domingo, 9 de junho de 2019

A fome


Sou gordo desde pelo menos a adolescência. Não à toa: como muito. Sinto dentro de mim uma fome inexplicável que impele a provar todo tipo de guloseima, desde as mais simples até aquelas mais requintadas. Gasto muito com minha alimentação. Contudo, embora esteja sempre comendo algo, esta fome que eu sinto é diferente da fome do resto da humanidade e dos demais animais. Nunca estou saciado, sempre quero mais. Trata-se de uma fome que nunca vai embora, nenhum prato me satisfazendo. É uma fome, por assim dizer, ontológica, insaciável, porque aquilo que me impele a comer, aquele desejo miúdo mas constante, este nunca vai embora.

            Pouco antes de minha mãe falecer, fui visitá-la. Ela preparou um banquete e eu me fartei, malgrado não tenha ficado satisfeito. Entre álbuns de infância, com aquelas fotos que muitas vezes nos fazem corar, e roupas infantis, ela me confessou uma coisa. Todos conhecem aquele velho mito: quando a mulher está grávida, deve satisfazer seu desejo por comida ou a criança nascerá com o rosto do objeto ora desejado mas não consumido. Lembro-me de um gibi que eu tinha na infância, onde dona Cebolinha tinha desejo de manga, quando grávida da irmã do Cebolinha. Seu Cebola se desdobrou para realizar o desejo de sua amada esposa, e, fora de época, conseguiu uma manga, não sem se estropiar todo ao cair do alto da árvore.

Minha mãe também teve este desejo por alimentos exóticos, mas foi um desejo ainda mais inusitado: comer merda. Ela, após obrar no trono, ficava contemplando sua realização, imaginando o gosto que deveria ter esta iguaria. Depois fiquei me perguntando se não seria influência de Pasolini, visto ser este cineasta uma das referências de minha mãe, malgrado sua carolice. Mas a cena em que o Duque defeca no chão e obriga a jovem e atraente loira a comer, com colher de sobremesa — verdadeiro requinte —, suas fezes, esta cena marcou a história do cinema e há de ser lembrada. De todo modo, minha mãe teve este desejo e, embora as crendices do populacho, não o realizou.

Não nasci com cara de merda; no entanto, não se pode dizer que eu seja bonito. A revelação de minha mãe, nos estertores de sua vida, foi um choque e uma epifania para mim. Choque pelo inusitado da situação; em um mundo de testículos, olhos de cabra, ora-pro-nobis e rins, ela foi logo desejar merda; e não qualquer merda, visto que na alface mal lavada há de existir um pouco de estrume, e o próprio mel, embora não seja merda, tem uma origem contestável aos mais fracos de estômago. Mas merda humana, sua própria merda, o restos remoídos de sua alimentação.

Logo se percebe a tentação que foi me consumindo aos poucos. De início, tomei a idéia como bizarra, e a rechaçava inteiramente. Mas, peu à peu, fui reconsiderando a idéia, pensando no que minha mãe deveria ter feito e não fez, mesmo correndo o risco de seu filho nascer com cara de bosta. Fui levado pelo desejo, consumido pela curiosidade. Um dia, especialmente escolhido pela refeição passada (pizza de rúcula com tomate seco, cervejas e amendoins), no verdadeiro coração da madrugada, defequei. Aquele cheiro, de princípio nauseabundo e infecto, foi, aos poucos, se tornando atraente. Então, tomado por uma nostalgia de quando ainda não tinha nascido e por um desejo arrebatador, com uma colher de sobremesa eu provei. A consistência daquele troço era firme, muito firme, chegando a lembrar um bom pão-de-ló. Mas seu gosto, ó deus, aquele gosto perfeito. A primeira mastigada foi estranha, mas logo me empolguei. Bem devo ter comido meio quilo da mais pura merda, acompanhado de um vinho do porto, safra 92. Enfim, senti minha fome existencial saciada. Era uma fome que remontava à época de quando eu era feto, ancestral, genética.

Atualmente, pode-se dizer que sou chef na arte de preparar merda. Já provei de todas as maneiras: sauté, cozida, ensopada, refogada, à parmegiana, à milanesa, com legumes, na manteiga, assada, etc. Altero minha alimentação conforme a consistência que desejo: mais mole, mais dura, macia. Tornei-me até mesmo apreciador das fezes de animais; não, nada de vacas e cavalos, mas cachorros e gatos. Também não se deve alimentá-los com ração, mas, sim, com carne, pois o gosto divino deste verdadeiro manjar dos deuses se torna mais pútrido, acentuando seu sabor único.

Hoje em dia posso dizer: eu sou um homem feliz.

4 comentários:

  1. Saudações Guminha. Abraços fraternos.

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  2. Daaaa horas!!. Só fiquei meio arrependido de ter lido antes de almoçar porque tava com fome e agora to meio de boas huahuahua

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