Que significa "não entre aqui quem não for geômetra"?
Como se sabe, essa inscrição se
situava acima do pórtico de entrada da Academia de Platão. Por ela se indicava
vários elementos, todos ligados à teoria platônica e a seu pitagorismo
redivivo. Pitagorismo porque, em Pitágoras, os números cumprem a função de arché
do cosmos, indicando a realidade mesma que subjaz ao mundo, estrutura íntima
das coisas. Mas, no platonismo, além desse elemento, há que considerar também o
papel epistêmico que os números cumprem. Esse papel abre brechas para um
questionamento acerca do estatuto do número ele mesmo.
Platão
trata em alguns diálogos dos números ideais, uma espécie de realidade
suprassensível que ó estaria abaixo, na sua hierarquia ontológica, do bem ele
mesmo. É sabido que Platão dividia o cognoscível
em vários níveis, desde meras imagens, escala mais baixa da existência,
portanto, com um estatuto ontológico inferior, até os mesmos números ideias, os
quais indicariam uma ideia avançada, somente alcançável por aquele que
conseguisse, em uma ascensão dialética, alcançar a realidade mesma. Estamos a
tratar da famosa divisão platônica entre o sensível e o inteligível. O mundo
das coisas acessíveis pelos sentidos seria inferior àquele alcançável pela
razão, o qual contem a realidade mesma das coisas. Basta que pensemos, por
exemplo, em uma árvore: há faias, carvalhos, ipês, mas reconhecemos todos como
árvores devido a uma universalidade que compartilham. Essa universalidade seria
sua essência ou, em grego, sua forma, sua idea, seu eidos. Por
trás dos acidentes que as árvores particulares possam apresentar, elas
compartilham entre si características universais, a fortiori permitindo
sua identificação com conceito de arvore.
Dentre essas Formas, as mais elevadas são os números ideais. Entenda-se: no diálogo
Parmênides, Sócrates é indagado se haveria, por exemplo, uma Forma da
sujeira ou da lama; a resposta é negativa: somente a Forma de ideias ordenadoras
do real, não de qualquer elemento.
Com
razão se afirma que foi Sócrates o inventor do conceito, na medida em que, nos
primeiros diálogos platônicos, ditos aporéticos, embora não se chegue à Forma
visada, por exemplo, a coragem no Laquete, se delineia uma espécie
particular de investigação, que visa estabelecer o que seria a coragem ela
mesma, uma ideia ordenadora do real. Platão radicaliza, nos diálogos de
maturidade, as indagações ético-estéticas socráticas, ao estabelecer uma
ordenação do real em torno dessas Formas, nas quais as coisas participariam,
gerando, assim, o sensível.
Platão,
é claro, não retirou suas indagações e soluções do nada, mas se insere em uma
tradição filosófica já estabelecida ou em vias de se estabelecer. De um lado, o
mobilismo heraclítico; se o devir engolfa a tudo, não permitindo que entremos
no mesmo rio duas vezes, por outro lado, a insistência parmenídica na
imutabilidade do ser encontra em Platão uma conciliação. Também deve-se notar
que o nous (mente) de Anaxágoras, que seria a realidade suprema,
também entra na composição de Platão, na medida em que a realidade mesma
somente é acessível através da razão. Platão é, desta feita, um bricoleur,
unindo distintas teorias. À moda hegeliana, poderíamos afirmar que ele é uma
síntese, uma preparação espiritual para os postulados da metafísica
aristotélica, que alça um voo maior, mas somente se levarmos em conta os
preparativos platônicos que ensejaram o estagirita.
O
dualismo ontológico platônico pode nos soar ingênuo, mas ele guarda uma força
difícil de ignorar. Peguemos o exemplo das matemáticas e do estatuto de seu
objeto, os números. Seriam estes entidades físicas? Psicológicas? Ou formais?
Se a resposta for esta última, talvez se perceba que deveria existir um mundo
onde os números, com suas propriedades, existam realmente, cabendo a nós descobri-las.
Outra
questão que se insinua a partir do acima dito é a do estatuto dos universais.
Seriam estes nomes, conceitos ou coisas? Para Platão, certamente são coisas,
possuem existência real. Assim, os números ideias, com suas características
enquanto realidade mesma, seriam realmente existentes em um mundo das Formas.
Ignorá-los seria ignorar a o realmente existente, perene, eterno. Por isso a
proibição de que na Academia não deve entrar quem desconheça os números é aceitável,
se tivermos em conta esse modelo ontológico propugnado por Platão.
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