quinta-feira, 14 de janeiro de 2021

Sobre geometria, lógica e matemática

 

A geometria é uma ciência, a ciência que aborda pontos, retas, curvas. É a ciência do espaço pensado de forma abstrato. Ela tem concorrentes, já que há outra ciência do espaço, a geografia. Mas a geografia aborda o espaço enquanto humanamente utilizado, ao passo que a geometria aborda o espaço in totó, abstraído de seus usos. Não que a geometria seja exercício de panditas em suas torres de marfim, muito ao contrário. Especula-se se o desenvolvimento da geometria no antigo Egito não estava ligado às necessidades de repartição de terra no pais, cujas vazantes e cheias do Nilo implicavam uma exiguidade de terras a serem utilizadas pela agricultura, em um meio arenoso e desértico. Não nos esqueçamos que Tales e Platão viveram no Egito. Provavelmente uma das inspirações da própria filosofia vieram do país das pirâmides.

                A geometria compartilha com a filosofia o gosto pelo abstrato. Abstrato quer dizer, com o separado do meio, com o meramente inteligível. Mas é assim também com qualquer ciência. Todas se apoiam em abstrações a fim de descobrir as leis subjacentes ou imanentes ao real. Nesse sentido, a máxima platônica de que na Academia somente deveria entrar quem conhecesse a geometria não se sustem: todas as ciências são propedêutica do espírito na viagem do conhecimento e a geometria não parece especialmente destinada a facilitar que singremos por esses males. Mas, quando Platão escrevia, as ciências ainda não estavam constituídas tal qual conhecemos hoje. Eram confusas, sem objetos claros, por vezes misturadas com elementos oriundos da religião grega. Fora do confuso campo do conhecimento, havia as técnicas, voltadas ao mero formar material. A geometria era uma das poucas ciências claramente distintas da filosofia. No Teeteto, somos apresentados ao jovem homônimo e a  seu mestre, Teodoro, que são apresentados como geômetras, o que deve indicar que havia já uma separação entre filosofia e a geometria, o ramo da matemática por excelência entre os gregos. Ao invés de a exigência do conhecimento de uma ciência, talvez o correto fosse exigir do neófito em filosofia uma formação científica, talvez equivalente ao nosso Ensino Médio. Ou seja, parasse cursar uma faculdade de filosofia, é mister conhecer as produções científicas de sua época, uma exigência que, ademais, não pode ser restrita á filosofia, mas deve recair sobre qualquer aspirante a pensador ou cientista ou bacharel.

                Além das abstrações, a geometria intenta descobrir leis ideias de figuras do pensamento. Nisso também se aproximaria da filosofia, visto que ambas abordam essencialmente fenômenos racionais. Assim como a geometria aborda um triângulo, o filósofo aborda o silogismo; se a geometria tenta nos fornecer as leis de todos os ângulos, a filosofia se esforça em nos brindar com a definição de justiça, etc. Mas os meios da geometria, os números, se diferenciam dos meios da filosofia, as letras. Sea geometria tem que lidar com as leis da matemática, a filosofia deve lidar com as normas da língua, uma diferença a mais, visto que ambas estão submetidas à lógica, as regras mais gerais do bem pensar. A filosofia guarda uma exigência a mais que a lógica, portanto, está mais sobrecarregada de obrigações.

                Se formos pensar nas matemáticas de maneira geral, universalizando a geometria, a exigência do conhecimento da matemática parasse filosofar parece mais absurda ainda. A matemática é um meio, um instrumento do conhecimento, não seu fim. À parte de textos de filosofia da matemática, poucos outros escritos filosóficos se aventuram em meio a números e retas. Claro, houve uma aproximação entre ambas, especialmente se pensarmos em Descartes ou Espinosa, que tentam desenvolver um pensamento á moda geométrica ou até mesmo deram grandes contribuições á matemática. Mas, em geral, o instrumento da filosofia é a lógica, disciplina esta que alguns vão fundara própria matemática. Não é necessário, pois, ao aprendiz de filósofo um conhecimento aprofundado de matemática, mas, sim, um pensamento lógico contumaz, além de imaginação na hora dos argumentos. Com estas em mãos, pode-se construir um cabedal de erudição, tarefa complexa, que demanda anos de aprendizagem e disciplina.

                Badiou insiste que, caso a filosofia intente fornecer uma verdadeira ontologia, ela deve se fiar na matemática, visto que ciências como a física, vão se valer dos números para decifrar o funcionamento do universo. A nosso ver, Badiou confunde o meio com o fim. A matemática é um instrumento valioso, mas não é a própria linguagem do universo, por onde o ser ele mesmo se expressa. Nos textos onde Sócrates debate com outros sobre formas geométricas, por exemplo o Mênon, ele faz detalhas descrições dessas formas sem se valer de diagramas ou números. É possível sonhar com uma escrita de fórmulas matemáticas que se valesse somente da linguagem natural. Mas, se em linguagem simbólica se pode chegar a resultados e exposições mais cômodas, por que mudar? Apenas queremos ressaltar que os numerais são, também, uma categoria gramatical, e que a linguagem natural pode descrever as descobertas da matemática. Badiou erra profundamente ao enxergar na matemática a verdadeira ontologia desconsiderando que a linguagem natural possui nuances que uma a linguagem matemática não possui. Onde se ganha em exatidão, se perde em sutiliza e em nuances dificilmente expressáveis em linguagem artificial.

Além disso, Badiou platoniza o universo, como se este tivesse uma linguagem na qual se expressasse; a nosso ver, as distintas linguagens, naturais ou artificiais, são invenções humanas, não podendo ser imputadas ao universo ele mesmo, talvez com a exceção das onomatopeias. É necessário salientar o papel humano na invenção da matemática. Isto nos lança em um verdadeiro debate ontológico. Afinal, o que é razão? Mera faculdade humana, racionalidade do mundo ou ambas? Evidentemente, o mundo possui uma racionalidade, ele funciona de certa maneira; e uma das maneiras pelas quais o mundo funcionou foi gerar uma espécie capaz de criar obras da razão ou do sentimento, de gerar frutos de sua ação, frutos que, hoje, alteram o próprio funcionamento do planeta. Uma das invenções desse animal foi uma linguagem artificial que funciona de modo a corresponder ao mundo ele mesmo tal qual conhecido por essa espécie. Mas essa linguagem não é natural; ao contrário, ela é fruto de indústria humana, foi inventada, possui data e nada nos garante que, em um futuro, ela não seja substituída por outra linguagem ainda mais perfeita ou, mesmo, que civilizações não humanas não tenham desenvolvido outras linguagens para dominar seus respectivos planetas e se lançar na aventura intergaláctica.

 A matemática se aprende. Se seu objeto são os números, eles são uma invenção. Já a geometria tem como objeto o espaço abstraído e pode, pelo menos em seus rudimentos, ser pensada sem números. O espaço se vive, é condição para que façamos qualquer outra coisa. Pensando destarte, a geometria é condição para que filosofemos, mas somente nesse campo exíguo.

A condição para a filosofia não é um conhecimento em geometria, mas uma boa formação geral. Somente aos filósofos da matemática ou das ciências será exigido um bom conhecimento da mesma. Além desta, deverão dominar a lógica, tão complexa quanto a matemática, talvez mais. Então, antes de nos engajarmos na filosofia da matemática, aprendamos lógica. Seu uso não será restrito ao nosso trabalho, mas aplicável às situações corriqueiras. No pórtico de Platão, talvez o correto a ser escrito fosse: não entre aquele que não conhece lógica; mas a lógica ainda não havia sido inventada. Platão está restrito a seu tempo.

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