A filosofia brasileira é maltratada nos departamentos.
Preferimos os Fischer, Hartman, Bonhomme e Stone. O filósofo de cepa
estrangeira goza de maior reputação entre nós que o legítimo produto desta
terrinha, para não dizer dos nossos companheiros de viagem latino-americanos.
Preconceito tolo, fundado em um pathos de pertença artificial ao centro como se, ao
debatermos com os pensadores do centro, estivéssemos simbolicamente nos
inserindo, com nossa frágil carne de Terceiro Mundo, no cerne mesmo do debate.
Claro, há de se argumentar que as grandes produções estão no coração do sistema
global e que a nós, fracos em todo o resto, a glosa da fina flor do núcleo do pensamento
que vem transformando o globo nos últimos milênios é mais proveitosa que a
discussão com esses caramelos da nessa nossa.
Há mesmo um mito de que não haveria filosofia brasileira, de
que nessa terra de palmeira se sabiás, por uma mística força incontrolável do
universo, o pensamento filosófico não tenha conseguido se instalar com jeito,
que a reflexão sob o sol dos trópicos tenha cozinhado os cérebros da
inteligência dos filhos que não fogem à luta, redundando em uma cultura de
comentários e notas de rodapé aos grandes sistemas.
O conflito instalado, afora tudo isso, entre uma civilização
de colonos, colonizados e colonizadores, herdeiros de prisca cultura, que
remete às areias do Egito e aos zigurates da Babilônia, sem contar os tão
repisados helenos, e as delícias de uma terra cheia de gente saradinha,
dominada e exterminada; enfim, tudo isso só vem agravar uma falta de pertença,
de sentimento de gozo das próprias paragens que nos afligem. Esses elementos
foram elevados à milésima potência por um presidente patriota — patriotário
para muitos — que prefere entregar o pouco que conquistamos ao invés de,
segundo sua proclamada posição, investir no autóctone, no apanágio dessas
plagas, fruto não mais encontrado em nenhum outro lugar. E a claque aplaude
enquanto o país explode.
Conheci Cruz Costa em meados de 2012, enquanto fazia,
curiosamente, uma leitura sistemática da história da filosofia, seguindo o cânone,
quer dizer, principiava pelos gregos e me dirigia aos cimos da metafísica. O
contato com Cruz Costa foi provavelmente mediado pelo C.A. de Filosofia da USP,
que carregava o nome do digníssimo até bem pouco tempo. A leitura de seus
livros destrói a maior parte destes mitos, como o da inexistência da filosofia
brasileira. Não só existe, como é secular, remetendo ao projeto mesmo de
colonização da terra brasilis.
Segundo Cruz Costa, a marca dessa filosofia seria suas preocupações práticas,
orientadas para a conquista do sertão, para o desbravamento de terras
desconhecidas aos europeus, com suas ervas, bichos e gentes de outra cepa,
estranha aos boreais ventos do Norte.
Cruz Costa escreve no rebote dos movimentos que sacudiram a
Velha República, e se liga a um projeto de desenvolvimento do país, cuja figura
maior foi Vargas, figura polêmica e central nos entremeios dessa nação gigante
pela própria natureza. Considerado primeiro estudante da USP, mais tarde
professor na mesma instituição, Cruz Costa legou ao país uma filosofia
preocupada com as questões nacionais, com o desenrolar de um povo no país.
O contato com Álvaro Viera Pinto foi mais tardio. O conheci,
creio, através da crítica que dele faz Ivan Domingues. Vieira Pinto foi um
pesquisador do ISEB, o famoso instituto desenvolvimentista que, no pouco tempo
de vida, também se ligou a um projeto de desenvolvimento nacional. Ele é mais
explícito que Cruz Costa. Para ele, à filosofia caberia um papel de
coordenação, de direção mesma, do processo de desenvolvimento em sua luta
contra as forças regressivas, na época materializadas em autores como Gudin.
Domingues considera que Cruz Costa e Viera Pinto, por
defenderem a ideia de autores fortemente engajados na transformação da
realidade social do paíss, estariam ultrapassados e que agora seria a hora do
intelectual global, conectado com os problemas do globo. O nacionalismo,
verdadeira relíquia de era pristinas, teria se ido. Soa a hora do global thinker, do engajamento global,
do pensamento da humanidade como conjunto.
O professor mineiro, Ivan Domingues, deixa clara sua
influência: Weber, verdadeiro arauto do liberalismo, ainda que de um
liberalismo inteligente, refinado. Nós, por nossa via, não almejamos um mundo
de livre circulação de capitais, mas um planeta interligado por fortes laços de
solidariedade, fundados da irmandade geral dos povos, a qual, por sua vez, se
referencia em verdadeira integração global. Não só capitais, mas pessoas,
ideias, orientadas para o autêntico bem e prosperidade planetárias.
Safatle, em um artigo publicado há não muitos anos, defendia
uma ideia mais refinada, mas de cepa símile, ao propugnar que a filosofia
brasileira deveria ser abandonada, tanto tendo em vista as fortes interlocuções
filosóficas, com franceses comentando alemães, por exemplo, quanto a realidade
de que a verdade é universal, ou seja, não possui nacionalidade. Safatle se
esquece assim que a verdade não é um nome atemporal, mas que ela é conquista
histórica, refinada ao longo das eras e das geografias. Para que alcançássemos o
monismo, depois o materialismo, os milênios correram, e não sozinhos, mas
deixando atrás de si rastros de sangue. A verdade da economia dos EUA não é a
verdade da economia do Brasil. O que é bom para os EUA, enquanto país, não é
bom para nosso país. A classe trabalhadora daquele país goza dos benefícios
indiretos da dominação dessa terra sobre a nossa. Claro, pode-se argumentar que
a unidade internacional dos povos é necessária e que, enquanto classe,
partilhamos os mesmos objetivos. É fato, essa verdade é, mesmo, transhistórica,
tanto mais se apelarmos para um nível ainda mais fundamental e apelarmos para a
realidade das necessidades humanas, onde, de olhos puxados, de pele negra ou
cabelos loiros, todos nos encontramos. Mas a realidade é que essas populações,
em sua esmagadora maioria, vem apoiando um outro tipo de projeto, fundado não
no entendimento universal dos povos, mas na continuidade de uma intenção e ação que nos
oprime enquanto nações historicamente exploradas e saqueadas. Impossível não
lembrar do texto do infeliz senador Cristovam Buarque: quando quiserem a
irmandade um universal, pois bem, seremos os primeiros a aceita-la; mas
enquanto insistirem em políticas que só beneficiam uma parcela de sua própria
população, seremos os professores de uma nova realidade que, cada vez mais,
precisa se insinuar.
O nacionalismo filosófico, na esteira de Cruz Costa e Pinto,
insiste nesse gênero de ideias. O pensamento não pode se deixar perder nos píncaros
da metafísica; deve estar ancorado nas grandes questões nacionais, se possível
oferecendo os instrumentos para se apreender essa realidade permitir que outras ciências construam os
modelos que nos livrem do fardo da exploração imperialista, das regras dos
organismos de comércio, da submissão militar e cultural, etc.
Consigo me recordar de um texto, creio que de Mário de
Andrade. Nele, o velho literato afirmava que não seria nos dissolvendo na
cultura universal que contribuiríamos com a mesma, mas, ao contrário, sendo
resolutos brasileiros, exercendo nossa antropofagia de tupinambás, que
poderíamos contribuir com o gênero humano.
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