segunda-feira, 4 de janeiro de 2021

Que significa "não entre aqui quem não for geômetra"?

 Que significa "não entre aqui quem não for geômetra"?

 

Como se sabe, essa inscrição se situava acima do pórtico de entrada da Academia de Platão. Por ela se indicava vários elementos, todos ligados à teoria platônica e a seu pitagorismo redivivo. Pitagorismo porque, em Pitágoras, os números cumprem a função de arché do cosmos, indicando a realidade mesma que subjaz ao mundo, estrutura íntima das coisas. Mas, no platonismo, além desse elemento, há que considerar também o papel epistêmico que os números cumprem. Esse papel abre brechas para um questionamento acerca do estatuto do número ele mesmo.

                Platão trata em alguns diálogos dos números ideais, uma espécie de realidade suprassensível que ó estaria abaixo, na sua hierarquia ontológica, do bem ele mesmo.  É sabido que Platão dividia o cognoscível em vários níveis, desde meras imagens, escala mais baixa da existência, portanto, com um estatuto ontológico inferior, até os mesmos números ideias, os quais indicariam uma ideia avançada, somente alcançável por aquele que conseguisse, em uma ascensão dialética, alcançar a realidade mesma. Estamos a tratar da famosa divisão platônica entre o sensível e o inteligível. O mundo das coisas acessíveis pelos sentidos seria inferior àquele alcançável pela razão, o qual contem a realidade mesma das coisas. Basta que pensemos, por exemplo, em uma árvore: há faias, carvalhos, ipês, mas reconhecemos todos como árvores devido a uma universalidade que compartilham. Essa universalidade seria sua essência ou, em grego, sua forma, sua idea, seu eidos. Por trás dos acidentes que as árvores particulares possam apresentar, elas compartilham entre si características universais, a fortiori permitindo sua identificação com  conceito de arvore. Dentre essas Formas, as mais elevadas são os números ideais. Entenda-se: no diálogo Parmênides, Sócrates é indagado se haveria, por exemplo, uma Forma da sujeira ou da lama; a resposta é negativa: somente a Forma de ideias ordenadoras do real, não de qualquer elemento.

                Com razão se afirma que foi Sócrates o inventor do conceito, na medida em que, nos primeiros diálogos platônicos, ditos aporéticos, embora não se chegue à Forma visada, por exemplo, a coragem no Laquete, se delineia uma espécie particular de investigação, que visa estabelecer o que seria a coragem ela mesma, uma ideia ordenadora do real. Platão radicaliza, nos diálogos de maturidade, as indagações ético-estéticas socráticas, ao estabelecer uma ordenação do real em torno dessas Formas, nas quais as coisas participariam, gerando, assim, o sensível.

                Platão, é claro, não retirou suas indagações e soluções do nada, mas se insere em uma tradição filosófica já estabelecida ou em vias de se estabelecer. De um lado, o mobilismo heraclítico; se o devir engolfa a tudo, não permitindo que entremos no mesmo rio duas vezes, por outro lado, a insistência parmenídica na imutabilidade do ser encontra em Platão uma conciliação. Também deve-se notar que o nous (mente) de Anaxágoras, que seria a realidade suprema, também entra na composição de Platão, na medida em que a realidade mesma somente é acessível através da razão. Platão é, desta feita, um bricoleur, unindo distintas teorias. À moda hegeliana, poderíamos afirmar que ele é uma síntese, uma preparação espiritual para os postulados da metafísica aristotélica, que alça um voo maior, mas somente se levarmos em conta os preparativos platônicos que ensejaram o estagirita.

                 Com este anteparo, fica claro porque não poderiam entrar na Academia, a primeira instituição de ensino superior do mundo ocidental, aqueles que não soubessem geometria: estes não poderiam atinar ao conhecimento do ser ele mesmo, dos números reais. Seriam, pois, sofistas enjeitados, maus filósofos, destinados a vagar nas sombras do sensível. Além disso, talvez a inscrição indique o estatuto dos estudantes e do saber ali a ser apreendido: trata-se de um saber iniciático, hermético. Nesse sentido ainda, Platão seria antisofístico, na medida em que os sofistas ensinavam pelas ruas de Atenas. Mas, na mesma jogada, se colocaria como contrário a Sócrates, que fazia da ágora o púlpito de suas litanias.

                O dualismo ontológico platônico pode nos soar ingênuo, mas ele guarda uma força difícil de ignorar. Peguemos o exemplo das matemáticas e do estatuto de seu objeto, os números. Seriam estes entidades físicas? Psicológicas? Ou formais? Se a resposta for esta última, talvez se perceba que deveria existir um mundo onde os números, com suas propriedades, existam realmente, cabendo a nós descobri-las.

                Outra questão que se insinua a partir do acima dito é a do estatuto dos universais. Seriam estes nomes, conceitos ou coisas? Para Platão, certamente são coisas, possuem existência real. Assim, os números ideias, com suas características enquanto realidade mesma, seriam realmente existentes em um mundo das Formas. Ignorá-los seria ignorar a o realmente existente, perene, eterno. Por isso a proibição de que na Academia não deve entrar quem desconheça os números é aceitável, se tivermos em conta esse modelo ontológico propugnado por Platão.

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