sexta-feira, 29 de janeiro de 2021

Anacreônticas XVIII

 Desejo, desejo vir a amar.

Quando o Cupido [uma divindade representada como uma criança com uma arco] me ama,

eu tendo pensamento

indesejado que não é convencido.

O que diretamente a flecha [de Cupido] vinga

e sua aljava de ouro

luta contra mim, invocando à batalha.

Eu agarrando das crueldades

dos guerreiros couraçados, como Aquiles,

tanto o presente quanto os bois

Me enlouqueço de amor.

Atire, eu já fujo:

como não ainda tenho como suportar,

flechado: possa você mesmo 

se abster das flechas,

no meio de meu coração

mergulhado e desatado.

sabia que eu tinha bois

e presentes e adagas:

quem, pois, atingirei.

contra quem, pois, irei batalhar?

Desejo, desejo, vir a amar.


Anacreonte


Θέλω θέλω πιλῆσαι

ἔπειθ'Ἔρως φιλεῖν με,

ἐγὼ δ' ἔχων νόημα

ἄβουλον οὐκ ἐηείσθσμ.

ὅδ' εὐθὺ τόξον ἄρας

καὶχρυσέην φαρέτρην

μάχῃ με προὐκαλεῖτο.

κἀγὼ λαβὼν ἐπ ' ὠμων

θωρηχ', ὅπως Ἀχιλλεὺς,

καὶδοῦρα καὶβοείν

ἐμαενάμην Ἔρωτι.

ἔβαλλε', ἐγὼ δ'ἔφευγον·

ὡς δ'οὐκ ἔτ' εἶχ' ὀιστοὺς,

ἤσχαλλεν· εἶτ' ἐαυτὸν

ἀφῆκεν ὠς βέλεμνον,

μέσος δὲκαρδίης μευ

ἔδυνε καίμ'ἔλυσεν

μάτην δ'ἔχω βοείην

καὶδοῦρα καὶμάχαιραν·

τί γὰρ βάλωμεν ἔξω.

μάχης ἔσω μ'ἐχούσης;

θέλω θέλω φιλῆσαι

quarta-feira, 27 de janeiro de 2021

Fim do Estado?

 

O fim do Estado foi teorizado por vários pensadores, especialmente a partir do século XIX no interior das assim chamadas utopias socialistas. Identificado com a opressão, postulava-se que somente uma sociedade sem Estado poderia permitir a seus membros o desenvolvimento de suas capacidades humanas e a harmonia social.

Quando pensamos em fim do Estado as primeiras teorias que vem a mente são as anarquistas . Para esta, não bastaria acabar com o capitalismo, mas também a revolução deveria dar cabo do Estado enquanto instituição de poder político. Ficaram famosas as palavras de Proudhon definindo o que é ser governado e de como o Estado serve para controlar e encaminhar a sociedade para a opressão política generalizada. Mais tarde, Bakunin aceita as proposições de Proudhon e passa a entender que sem Estado, não há capitalismo e que, enquanto houver Estado, haverá capitalismo. A revolução deve dar cabo de ambos ao mesmo tempo; caso contrário, um reconstruiria o outro e a sociedade tornaria às condições anteriores à revolução.

            Os social-democratas, mais tarde comunistas-leninistas, defendiam que o Estado deveria perecer, mas somente depois de um período de transição, cujo principal teórico certamente é Lenin. Para Lênin, esse período de transição, a assim chamada ditadura do proletariado, significava um Estado em desaparecimento. Explique-se: o Estado é entendido como o órgão de repressão e opressão de uma classe sobre a outra. Enquanto houver classes sociais, haverá Estado. Com a tomada do poder pelo partido do proletariado, a sociedade encaminha-se no sentido de acabar com as classes sociais, logo, de acabar com o Estado enquanto órgão da ditadura de classe. Na sociedade socialista, o fortalecimento do Estado somente poderia apontar para sua desaparição, dialeticamente já que, quanto mais forte a ditadura do proletariado, mais rapidamente se extinguirão as classes, consequentemente, mais rapidamente o Estado desapareceria e poderíamos viver em uma sociedade livre de preconceitos, desigualdade ou opressão e exploração. Na concepção leninista, anarquistas e comunistas concordariam com os fins, discordando somente nos meios: ao passo que os primeiros exigem dissolução imediata do Estado, no golpe mesmo que dá a revolução, os segundos exigem uma mediação dialética a fim de também, em um prazo mais estendido, dissolver o Estado.

            Outras teorias também desposaram e desejaram o fim do Estado, como correntes ultraliberais. Pensemos em Thoureau, um teórico menos conhecido mas nem por isso menos influente e que, por vezes, é assimilado ao anarquismo. Thoreau, que era proprietário de uma pequena fábrica de lápis, recusou-se a pagar impostos e foi por isso preso. Na prisão, escreveu o célebre texto sobre a desobediência civil, inculpando o Estado estadunidense, órgão político de seu país, de crimes, como a guerra contra o México, que redundaria na expansão territorial dos EUA. Thoureau advoga que o Estado é sempre fonte de opressão e que um povo possui o governo que merece. Tão logo a sociedade progrida, o Estado deve ser extinto e se instaurar uma outra comunidade.

            As atuais teorias do anarcocapitalismo (sic) também advogam o fim do Estado, mas em uma perspectiva francamente de direita. Nesse viés, o Estado é entendido como uma instituição imoral que atenta contra a liberdade, direito fundamental que não pode ser minorado. Atos como sonegação de impostos são enxergados enquanto desobediência civil a uma instituição imoral e ilegítima. O mercado é propugnado como instituição capaz de resolver todas as questões socais, ao passo que se privatize todas as funções sociais, inclusive aquelas entendidas como mais fundamentais em uma sociedade como a brasileira.

            Vê-se que, à direita ou à esquerda, várias correntes políticas pregam o fim do Estado e fazem loas à sua dissolução. O que se segue varia. O fato é que o Estado é entendido como fonte de males. Pode-se dar um passo além e entender que, na verdade, é a política a ser demonizada como fonte de corrupção, opressão e exageros. Nessa perspectiva, o Estado é entendido como instituição privilegiada da política e, com a consequente dissolução do Estado, a política e os infortúnios que ela acarreta também desaparecerão.

            Essas teorias guardam em comum o fato de terem uma função negativa do Estado: entendido como instrumento de opressão, à esquerda e à direita. À esquerda, opressão de classe, da classe burguesa. À direita, como opressão da burocracia, que tudo complicaria, tornando a vida do empreendedor mais difícil e atacando a liberdade.

            No entanto, o Estado não é só negativo, como facilmente se percebe. Graças a pesquisa públicas, financiadas com verba pública, verba esta somente possível com os esforços coordenados do Estado, poderemos vencer a pandemia em tempo recorde. Graças as atividades coordenadas pelo Estado o analfabetismo, a miséria caíram no último período. Basta que pensemos em uma sociedade como a chinesa, que vem apresentando melhoras sucessivas em seus índices que mensuram desenvolvimento humano. Corre pelas redes sociais um meme (e quem disse que não se pode filosofara partir de um meme?) em que se pede que os anarcocapitalistas venham às favelas, onde o Estado é mínimo. O Estado, entendido como organização política de uma sociedade, representou um salto civilizacional na história da humanidade. Sem um Estado como mecenas, as ciências, as tecnologias, as obras públicas, os índices sociais, etc. seriam muito piores.

            Claro, a instituição não é isenta de erros e é uma verdadeira fonte de opressão. Mas, não se pode jogar fora a água do banho com o bebe dentro. A questão é democratizar o Estado, entendido como forma básica de organização de uma formação social. Não há sociedade sem Estado. A questão é saber se esse Estado será democrático (e não nos referimos à democracia dos ricos, na verdade, uma plutarquia) ou antidemocrático. Um verdadeiro Estado democrático não só respeita como fortalece as liberdade públicas e opera como um verdadeiro potencializador da igualdade social; não serve como fonte de opressão ou exploração econômica; este, existe apenas no plano teórico. Já um Estado autoritário, como é o caso do brasileiro, serve como instrumento de opressão de sua população; é meio para a dominação política e econômica.

            Não existe sociedade sem política. O órgão primordial de organização política é o Estado. Não que toda política passe pelo Estado, mas todo Estado passa pela política. Enquanto houver sociedade, haverá Estado, sua forma de organização política. Nesse sentido, não devemos pedir menos Estado ou fim do Estado (essa seria a situação de partes da Líbia onde se vendem pessoas como escravas em pleno século XXI); devemos pedir e lutar por um Estado verdadeiramente democrático, não só político como econômico. Essa é a utopia concreta do tempo presente.

Anacreônticas XVII

 Desejo falar dos Atridas [filhos de Atreu],

Desejo Cadmo [príncipe fenício] cantar,

As cordas do barbito [uma espécie de lira]

só o amor retém

Troquei as cordas recentemente

e a lira inteira:

Eu cantei o nobre

Heracles [Hércules, um semideus filho de Zeus], a lira, pois,

o amor responde.

Regozijem-se os que restaram de nós,

heróis: a lira em fato

somente o amor canta.


Anacreonte


Θέλω λέγειν Ἀτρείδας,

θέλω δὲΚάδμον ᾄδειν,

ὁ βάρβιτος δὲ χορδαῖς

Ἔρωτα μοῦνον ἠχεῖ.

ἠμειψα νεῦρα πρώην

καὶ τὴν λύρην ἁπασαν·

κἀγὼμὲν ᾖδον ἀθλους

Ἡρακλέους, λύρη δὲ

ἔρωτας ἀντεφώνει.

χαίροιτε λοιπὸν ἡμῖν,

ἡρωες· ἡ λύρη γὰρ

μόνους ἔρωτας ᾄδει


Ἀνακρεων

terça-feira, 26 de janeiro de 2021

Anacreônticas XVI

Desejo que Dionísio

amante dos jogos dance

Amo que logo do efebo

com os convivas chantem seguidos da lira.

coroadinhos de jacinto

ao topo das montanhas atingindo pelos dois lados

com as donzelas deselegantes

beijaria mais ainda todos.

Invejando não conhecer meu coração,

língua que gosta de ofender,

fujo do machado de guarda

detesto brigas de ébrios.

Muitas festas a Dionísio participar

Jovens com os cabelos raspados

dançando ao som do barbito

Vida mais tranquila levemos.


Anacreonte


Ποθéω μὲν Διονύσου

φιλοπαίγμονος χορειáς,

θίλεω δ'εὖτ' ἄν ἐφήβου

μετὰ συμπότου λυρίζω.

στεφανίσκους δ'ὑακίνθων

κροτάφοισιν ἀμφιπλέξας

μετάπαρθένων ἀθύρειν

φιλέω μάλιστα πάντων.

φόνον οὐκ οἶδ'ἐμὸν ἦτορ,

φιλολοιδόροιο γλώττης

φεύγω βέλεμνα κωφά,

στυγέω μάχας παροίνους.

πολυκώμους κατὰ δαῖτας

νεοθηλέσσ'ἅμα κούραις

ὑπὸβαρβίτῳ χορεύων

βιóν ἐσυχον φέρωμεν


Ἀνακρεων



segunda-feira, 25 de janeiro de 2021

Anacreônticas XV

 Que eu a multidão de jovens

contemplarei, presente o adolescente:

então, quando dançar

o velho aqui se dará asas,

cinzas velhas longínquas.

Rosa dada, desejo coroar,

jovem entre os jovens, danço:

Dionísio pois eu sou

carrego o fluxo de água para longe do verão,

para que vejam as dores da velhice

que ensinou a falar,

que ensinou a beber

agraciando com o enlouquecer.


Anacreonte


Ὅτε ἐγὼ νέων ὅμιλον

ἐσορω¨, πάρεστιν ἤβη·

τότε δή, τότ' ἐς χορείην

ὀγέρων ε0γὼπτεροῦμαι,

πολιὸν γῆρας ἐκας δή.

ῥόδα δὸς, θέλω στέρεσθαι,

νεóς ἐν νεóις χορεύσω·

Διονυσίης δέμοι τις

φερέτω ῥοῦν ἀπ'ὀπώρης,

ἵνα'ἴδῃ γέροντος ἀλκὴν

δεδαηκότος μὲν εἰπεῖν,

δεδαηκότος δὲ πινεῖιν

χαριέντως τε μανῆναι


Ἀνακρεων

domingo, 24 de janeiro de 2021

Anacreônticas XIV

 Me agrada o charme dos velhos,

Me agrada a dança dos jovens:

De um lado, quando o velho dança,

de outro, os cabelos velhos me pertencem

e a sabedoria rejuvenesce

Anacreonte


Φιλῶ γέροντα τερπνόν

φιλῶ νεóν χορευτήν·

ἂν δ' ὁ γέρων χορεύῃ

τρίχας γέρων μέν ἐστιν,

τὰς δε πρένας νεάζει


Ἀνακρεων


domingo, 17 de janeiro de 2021

Anacreônticas XIII

 Eu, por um lado, velho sou

por outro, dos jovens pleno eu bebo:

e deve-se dançar

Sileno [aquele que criou Baco] ao meio

atuando dançarei,

cetro possuo para o trabalho

e ninguém possui a palmatória:

Os que desejam lutar

(presentes, pois) eu luto:

a mim a taça, escravo/criança (παῖ),

mel ao vinho prazeroso

misturará o portador.

Eu velho por um lado sou

Por outro, dos jovens pleno eu bebo. 


Anacreonte


᾿Εγὼ γέρων μέν εἰμι,

νέων πλέον δὲ πίνω·

κἂν μέν δέῃ χορευέιν,

Σειληνὸν ἐν μέσοισι

μιμούμενος χορεύσω,

σκῆπτρον ἔχων τὸν ἀσκόν,

ὃδ'οὐδέν ἐσθ' ὁ νάρθηξ·

ὁ μὲν θέλων μάχεσθαι

πάρεστι γάρ μαχέσθω·

ἐμοὶ κύπελλον, ὦ παῖ,

μελιχρὸν οἶνον ἡδὺν

ἐγκεράσας φόρεσον.

ἐγὼ γέρων μέν εἰμι,

νέων πλέον δὲ πίνω.


Ἀνακρεων

sábado, 16 de janeiro de 2021

O que é um mestre?

 

Por definição, um mestre é alguém versado em um tema ou prática que possui discípulos. Não há mestres sem discípulos, como também não há discípulos sem mestre. Há ainda expressões, como mestre-de-obras, que indica o mais bem dotado no canteiro; ou a expressão chave-mestra, que designa a chave que consegue abrir todas as portas.

                Na sociedade contemporânea, dominada por diversas instituições de ensino, a maioria das pessoas possuiu um mestre formal, o professor, seja nas etapas iniciais da vida escolar, seja na universidade. Além disso, também os pais ou aqueles responsáveis por criar a criança podem ser considerados mestres, na medida em que ensinam a falar, comer, enfim, que humanizam a criança. Nessa acepção, todos nós tivemos mestres e ser um autêntico autodidata seria impossível.

                A relação entre mestre e discípulo é de doação. O mestre ensina ao epígono como proceder em dadas ocasiões, como pensar, como agir, como se portar, como produzir. Só há mestre porque alguém o reconhece enquanto tal, a menos que se utilize a noção de mestre de forma muito vaga, indicando, também, por ela a relação de uma mãe elefanta com seus filhotes; nesse caso, se perde a especificidade da noção. Essa necessidade de reconhecimento indica que somente em uma relação pode surgir um mestre e seus discípulos, o que implica abertura para o aprendizado, para tomar lições e fazer exercícios. O mestre guiará pelos caminhos abscônditos do mundo seu discípulo, lhe fornecendo as chaves da ação.

                Claro, há os autodidatas. Conforme apontados, nunca se será um completo autodidata, mas sim autodidata em alguma área, visto que não se nasce sabendo, é necessário aprender, e o aprendizado depende do contato humano com outros humanos. O autodidata, mesmo os mais empedernidos, também empreendem um contato humano, por exemplo observando como se faz um trabalho ou lendo livros por conta própria. Nesse caso, seus mestres serão as pessoas as quais ele viu operando ou os livros os quais ele leu para aprender. Assim, um autodidatismo puro não foi possível nem mesmo aos grandes iniciadores da ciência, que se apropriaram de um saber já existente, em uma sociedade que os nutriu e preparou para suas respectivas jornadas. Somente existem autodidatas relativos.

                Ao aprendiz, cumpre aprender, ao mestre, educar. O bom aprendiz será aquele que conseguir superar seu mestre e dar um passo além, se tornando, por sua vez, mestre de novas pessoas, em uma cadeia de relações que liga futuro, presente e passado. Foi porquê outros aprenderam e criaram que podemos transmitir o saber adquirido, fruto de todo o conjunto do esforço humano de uma sociedade, para outrem, visto que o saber é sempre social.

                Pensemos na filosofia. Nessa área, as relações entre mestres e discípulos se manifestam há muito e são muito importantes. Sócrates legou uma dezena de discípulos que, por sua vez, constituíram escolas próprias de filosofia ou foram se embrenhar na política. Como em dado momento, quando se estabelece o cânone da tradição ocidental, Platão passa a ser leitura obrigatória; e como ele ensinou filósofos, que ensinou filósofos, etc., pode-se dizer que todos nós, filósofos, somos herdeiros de Sócrates e, antes dele, de Anaxágoras, etc. A cadeia de professores que temos nos liga diretamente à Grécia antiga. Nas sociedades modernas, o filósofo quase sempre terminará por ser professor, legando a tradição às gerações futuras.

                Ser mestre nos dá a chance de receber a tradição herdada e aprimorá-la, sempre ao nosso modo, de forma a imprimir, na história de antecessores e sucessores, nossa marca ou, até mesmo, causar uma grande ruptura na história do saber. Se o melhor discípulo é aquele que supera seus mestres, pode-se dizer que gerar essa ruptura é, mesmo, o objetivo de todo discípulo. Mas não é fácil romper com seus mestres. As ideias aprendidas se tornam fixas, vão se imobilizando, devém crença fossilizada. Para romper com um mestre, somente com a ajuda de outros, talvez distantes no tempo e no espaço, mas que hão de se fazer presentes.

                O mestre lega uma tradição. Cumpre ao discípulo aprender essa tradição para leva-la ao limite? Pode-se continuara tradição, mas a adaptando aos novos fatos do mundo. Pode-se romper a tradição, misturando-a com outras. Por fim, pode-se abandonar qualquer perspectiva, deixando de lado o aprendido com o mestre. O que importa é que foi graças ao mestre que pudemos inclusive escolher abandoná-lo.

                Alguns mestres são desprezados pelos seus discípulos. O mestre tenta ensinar o estado da arte de seu ofício, o melhor da tradição. Mas a tradição, por vezes, está errada e somente os discípulos, com mente menos impregnada dela, conseguem enxergar essa inadequação entre tradição-problemas a resolver. Nesse caso, os mestres se tornam obstáculos à resolução dos problemas, o que implica que os discípulos devem formar suas próprias escolas.

                Ser mestre gera prazer, mas gera também desconforto. Gera prazer na medida em que se conquista a imortalidade ao legar discípulos que defenderão suas ideias depois que já se estiver morto. É como ter um filho, que prosseguirá nosso trabalho mesmo quando o corpo já tiver fenecido. Mas gera desconforto, na medida em que constantemente se está em perigo de ser ultrapassado pelos seus discípulos e ver o saber ensinado ser transmutado em outra matéria. O mestre não possui controle sobre as ações dos discípulos, que podem se revoltar e partir para outras paragens prático-teóricas. Esse desconforto deveria gerar no mestre a necessidade de sempre se atualizar, de prever os passos dos discípulos a fim de se adiantar a eles e, ao invés de ser por eles ultrapassado, profilaticamente os ultrapassar. Mas este seria o mau mestre, que não consegue lidar com o fato de estar destinado a desaparecer.

Muito poucos entram para a história. Os mais importantes, quem garante nosso dia-a-dia, desaparecem sem deixar traços. Os grandes mestres do pensamento, que conseguem gerar discussões sobre suas obras séculos, por vezes milênios depois de terem partido, são poucos. Se devemos ambicionar ser alguém com legado, quer dizer, se devemos ambicionar engendrar obras que provoquem discussões séculos depois de termos falecido (ou seja, devemos ambicionar a perfeição), podemos simplesmente nos recolher e nos contentar a ser mestres outros, que leguem a tradição humana adiante, em uma escala menor. Não são mestres menores, somente de outro tipo, que visam outras coisas. Sem eles, este texto não poderia ser escrito, nem nenhum outro; afinal, quantas estátuas de mães, pais, mestres-escola, etc. já se viu? Certamente poucas. Esta é outra das injustiças da história com os mestres anônimos e essenciais da multidão.

quinta-feira, 14 de janeiro de 2021

Sobre geometria, lógica e matemática

 

A geometria é uma ciência, a ciência que aborda pontos, retas, curvas. É a ciência do espaço pensado de forma abstrato. Ela tem concorrentes, já que há outra ciência do espaço, a geografia. Mas a geografia aborda o espaço enquanto humanamente utilizado, ao passo que a geometria aborda o espaço in totó, abstraído de seus usos. Não que a geometria seja exercício de panditas em suas torres de marfim, muito ao contrário. Especula-se se o desenvolvimento da geometria no antigo Egito não estava ligado às necessidades de repartição de terra no pais, cujas vazantes e cheias do Nilo implicavam uma exiguidade de terras a serem utilizadas pela agricultura, em um meio arenoso e desértico. Não nos esqueçamos que Tales e Platão viveram no Egito. Provavelmente uma das inspirações da própria filosofia vieram do país das pirâmides.

                A geometria compartilha com a filosofia o gosto pelo abstrato. Abstrato quer dizer, com o separado do meio, com o meramente inteligível. Mas é assim também com qualquer ciência. Todas se apoiam em abstrações a fim de descobrir as leis subjacentes ou imanentes ao real. Nesse sentido, a máxima platônica de que na Academia somente deveria entrar quem conhecesse a geometria não se sustem: todas as ciências são propedêutica do espírito na viagem do conhecimento e a geometria não parece especialmente destinada a facilitar que singremos por esses males. Mas, quando Platão escrevia, as ciências ainda não estavam constituídas tal qual conhecemos hoje. Eram confusas, sem objetos claros, por vezes misturadas com elementos oriundos da religião grega. Fora do confuso campo do conhecimento, havia as técnicas, voltadas ao mero formar material. A geometria era uma das poucas ciências claramente distintas da filosofia. No Teeteto, somos apresentados ao jovem homônimo e a  seu mestre, Teodoro, que são apresentados como geômetras, o que deve indicar que havia já uma separação entre filosofia e a geometria, o ramo da matemática por excelência entre os gregos. Ao invés de a exigência do conhecimento de uma ciência, talvez o correto fosse exigir do neófito em filosofia uma formação científica, talvez equivalente ao nosso Ensino Médio. Ou seja, parasse cursar uma faculdade de filosofia, é mister conhecer as produções científicas de sua época, uma exigência que, ademais, não pode ser restrita á filosofia, mas deve recair sobre qualquer aspirante a pensador ou cientista ou bacharel.

                Além das abstrações, a geometria intenta descobrir leis ideias de figuras do pensamento. Nisso também se aproximaria da filosofia, visto que ambas abordam essencialmente fenômenos racionais. Assim como a geometria aborda um triângulo, o filósofo aborda o silogismo; se a geometria tenta nos fornecer as leis de todos os ângulos, a filosofia se esforça em nos brindar com a definição de justiça, etc. Mas os meios da geometria, os números, se diferenciam dos meios da filosofia, as letras. Sea geometria tem que lidar com as leis da matemática, a filosofia deve lidar com as normas da língua, uma diferença a mais, visto que ambas estão submetidas à lógica, as regras mais gerais do bem pensar. A filosofia guarda uma exigência a mais que a lógica, portanto, está mais sobrecarregada de obrigações.

                Se formos pensar nas matemáticas de maneira geral, universalizando a geometria, a exigência do conhecimento da matemática parasse filosofar parece mais absurda ainda. A matemática é um meio, um instrumento do conhecimento, não seu fim. À parte de textos de filosofia da matemática, poucos outros escritos filosóficos se aventuram em meio a números e retas. Claro, houve uma aproximação entre ambas, especialmente se pensarmos em Descartes ou Espinosa, que tentam desenvolver um pensamento á moda geométrica ou até mesmo deram grandes contribuições á matemática. Mas, em geral, o instrumento da filosofia é a lógica, disciplina esta que alguns vão fundara própria matemática. Não é necessário, pois, ao aprendiz de filósofo um conhecimento aprofundado de matemática, mas, sim, um pensamento lógico contumaz, além de imaginação na hora dos argumentos. Com estas em mãos, pode-se construir um cabedal de erudição, tarefa complexa, que demanda anos de aprendizagem e disciplina.

                Badiou insiste que, caso a filosofia intente fornecer uma verdadeira ontologia, ela deve se fiar na matemática, visto que ciências como a física, vão se valer dos números para decifrar o funcionamento do universo. A nosso ver, Badiou confunde o meio com o fim. A matemática é um instrumento valioso, mas não é a própria linguagem do universo, por onde o ser ele mesmo se expressa. Nos textos onde Sócrates debate com outros sobre formas geométricas, por exemplo o Mênon, ele faz detalhas descrições dessas formas sem se valer de diagramas ou números. É possível sonhar com uma escrita de fórmulas matemáticas que se valesse somente da linguagem natural. Mas, se em linguagem simbólica se pode chegar a resultados e exposições mais cômodas, por que mudar? Apenas queremos ressaltar que os numerais são, também, uma categoria gramatical, e que a linguagem natural pode descrever as descobertas da matemática. Badiou erra profundamente ao enxergar na matemática a verdadeira ontologia desconsiderando que a linguagem natural possui nuances que uma a linguagem matemática não possui. Onde se ganha em exatidão, se perde em sutiliza e em nuances dificilmente expressáveis em linguagem artificial.

Além disso, Badiou platoniza o universo, como se este tivesse uma linguagem na qual se expressasse; a nosso ver, as distintas linguagens, naturais ou artificiais, são invenções humanas, não podendo ser imputadas ao universo ele mesmo, talvez com a exceção das onomatopeias. É necessário salientar o papel humano na invenção da matemática. Isto nos lança em um verdadeiro debate ontológico. Afinal, o que é razão? Mera faculdade humana, racionalidade do mundo ou ambas? Evidentemente, o mundo possui uma racionalidade, ele funciona de certa maneira; e uma das maneiras pelas quais o mundo funcionou foi gerar uma espécie capaz de criar obras da razão ou do sentimento, de gerar frutos de sua ação, frutos que, hoje, alteram o próprio funcionamento do planeta. Uma das invenções desse animal foi uma linguagem artificial que funciona de modo a corresponder ao mundo ele mesmo tal qual conhecido por essa espécie. Mas essa linguagem não é natural; ao contrário, ela é fruto de indústria humana, foi inventada, possui data e nada nos garante que, em um futuro, ela não seja substituída por outra linguagem ainda mais perfeita ou, mesmo, que civilizações não humanas não tenham desenvolvido outras linguagens para dominar seus respectivos planetas e se lançar na aventura intergaláctica.

 A matemática se aprende. Se seu objeto são os números, eles são uma invenção. Já a geometria tem como objeto o espaço abstraído e pode, pelo menos em seus rudimentos, ser pensada sem números. O espaço se vive, é condição para que façamos qualquer outra coisa. Pensando destarte, a geometria é condição para que filosofemos, mas somente nesse campo exíguo.

A condição para a filosofia não é um conhecimento em geometria, mas uma boa formação geral. Somente aos filósofos da matemática ou das ciências será exigido um bom conhecimento da mesma. Além desta, deverão dominar a lógica, tão complexa quanto a matemática, talvez mais. Então, antes de nos engajarmos na filosofia da matemática, aprendamos lógica. Seu uso não será restrito ao nosso trabalho, mas aplicável às situações corriqueiras. No pórtico de Platão, talvez o correto a ser escrito fosse: não entre aquele que não conhece lógica; mas a lógica ainda não havia sido inventada. Platão está restrito a seu tempo.

segunda-feira, 4 de janeiro de 2021

Que significa "não entre aqui quem não for geômetra"?

 Que significa "não entre aqui quem não for geômetra"?

 

Como se sabe, essa inscrição se situava acima do pórtico de entrada da Academia de Platão. Por ela se indicava vários elementos, todos ligados à teoria platônica e a seu pitagorismo redivivo. Pitagorismo porque, em Pitágoras, os números cumprem a função de arché do cosmos, indicando a realidade mesma que subjaz ao mundo, estrutura íntima das coisas. Mas, no platonismo, além desse elemento, há que considerar também o papel epistêmico que os números cumprem. Esse papel abre brechas para um questionamento acerca do estatuto do número ele mesmo.

                Platão trata em alguns diálogos dos números ideais, uma espécie de realidade suprassensível que ó estaria abaixo, na sua hierarquia ontológica, do bem ele mesmo.  É sabido que Platão dividia o cognoscível em vários níveis, desde meras imagens, escala mais baixa da existência, portanto, com um estatuto ontológico inferior, até os mesmos números ideias, os quais indicariam uma ideia avançada, somente alcançável por aquele que conseguisse, em uma ascensão dialética, alcançar a realidade mesma. Estamos a tratar da famosa divisão platônica entre o sensível e o inteligível. O mundo das coisas acessíveis pelos sentidos seria inferior àquele alcançável pela razão, o qual contem a realidade mesma das coisas. Basta que pensemos, por exemplo, em uma árvore: há faias, carvalhos, ipês, mas reconhecemos todos como árvores devido a uma universalidade que compartilham. Essa universalidade seria sua essência ou, em grego, sua forma, sua idea, seu eidos. Por trás dos acidentes que as árvores particulares possam apresentar, elas compartilham entre si características universais, a fortiori permitindo sua identificação com  conceito de arvore. Dentre essas Formas, as mais elevadas são os números ideais. Entenda-se: no diálogo Parmênides, Sócrates é indagado se haveria, por exemplo, uma Forma da sujeira ou da lama; a resposta é negativa: somente a Forma de ideias ordenadoras do real, não de qualquer elemento.

                Com razão se afirma que foi Sócrates o inventor do conceito, na medida em que, nos primeiros diálogos platônicos, ditos aporéticos, embora não se chegue à Forma visada, por exemplo, a coragem no Laquete, se delineia uma espécie particular de investigação, que visa estabelecer o que seria a coragem ela mesma, uma ideia ordenadora do real. Platão radicaliza, nos diálogos de maturidade, as indagações ético-estéticas socráticas, ao estabelecer uma ordenação do real em torno dessas Formas, nas quais as coisas participariam, gerando, assim, o sensível.

                Platão, é claro, não retirou suas indagações e soluções do nada, mas se insere em uma tradição filosófica já estabelecida ou em vias de se estabelecer. De um lado, o mobilismo heraclítico; se o devir engolfa a tudo, não permitindo que entremos no mesmo rio duas vezes, por outro lado, a insistência parmenídica na imutabilidade do ser encontra em Platão uma conciliação. Também deve-se notar que o nous (mente) de Anaxágoras, que seria a realidade suprema, também entra na composição de Platão, na medida em que a realidade mesma somente é acessível através da razão. Platão é, desta feita, um bricoleur, unindo distintas teorias. À moda hegeliana, poderíamos afirmar que ele é uma síntese, uma preparação espiritual para os postulados da metafísica aristotélica, que alça um voo maior, mas somente se levarmos em conta os preparativos platônicos que ensejaram o estagirita.

                 Com este anteparo, fica claro porque não poderiam entrar na Academia, a primeira instituição de ensino superior do mundo ocidental, aqueles que não soubessem geometria: estes não poderiam atinar ao conhecimento do ser ele mesmo, dos números reais. Seriam, pois, sofistas enjeitados, maus filósofos, destinados a vagar nas sombras do sensível. Além disso, talvez a inscrição indique o estatuto dos estudantes e do saber ali a ser apreendido: trata-se de um saber iniciático, hermético. Nesse sentido ainda, Platão seria antisofístico, na medida em que os sofistas ensinavam pelas ruas de Atenas. Mas, na mesma jogada, se colocaria como contrário a Sócrates, que fazia da ágora o púlpito de suas litanias.

                O dualismo ontológico platônico pode nos soar ingênuo, mas ele guarda uma força difícil de ignorar. Peguemos o exemplo das matemáticas e do estatuto de seu objeto, os números. Seriam estes entidades físicas? Psicológicas? Ou formais? Se a resposta for esta última, talvez se perceba que deveria existir um mundo onde os números, com suas propriedades, existam realmente, cabendo a nós descobri-las.

                Outra questão que se insinua a partir do acima dito é a do estatuto dos universais. Seriam estes nomes, conceitos ou coisas? Para Platão, certamente são coisas, possuem existência real. Assim, os números ideias, com suas características enquanto realidade mesma, seriam realmente existentes em um mundo das Formas. Ignorá-los seria ignorar a o realmente existente, perene, eterno. Por isso a proibição de que na Academia não deve entrar quem desconheça os números é aceitável, se tivermos em conta esse modelo ontológico propugnado por Platão.

domingo, 3 de janeiro de 2021

Anacreônticas XII

Dizem as mulheres:

Anacreonte, velho é!

observando no espelho atentivamente

cabeleira já não tem

careca sua fronte.

Eu dos cabelos, pois,

seja os presentes seja os ausentes

não sei: isto eu sei,

como ao envelhecer mais 

distingue-se o agradável brincar

com o qual me aproximo do destino [Das Moiras]


Anacreonte


Λέγουσιν αἱ γυναῖκες·

Ἀνακρέων, γέρων εἷ·

λαβὼν ἔσοπτον ἄθρει

κόμας μὲν οὐκέτ' οὔσας,

ψιλὸν δέ σευ μέτωπον.

ἐγὼδέτὰς κόμας μέν,

εἴτ' εἰσὶν εἴἀπῆλθον,

οὐκ οἶδα· τοῦτο δ'οἶδα,

ὡς τῷ γέροντι μᾶλλον

πρéπει τὸτερπνὰπαίζειν

ὄσῳ πέλας τὰ Μοίρης


Ἀνακρέων