais, a matéria prima da qual se nutre qualquer indústria, escasseia, impondo limites claros ao alargamento do sistema. A contínua propaganda nas mídias da feliz Europa e dos bem sucedidos EUA atraem multidões de miseráveis dos países periféricos, que fogem das inóspitas condições de vida que esse mesmo capitalismo, a nível global, gera nas rebordas do sistema. A conta não fecha: como conciliar a expectativa de melhora de vida das massas empobrecidas e desvalidas, prometidas pela propaganda do self-made man, com recursos escassos e uma lógica social que se alimenta da desigualdade? Somente com uma mentalidade aristocrática, onde as desigualdades sejam naturalizadas ou até mesmo divinizadas: se você não consegue ter uma boa vida, é vontade divina, inscrita nas fibras mesmas do mundo. Na rede mundial de computadores além desse pensamento que luta contra as conquistas do Iluminismo, expressão maior de uma burguesia ciosa de suas possibilidades e desejosa de poder, em guerra renhida contra a aristocracia feudal e o absolutismo de caráter divino, há expressões ainda mais cínicas de uma parcela da sociedade, que defende até mesmo a legalização da venda de órgãos humanos; e essas opiniões, dos limbos de pensadores obscuros, são amplificadas por setores dos tradicionais jornalões do país. Partes da esquerda, apoiadas em pensadores que criticavam as hipocrisias do Iluminismo, como o colonialismo ou a pesada disciplina social que pairava sobre as camadas marginalizadas da sociedade, viu seu pensamento ser virado contra si próprio por esses setores de uma direita criptofascista ou abertamente fascista; ironia do destino? Nas penas da nova direita, inimigos imaginários, como os gigantes de Quixote, são criados e qualquer avanço social é denunciado como comunismo, alimentando em países como os EUA ou Brasil uma onda de ódio contra minorias sociais, cujos direitos, frutos da própria modernização capitalista, são apontados como desagregadores dos últimos vestígios da sociedade pré-Iluminista que essa nova velha direita quer defender. É um pensamento que ultrapassa os razoados da lógicas posto que, tanto se apoia nas últimas tecnologias para ser espraiado, como defende a continuidade de expansão do sistema, — implicando na defesa das conquistas econômicas e sociais da ciência moderna — ao mesmo tempo que se opõe á algumas dessas conquistas, como feminismo, antirracismo, conquistas de gênero etc. Esquizofrênicos, não raro se poiam em uma espécie de pensamento mágico. A lógica das redes sociais, como Facebook, a mais difundida dentre elas, alimenta esse estrume mental, na medida em que isola os indivíduos em bolhas de opinião, criando a sensação de que todos concordam comigo. Assim, os delírios individuais, cuidadosamente implantados por think thanks, páginas e sites financiados por grandes bilionários e agências de inteligência, se desdobra e se vê confirmado do assentimento do outro.

                O sentimento de desespero, que toma conta dos setores progressistas, é outra arma nessa guerra, na medida em que pessoas doentes não podem lutar. Byung Chul Han trabalha com o conceito de psicopolítica, que seria um aprofundamento da lógica biopolítica neoliberal, tal qual descrita por Foucault. O capitalismo não se apropria somente do mais-valor produzido pelo conjunto dos trabalhadores, como lhes arremata até mesmo sua subjetividade, plasmando sujeitos manipuláveis, controláveis, fáceis de serem conduzidos, ou seja, governados — e não somente por mecanismos clássicos de governo. É na formação de um ideário condizente com as necessidades do sistema que se realiza o capitalismo, garantindo a perenidade de um sistema que se encontra diante de limites de difícil ultrapassagem.

                A um quadro já difícil, vem se ligar que os adversários do sistema não se encontram em condições de travar uma luta adequada. A velha classe trabalhadora sindicalizada foi destruída no Ocidente pelos avanços do neoliberalismo, pensado, justamente, como estratégia para quebrar as últimas resistências dessa capa social. O operariado e suas lutas, que garantiram um mínimo de civilidade ao sistema, se encontra desguarnecido, incapaz de fornecer  o mesmo apoio de outrora, mesmo porque parcelas consideráveis de seus membros foram seduzidos pelas promessas do sistema e se encontram presos nas ideias de meritocracia, empreendedorismo ou, quando não, atados á pensamentos religiosos muito distantes de uma parcela progressistas do operariado católico de outrora. O principal partido de esquerda no Brasil, o PT, se rendeu completamente a uma lógica eleitoreira, desprezando e mesmo sabotando as lutas dos setores oprimidos que ainda ousam se levantar, essencialmente funcionários públicos. As alternativas no horizonte, embora possuam muitas vezes bons programas e boa ideias, tampouco acreditam até o fim nos potenciais das lutas mais corporais dos marginalizados, isto quando possuem representação sindical séria.

                Nesse jogo, de adversários tão diferentes, ainda temos que nos bater contra os setores tucanos, que se valem de suas posições na mídia para triturar a esquerda, ao mesmo tempo em que dão guarida até mesmo a anarcocapitalistas, e todo pensamento progressista é barbarizado como démodé ou atentatório aos valores do Ocidente.

                O velho mundo está em ruínas. O Ocidente, tão defendido pelo baronato do pensamento liberal brasileiro da mídia amarela, está se desfazendo de um ou outro modo. O centro político perde força. E, em uma situação onde a maior parte da esquerda depôs as armas, o fascismo levanta cabeça e se propõem a avançar. O farol liberal do Ocidente volta a ser a Europa. Mas a história do liberalismo não é como a Rede Globo mostra. O projeto liberal historicamente está ligado a um projeto colonizador. O projeto fascista, do mesmo modo, mas sem as peias e as meias palavras que um liberal bem-educado ainda possa ter.

                Para falar claramente: a hegemonia atlântica euro-americana construída no pós-guerra, rivalizada pela URSS, está se desmanchando. O centro econômico do mundo será transferido tornará nas próximas décadas para a bacia do Pacífico, impulsionada pela China. Para defender o velho mundo, os setores mais afeitos á estratégia das capas dominantes pretendem se fiar em um pensamento claramente xenofóbico, que reafirme o império do homem burguês branco e instaure um Império que nunca acabe ou, no mínimo, outro século americano, potencializado pelo avanço das tecnologias de conquista espacial. Se o garant da velha ordem — em crise contínua, com um Estado fortemente endividado, que depende da liderança em xeque do dólar —se encontra sem condições de manter a ordem global, a nova ordem somente pode surgir de um conflito aberto entre as potências. O Império previsto por Negri e Hardt não se realizou; em seu lugar, emergiu um mundo de conflitos latentes, embebido em gasolina, cuja menor faísca pode desencadear um conflito de proporções titânicas.

                Somente as populações marginalizadas desses países, as periferias das respectivas nações, podem impedir uma guerra dessas proporções. Se o planeta encontra seus limites físicos, se o crescimento contínuo, substrato do capitalismo como conhecemos, se tornou inviável, se já rareiam os lugares para onde se expandir sem prejudicar seriamente os mecanismo de equilíbrio ecológico já abalado do planeta (lugares como a Amazônia, o Pantanal e as selvas africanas)  , é porque uma nova ordem social se faz necessária. Quem serão os atores que imporão uma ordem social diferente? A velha classe trabalhadora branca estadunidense, verdadeira chave de um novo mundo, parece ter se pendido para os lado do trumpismo.

                Por isso, porque parte importante da organização mesma do mundo está ao lado das forças que impulsionam uma nova ordem global, é necessário manter a esperança. Como se dizia há não muitos anos, pensar globalmente, atuar localmente. Mesmo no coração da máquina de guerra estadunidense movimentos inesperados se fazem, como o Black Lives Matter, que põe em xeque o funcionamento racista daquele Estado sem o qual ele não pode se manter. Em um país onde os armamentos são facilmente adquiridos uma explosão de conflitos armados nas ruas pode se fazer a qualquer instante.

                As batalhas que temos pela frente não serão fáceis. Mas é preciso, ao mesmo tempo em que se analisa friamente a correlação, ter otimismo em nossa capacidade de lutar. Um exército sem moral dificilmente ganha. Um exército com moral alta, que sabe que a única perspectiva de sobrevivência da espécie ou de seu povo reside nas forças que ele empunha, esse exército pode brigar até a morte e reverter situações de inferioridade numérica ou bélica como provam os vietnamitas e certos povos na África. E ainda que perca, travará uma grande batalha.  

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