A geometria é
uma ciência, a ciência que aborda pontos, retas, curvas. É a ciência do espaço
pensado de forma abstrato. Ela tem concorrentes, já que há outra ciência do
espaço, a geografia. Mas a geografia aborda o espaço enquanto humanamente
utilizado, ao passo que a geometria aborda o espaço in totó, abstraído
de seus usos. Não que a geometria seja exercício de panditas em suas torres de
marfim, muito ao contrário. Especula-se se o desenvolvimento da geometria no
antigo Egito não estava ligado às necessidades de repartição de terra no pais,
cujas vazantes e cheias do Nilo implicavam uma exiguidade de terras a serem
utilizadas pela agricultura, em um meio arenoso e desértico. Não nos esqueçamos
que Tales e Platão viveram no Egito. Provavelmente uma das inspirações da própria
filosofia vieram do país das pirâmides.
A
geometria compartilha com a filosofia o gosto pelo abstrato. Abstrato quer
dizer, com o separado do meio, com o meramente inteligível. Mas é assim também
com qualquer ciência. Todas se apoiam em abstrações a fim de descobrir as leis
subjacentes ou imanentes ao real. Nesse sentido, a máxima platônica de que na
Academia somente deveria entrar quem conhecesse a geometria não se sustem: todas
as ciências são propedêutica do espírito na viagem do conhecimento e a
geometria não parece especialmente destinada a facilitar que singremos por
esses males. Mas, quando Platão escrevia, as ciências ainda não estavam
constituídas tal qual conhecemos hoje. Eram confusas, sem objetos claros, por
vezes misturadas com elementos oriundos da religião grega. Fora do confuso
campo do conhecimento, havia as técnicas, voltadas ao mero formar material. A
geometria era uma das poucas ciências claramente distintas da filosofia. No Teeteto,
somos apresentados ao jovem homônimo e a
seu mestre, Teodoro, que são apresentados como geômetras, o que deve
indicar que havia já uma separação entre filosofia e a geometria, o ramo da
matemática por excelência entre os gregos. Ao invés de a exigência do
conhecimento de uma ciência, talvez o correto fosse exigir do neófito em
filosofia uma formação científica, talvez equivalente ao nosso Ensino Médio. Ou
seja, parasse cursar uma faculdade de filosofia, é mister conhecer as produções
científicas de sua época, uma exigência que, ademais, não pode ser restrita á
filosofia, mas deve recair sobre qualquer aspirante a pensador ou cientista ou
bacharel.
Além
das abstrações, a geometria intenta descobrir leis ideias de figuras do
pensamento. Nisso também se aproximaria da filosofia, visto que ambas abordam
essencialmente fenômenos racionais. Assim como a geometria aborda um triângulo,
o filósofo aborda o silogismo; se a geometria tenta nos fornecer as leis de
todos os ângulos, a filosofia se esforça em nos brindar com a definição de
justiça, etc. Mas os meios da geometria, os números, se diferenciam dos meios
da filosofia, as letras. Sea geometria tem que lidar com as leis da matemática,
a filosofia deve lidar com as normas da língua, uma diferença a mais, visto que
ambas estão submetidas à lógica, as regras mais gerais do bem pensar. A filosofia
guarda uma exigência a mais que a lógica, portanto, está mais sobrecarregada de
obrigações.
Se
formos pensar nas matemáticas de maneira geral, universalizando a geometria, a exigência
do conhecimento da matemática parasse filosofar parece mais absurda ainda. A
matemática é um meio, um instrumento do conhecimento, não seu fim. À parte de
textos de filosofia da matemática, poucos outros escritos filosóficos se
aventuram em meio a números e retas. Claro, houve uma aproximação entre ambas,
especialmente se pensarmos em Descartes ou Espinosa, que tentam desenvolver um
pensamento á moda geométrica ou até mesmo deram grandes contribuições á
matemática. Mas, em geral, o instrumento da filosofia é a lógica, disciplina
esta que alguns vão fundara própria matemática. Não é necessário, pois, ao
aprendiz de filósofo um conhecimento aprofundado de matemática, mas, sim, um
pensamento lógico contumaz, além de imaginação na hora dos argumentos. Com
estas em mãos, pode-se construir um cabedal de erudição, tarefa complexa, que
demanda anos de aprendizagem e disciplina.
Badiou
insiste que, caso a filosofia intente fornecer uma verdadeira ontologia, ela
deve se fiar na matemática, visto que ciências como a física, vão se valer dos
números para decifrar o funcionamento do universo. A nosso ver, Badiou confunde
o meio com o fim. A matemática é um instrumento valioso, mas não é a própria
linguagem do universo, por onde o ser ele mesmo se expressa. Nos textos onde
Sócrates debate com outros sobre formas geométricas, por exemplo o Mênon,
ele faz detalhas descrições dessas formas sem se valer de diagramas ou números.
É possível sonhar com uma escrita de fórmulas matemáticas que se valesse
somente da linguagem natural. Mas, se em linguagem simbólica se pode chegar a
resultados e exposições mais cômodas, por que mudar? Apenas queremos ressaltar
que os numerais são, também, uma categoria gramatical, e que a linguagem
natural pode descrever as descobertas da matemática. Badiou erra profundamente
ao enxergar na matemática a verdadeira ontologia desconsiderando que a
linguagem natural possui nuances que uma a linguagem matemática não possui.
Onde se ganha em exatidão, se perde em sutiliza e em nuances dificilmente expressáveis
em linguagem artificial.
Além disso,
Badiou platoniza o universo, como se este tivesse uma linguagem na qual se
expressasse; a nosso ver, as distintas linguagens, naturais ou artificiais, são
invenções humanas, não podendo ser imputadas ao universo ele mesmo, talvez com
a exceção das onomatopeias. É necessário salientar o papel humano na invenção
da matemática. Isto nos lança em um verdadeiro debate ontológico. Afinal, o que
é razão? Mera faculdade humana, racionalidade do mundo ou ambas? Evidentemente,
o mundo possui uma racionalidade, ele funciona de certa maneira; e uma das
maneiras pelas quais o mundo funcionou foi gerar uma espécie capaz de criar
obras da razão ou do sentimento, de gerar frutos de sua ação, frutos que, hoje,
alteram o próprio funcionamento do planeta. Uma das invenções desse animal foi
uma linguagem artificial que funciona de modo a corresponder ao mundo ele mesmo
tal qual conhecido por essa espécie. Mas essa linguagem não é natural; ao
contrário, ela é fruto de indústria humana, foi inventada, possui data e nada
nos garante que, em um futuro, ela não seja substituída por outra linguagem
ainda mais perfeita ou, mesmo, que civilizações não humanas não tenham
desenvolvido outras linguagens para dominar seus respectivos planetas e se
lançar na aventura intergaláctica.
A matemática se aprende. Se seu objeto são os
números, eles são uma invenção. Já a geometria tem como objeto o espaço
abstraído e pode, pelo menos em seus rudimentos, ser pensada sem números. O
espaço se vive, é condição para que façamos qualquer outra coisa. Pensando
destarte, a geometria é condição para que filosofemos, mas somente nesse campo
exíguo.
A condição
para a filosofia não é um conhecimento em geometria, mas uma boa formação
geral. Somente aos filósofos da matemática ou das ciências será exigido um bom
conhecimento da mesma. Além desta, deverão dominar a lógica, tão complexa
quanto a matemática, talvez mais. Então, antes de nos engajarmos na filosofia
da matemática, aprendamos lógica. Seu uso não será restrito ao nosso trabalho,
mas aplicável às situações corriqueiras. No pórtico de Platão, talvez o correto
a ser escrito fosse: não entre aquele que não conhece lógica; mas a lógica
ainda não havia sido inventada. Platão está restrito a seu tempo.
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