Por definição,
um mestre é alguém versado em um tema ou prática que possui discípulos. Não há
mestres sem discípulos, como também não há discípulos sem mestre. Há ainda
expressões, como mestre-de-obras, que indica o mais bem dotado no canteiro; ou
a expressão chave-mestra, que designa a chave que consegue abrir todas as
portas.
Na
sociedade contemporânea, dominada por diversas instituições de ensino, a
maioria das pessoas possuiu um mestre formal, o professor, seja nas etapas
iniciais da vida escolar, seja na universidade. Além disso, também os pais ou
aqueles responsáveis por criar a criança podem ser considerados mestres, na
medida em que ensinam a falar, comer, enfim, que humanizam a criança. Nessa
acepção, todos nós tivemos mestres e ser um autêntico autodidata seria
impossível.
A
relação entre mestre e discípulo é de doação. O mestre ensina ao epígono como
proceder em dadas ocasiões, como pensar, como agir, como se portar, como
produzir. Só há mestre porque alguém o reconhece enquanto tal, a menos que se utilize
a noção de mestre de forma muito vaga, indicando, também, por ela a relação de
uma mãe elefanta com seus filhotes; nesse caso, se perde a especificidade da
noção. Essa necessidade de reconhecimento indica que somente em uma relação
pode surgir um mestre e seus discípulos, o que implica abertura para o
aprendizado, para tomar lições e fazer exercícios. O mestre guiará pelos
caminhos abscônditos do mundo seu discípulo, lhe fornecendo as chaves da ação.
Claro,
há os autodidatas. Conforme apontados, nunca se será um completo autodidata,
mas sim autodidata em alguma área, visto que não se nasce sabendo, é necessário
aprender, e o aprendizado depende do contato humano com outros humanos. O
autodidata, mesmo os mais empedernidos, também empreendem um contato humano,
por exemplo observando como se faz um trabalho ou lendo livros por conta
própria. Nesse caso, seus mestres serão as pessoas as quais ele viu operando ou
os livros os quais ele leu para aprender. Assim, um autodidatismo puro não foi
possível nem mesmo aos grandes iniciadores da ciência, que se apropriaram de um
saber já existente, em uma sociedade que os nutriu e preparou para suas
respectivas jornadas. Somente existem autodidatas relativos.
Ao
aprendiz, cumpre aprender, ao mestre, educar. O bom aprendiz será aquele que
conseguir superar seu mestre e dar um passo além, se tornando, por sua vez,
mestre de novas pessoas, em uma cadeia de relações que liga futuro, presente e
passado. Foi porquê outros aprenderam e criaram que podemos transmitir o saber
adquirido, fruto de todo o conjunto do esforço humano de uma sociedade, para
outrem, visto que o saber é sempre social.
Pensemos
na filosofia. Nessa área, as relações entre mestres e discípulos se manifestam
há muito e são muito importantes. Sócrates legou uma dezena de discípulos que,
por sua vez, constituíram escolas próprias de filosofia ou foram se embrenhar
na política. Como em dado momento, quando se estabelece o cânone da tradição
ocidental, Platão passa a ser leitura obrigatória; e como ele ensinou filósofos,
que ensinou filósofos, etc., pode-se dizer que todos nós, filósofos, somos
herdeiros de Sócrates e, antes dele, de Anaxágoras, etc. A cadeia de
professores que temos nos liga diretamente à Grécia antiga. Nas sociedades
modernas, o filósofo quase sempre terminará por ser professor, legando a
tradição às gerações futuras.
Ser
mestre nos dá a chance de receber a tradição herdada e aprimorá-la, sempre ao
nosso modo, de forma a imprimir, na história de antecessores e sucessores,
nossa marca ou, até mesmo, causar uma grande ruptura na história do saber. Se o
melhor discípulo é aquele que supera seus mestres, pode-se dizer que gerar essa
ruptura é, mesmo, o objetivo de todo discípulo. Mas não é fácil romper com seus
mestres. As ideias aprendidas se tornam fixas, vão se imobilizando, devém
crença fossilizada. Para romper com um mestre, somente com a ajuda de outros,
talvez distantes no tempo e no espaço, mas que hão de se fazer presentes.
O
mestre lega uma tradição. Cumpre ao discípulo aprender essa tradição para leva-la
ao limite? Pode-se continuara tradição, mas a adaptando aos novos fatos do
mundo. Pode-se romper a tradição, misturando-a com outras. Por fim, pode-se
abandonar qualquer perspectiva, deixando de lado o aprendido com o mestre. O
que importa é que foi graças ao mestre que pudemos inclusive escolher abandoná-lo.
Alguns
mestres são desprezados pelos seus discípulos. O mestre tenta ensinar o estado
da arte de seu ofício, o melhor da tradição. Mas a tradição, por vezes, está
errada e somente os discípulos, com mente menos impregnada dela, conseguem
enxergar essa inadequação entre tradição-problemas a resolver. Nesse caso, os
mestres se tornam obstáculos à resolução dos problemas, o que implica que os
discípulos devem formar suas próprias escolas.
Ser
mestre gera prazer, mas gera também desconforto. Gera prazer na medida em que
se conquista a imortalidade ao legar discípulos que defenderão suas ideias
depois que já se estiver morto. É como ter um filho, que prosseguirá nosso
trabalho mesmo quando o corpo já tiver fenecido. Mas gera desconforto, na
medida em que constantemente se está em perigo de ser ultrapassado pelos seus
discípulos e ver o saber ensinado ser transmutado em outra matéria. O mestre
não possui controle sobre as ações dos discípulos, que podem se revoltar e
partir para outras paragens prático-teóricas. Esse desconforto deveria gerar no
mestre a necessidade de sempre se atualizar, de prever os passos dos discípulos
a fim de se adiantar a eles e, ao invés de ser por eles ultrapassado,
profilaticamente os ultrapassar. Mas este seria o mau mestre, que não consegue
lidar com o fato de estar destinado a desaparecer.
Muito poucos
entram para a história. Os mais importantes, quem garante nosso dia-a-dia,
desaparecem sem deixar traços. Os grandes mestres do pensamento, que conseguem
gerar discussões sobre suas obras séculos, por vezes milênios depois de terem
partido, são poucos. Se devemos ambicionar ser alguém com legado, quer dizer,
se devemos ambicionar engendrar obras que provoquem discussões séculos depois
de termos falecido (ou seja, devemos ambicionar a perfeição), podemos simplesmente nos recolher e nos contentar a ser
mestres outros, que leguem a tradição humana adiante, em uma escala menor. Não são
mestres menores, somente de outro tipo, que visam outras coisas. Sem eles, este
texto não poderia ser escrito, nem nenhum outro; afinal, quantas estátuas de
mães, pais, mestres-escola, etc. já se viu? Certamente poucas. Esta é outra das
injustiças da história com os mestres anônimos e essenciais da multidão.
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