sábado, 5 de setembro de 2020

Prefácio de um livro a escrever [nacionalismo e filosofia]

 

A filosofia brasileira é maltratada nos departamentos. Preferimos os Fischer, Hartman, Bonhomme e Stone. O filósofo de cepa estrangeira goza de maior reputação entre nós que o legítimo produto desta terrinha, para não dizer dos nossos companheiros de viagem latino-americanos. Preconceito tolo, fundado em um pathos  de pertença artificial ao centro como se, ao debatermos com os pensadores do centro, estivéssemos simbolicamente nos inserindo, com nossa frágil carne de Terceiro Mundo, no cerne mesmo do debate. Claro, há de se argumentar que as grandes produções estão no coração do sistema global e que a nós, fracos em todo o resto, a glosa da fina flor do núcleo do pensamento que vem transformando o globo nos últimos milênios é mais proveitosa que a discussão com esses caramelos da nessa nossa.

Há mesmo um mito de que não haveria filosofia brasileira, de que nessa terra de palmeira se sabiás, por uma mística força incontrolável do universo, o pensamento filosófico não tenha conseguido se instalar com jeito, que a reflexão sob o sol dos trópicos tenha cozinhado os cérebros da inteligência dos filhos que não fogem à luta, redundando em uma cultura de comentários e notas de rodapé aos grandes sistemas.

O conflito instalado, afora tudo isso, entre uma civilização de colonos, colonizados e colonizadores, herdeiros de prisca cultura, que remete às areias do Egito e aos zigurates da Babilônia, sem contar os tão repisados helenos, e as delícias de uma terra cheia de gente saradinha, dominada e exterminada; enfim, tudo isso só vem agravar uma falta de pertença, de sentimento de gozo das próprias paragens que nos afligem. Esses elementos foram elevados à milésima potência por um presidente patriota — patriotário para muitos — que prefere entregar o pouco que conquistamos ao invés de, segundo sua proclamada posição, investir no autóctone, no apanágio dessas plagas, fruto não mais encontrado em nenhum outro lugar. E a claque aplaude enquanto o país explode.

Conheci Cruz Costa em meados de 2012, enquanto fazia, curiosamente, uma leitura sistemática da história da filosofia, seguindo o cânone, quer dizer, principiava pelos gregos e me dirigia aos cimos da metafísica. O contato com Cruz Costa foi provavelmente mediado pelo C.A. de Filosofia da USP, que carregava o nome do digníssimo até bem pouco tempo. A leitura de seus livros destrói a maior parte destes mitos, como o da inexistência da filosofia brasileira. Não só existe, como é secular, remetendo ao projeto mesmo de colonização da terra brasilis. Segundo Cruz Costa, a marca dessa filosofia seria suas preocupações práticas, orientadas para a conquista do sertão, para o desbravamento de terras desconhecidas aos europeus, com suas ervas, bichos e gentes de outra cepa, estranha aos boreais ventos do Norte.

Cruz Costa escreve no rebote dos movimentos que sacudiram a Velha República, e se liga a um projeto de desenvolvimento do país, cuja figura maior foi Vargas, figura polêmica e central nos entremeios dessa nação gigante pela própria natureza. Considerado primeiro estudante da USP, mais tarde professor na mesma instituição, Cruz Costa legou ao país uma filosofia preocupada com as questões nacionais, com o desenrolar de um povo no país.

O contato com Álvaro Viera Pinto foi mais tardio. O conheci, creio, através da crítica que dele faz Ivan Domingues. Vieira Pinto foi um pesquisador do ISEB, o famoso instituto desenvolvimentista que, no pouco tempo de vida, também se ligou a um projeto de desenvolvimento nacional. Ele é mais explícito que Cruz Costa. Para ele, à filosofia caberia um papel de coordenação, de direção mesma, do processo de desenvolvimento em sua luta contra as forças regressivas, na época materializadas em autores como Gudin.

Domingues considera que Cruz Costa e Viera Pinto, por defenderem a ideia de autores fortemente engajados na transformação da realidade social do paíss, estariam ultrapassados e que agora seria a hora do intelectual global, conectado com os problemas do globo. O nacionalismo, verdadeira relíquia de era pristinas, teria se ido. Soa a hora do global thinker, do engajamento global, do pensamento da humanidade como conjunto.

O professor mineiro, Ivan Domingues, deixa clara sua influência: Weber, verdadeiro arauto do liberalismo, ainda que de um liberalismo inteligente, refinado. Nós, por nossa via, não almejamos um mundo de livre circulação de capitais, mas um planeta interligado por fortes laços de solidariedade, fundados da irmandade geral dos povos, a qual, por sua vez, se referencia em verdadeira integração global. Não só capitais, mas pessoas, ideias, orientadas para o autêntico bem e prosperidade planetárias.

Safatle, em um artigo publicado há não muitos anos, defendia uma ideia mais refinada, mas de cepa símile, ao propugnar que a filosofia brasileira deveria ser abandonada, tanto tendo em vista as fortes interlocuções filosóficas, com franceses comentando alemães, por exemplo, quanto a realidade de que a verdade é universal, ou seja, não possui nacionalidade. Safatle se esquece assim que a verdade não é um nome atemporal, mas que ela é conquista histórica, refinada ao longo das eras e das geografias. Para que alcançássemos o monismo, depois o materialismo, os milênios correram, e não sozinhos, mas deixando atrás de si rastros de sangue. A verdade da economia dos EUA não é a verdade da economia do Brasil. O que é bom para os EUA, enquanto país, não é bom para nosso país. A classe trabalhadora daquele país goza dos benefícios indiretos da dominação dessa terra sobre a nossa. Claro, pode-se argumentar que a unidade internacional dos povos é necessária e que, enquanto classe, partilhamos os mesmos objetivos. É fato, essa verdade é, mesmo, transhistórica, tanto mais se apelarmos para um nível ainda mais fundamental e apelarmos para a realidade das necessidades humanas, onde, de olhos puxados, de pele negra ou cabelos loiros, todos nos encontramos. Mas a realidade é que essas populações, em sua esmagadora maioria, vem apoiando um outro tipo de projeto, fundado não no entendimento universal dos povos, mas na continuidade de uma intenção e ação que nos oprime enquanto nações historicamente exploradas e saqueadas. Impossível não lembrar do texto do infeliz senador Cristovam Buarque: quando quiserem a irmandade um universal, pois bem, seremos os primeiros a aceita-la; mas enquanto insistirem em políticas que só beneficiam uma parcela de sua própria população, seremos os professores de uma nova realidade que, cada vez mais, precisa se insinuar.

O nacionalismo filosófico, na esteira de Cruz Costa e Pinto, insiste nesse gênero de ideias. O pensamento não pode se deixar perder nos píncaros da metafísica; deve estar ancorado nas grandes questões nacionais, se possível oferecendo os instrumentos para se apreender essa realidade  permitir que outras ciências construam os modelos que nos livrem do fardo da exploração imperialista, das regras dos organismos de comércio, da submissão militar e cultural, etc.

Consigo me recordar de um texto, creio que de Mário de Andrade. Nele, o velho literato afirmava que não seria nos dissolvendo na cultura universal que contribuiríamos com a mesma, mas, ao contrário, sendo resolutos brasileiros, exercendo nossa antropofagia de tupinambás, que poderíamos contribuir com o gênero humano.

 É nesse gênero de ideias que depositamos nossas forças, fazemos votos e por elas militamos.

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