sábado, 16 de janeiro de 2021

O que é um mestre?

 

Por definição, um mestre é alguém versado em um tema ou prática que possui discípulos. Não há mestres sem discípulos, como também não há discípulos sem mestre. Há ainda expressões, como mestre-de-obras, que indica o mais bem dotado no canteiro; ou a expressão chave-mestra, que designa a chave que consegue abrir todas as portas.

                Na sociedade contemporânea, dominada por diversas instituições de ensino, a maioria das pessoas possuiu um mestre formal, o professor, seja nas etapas iniciais da vida escolar, seja na universidade. Além disso, também os pais ou aqueles responsáveis por criar a criança podem ser considerados mestres, na medida em que ensinam a falar, comer, enfim, que humanizam a criança. Nessa acepção, todos nós tivemos mestres e ser um autêntico autodidata seria impossível.

                A relação entre mestre e discípulo é de doação. O mestre ensina ao epígono como proceder em dadas ocasiões, como pensar, como agir, como se portar, como produzir. Só há mestre porque alguém o reconhece enquanto tal, a menos que se utilize a noção de mestre de forma muito vaga, indicando, também, por ela a relação de uma mãe elefanta com seus filhotes; nesse caso, se perde a especificidade da noção. Essa necessidade de reconhecimento indica que somente em uma relação pode surgir um mestre e seus discípulos, o que implica abertura para o aprendizado, para tomar lições e fazer exercícios. O mestre guiará pelos caminhos abscônditos do mundo seu discípulo, lhe fornecendo as chaves da ação.

                Claro, há os autodidatas. Conforme apontados, nunca se será um completo autodidata, mas sim autodidata em alguma área, visto que não se nasce sabendo, é necessário aprender, e o aprendizado depende do contato humano com outros humanos. O autodidata, mesmo os mais empedernidos, também empreendem um contato humano, por exemplo observando como se faz um trabalho ou lendo livros por conta própria. Nesse caso, seus mestres serão as pessoas as quais ele viu operando ou os livros os quais ele leu para aprender. Assim, um autodidatismo puro não foi possível nem mesmo aos grandes iniciadores da ciência, que se apropriaram de um saber já existente, em uma sociedade que os nutriu e preparou para suas respectivas jornadas. Somente existem autodidatas relativos.

                Ao aprendiz, cumpre aprender, ao mestre, educar. O bom aprendiz será aquele que conseguir superar seu mestre e dar um passo além, se tornando, por sua vez, mestre de novas pessoas, em uma cadeia de relações que liga futuro, presente e passado. Foi porquê outros aprenderam e criaram que podemos transmitir o saber adquirido, fruto de todo o conjunto do esforço humano de uma sociedade, para outrem, visto que o saber é sempre social.

                Pensemos na filosofia. Nessa área, as relações entre mestres e discípulos se manifestam há muito e são muito importantes. Sócrates legou uma dezena de discípulos que, por sua vez, constituíram escolas próprias de filosofia ou foram se embrenhar na política. Como em dado momento, quando se estabelece o cânone da tradição ocidental, Platão passa a ser leitura obrigatória; e como ele ensinou filósofos, que ensinou filósofos, etc., pode-se dizer que todos nós, filósofos, somos herdeiros de Sócrates e, antes dele, de Anaxágoras, etc. A cadeia de professores que temos nos liga diretamente à Grécia antiga. Nas sociedades modernas, o filósofo quase sempre terminará por ser professor, legando a tradição às gerações futuras.

                Ser mestre nos dá a chance de receber a tradição herdada e aprimorá-la, sempre ao nosso modo, de forma a imprimir, na história de antecessores e sucessores, nossa marca ou, até mesmo, causar uma grande ruptura na história do saber. Se o melhor discípulo é aquele que supera seus mestres, pode-se dizer que gerar essa ruptura é, mesmo, o objetivo de todo discípulo. Mas não é fácil romper com seus mestres. As ideias aprendidas se tornam fixas, vão se imobilizando, devém crença fossilizada. Para romper com um mestre, somente com a ajuda de outros, talvez distantes no tempo e no espaço, mas que hão de se fazer presentes.

                O mestre lega uma tradição. Cumpre ao discípulo aprender essa tradição para leva-la ao limite? Pode-se continuara tradição, mas a adaptando aos novos fatos do mundo. Pode-se romper a tradição, misturando-a com outras. Por fim, pode-se abandonar qualquer perspectiva, deixando de lado o aprendido com o mestre. O que importa é que foi graças ao mestre que pudemos inclusive escolher abandoná-lo.

                Alguns mestres são desprezados pelos seus discípulos. O mestre tenta ensinar o estado da arte de seu ofício, o melhor da tradição. Mas a tradição, por vezes, está errada e somente os discípulos, com mente menos impregnada dela, conseguem enxergar essa inadequação entre tradição-problemas a resolver. Nesse caso, os mestres se tornam obstáculos à resolução dos problemas, o que implica que os discípulos devem formar suas próprias escolas.

                Ser mestre gera prazer, mas gera também desconforto. Gera prazer na medida em que se conquista a imortalidade ao legar discípulos que defenderão suas ideias depois que já se estiver morto. É como ter um filho, que prosseguirá nosso trabalho mesmo quando o corpo já tiver fenecido. Mas gera desconforto, na medida em que constantemente se está em perigo de ser ultrapassado pelos seus discípulos e ver o saber ensinado ser transmutado em outra matéria. O mestre não possui controle sobre as ações dos discípulos, que podem se revoltar e partir para outras paragens prático-teóricas. Esse desconforto deveria gerar no mestre a necessidade de sempre se atualizar, de prever os passos dos discípulos a fim de se adiantar a eles e, ao invés de ser por eles ultrapassado, profilaticamente os ultrapassar. Mas este seria o mau mestre, que não consegue lidar com o fato de estar destinado a desaparecer.

Muito poucos entram para a história. Os mais importantes, quem garante nosso dia-a-dia, desaparecem sem deixar traços. Os grandes mestres do pensamento, que conseguem gerar discussões sobre suas obras séculos, por vezes milênios depois de terem partido, são poucos. Se devemos ambicionar ser alguém com legado, quer dizer, se devemos ambicionar engendrar obras que provoquem discussões séculos depois de termos falecido (ou seja, devemos ambicionar a perfeição), podemos simplesmente nos recolher e nos contentar a ser mestres outros, que leguem a tradição humana adiante, em uma escala menor. Não são mestres menores, somente de outro tipo, que visam outras coisas. Sem eles, este texto não poderia ser escrito, nem nenhum outro; afinal, quantas estátuas de mães, pais, mestres-escola, etc. já se viu? Certamente poucas. Esta é outra das injustiças da história com os mestres anônimos e essenciais da multidão.

Nenhum comentário:

Postar um comentário