O
programa neoclássico de Winckelmann e “As sabinas que interrompem o combate
entre romanos e sabinos” (1794-1799), de Jean-Jacques Louis David
JUSTIFICATIVA
METODOLÓGICA
Nossos objetivos neste texto são:
estabelecermos o programa estético do neoclassicismo alemão; e, com base nele,
analisarmos o quadro As sabinas que interrompem o combate entre romanos e
sabinos” (1794-1799), de Jean-Jacques Louis David, caracterizada como
neoclássico. Levantaremos o programa estético do neoclassicismo a partir
daquele que foi o seu maior inspirador na Alemanha: Winckelmann. Para tal, nos
serviremos de seu pequeno ensaio Reflexões sobre a arte antiga, nos
apoiando tanto no texto introdutório da edição por nós utilizada, como em
alguns livros de história da arte. Como o neoclássico se liga indubitavelmente
ao desenvolvimento da unidade cultural do povo alemão, faz-se necessário dele
também um pouco falar. Com isso buscaremos os elementos necessários seja para
esclarecer o leitor quanto a análise proposta, seja para darmos a nós mesmos os
elementos teóricos fitando pensar, na supracitada obra, os elementos que a
caracterizam como neoclássica.
INTRODUÇÃO HISTÓRICA
O século XVIII começa, no campo
artístico, com a predominância de um estilo, o barroco, ou de alguma de suas
variantes como o Rococó; conhecido como arte da “dobra”, do fausto, do detalhe,
da contradição entre dor e felicidade, divino e profano, o espírito do barroco
logo entrará em contradição profunda com aquele que é o chamado, devemos nos
lembrar, “século das luzes”, seja pelo iluminismo, seja pelo fim dos resquícios
da então chamada “idade das trevas”, isto é, a medievalidade, e a emergência da
modernidade. É neste contexto que surgirá aquilo que chamamos “neoclassicismo”,
que por sua vez dará origem, como contra-efeito, ao romantismo. Como já dito,
entender o surgimento do neoclassicismo implica que compreendamos, mesmo que
superficialmente, a história daquela região hoje agrupada sob o estado alemão.
Durante toda a era medieval, a
Europa vivia, de modo geral, um contexto de unidade cultural, advindo do
cristianismo. No campo artístico, o período é marcado por dois estilos que se
manifestaram, sobremaneira, no campo arquitetônico, quais sejam, o românico e o
gótico; aquele corresponde a Alta Idade Média (portanto ao período de maior
feudalização e fechamento cultural), este corresponde a Baixa Idade Média,
assim, ao período anterior à explosão que foi o humanismo renascentista.
Essa
unidade será cindida por esse Renascimento e pela Reforma protestante. Do
século XVI ao século XVIII, esse último movimento levará as regiões componentes
do Sacro-Império Romano Germânico, e, numa acepção mais geral, toda a “cultura
germânica”, a um isolamento do Renascimento “latino”, cujo ápice foi, não por
acaso, a península Itálica, berço da nascente burguesia comercial. A Reforma se
opõe ao Renascimento pelo seu caráter anti-humanista e, até mesmo,
irracionalista, ao privilegiar um mundo sobrenatural e uma purificação do
cristianismo “terreno” dos católicos, em um mundo teocêntrico. O neoclassicismo
será, neste âmbito cultural restrito, a tentativa de rompimento com o
isolamento cultural germânico. Entretanto, será somente com o romantismo que a
futura Alemanha poderá fundar uma cultura nacional, entendida como
manifestações artísticas de uma unidade, o "povo"; e é por serem os
forjadores dessa unidade cultural, dentre outros motivos, que tanto o
neoclassicismo como o romantismo só podem ser plenamente entendidos no contexto
da nação cultural alemã.
WINCKELMANN:
NEOCLASSICISMO E A CULTURA ALEMÃ
O neoclassicismo é um movimento de
reação ao barroco. Seu surgimento, conforme mostrado, está profundamente ligado
à cultura alemã do período e a seu isolamento e fragmentação diante do contexto
europeu. Diz-se que o neoclassicismo alemão teve três grandes figuras:
Winckelmann, Herder e Goethe; o primeiro seria o grande incentivador; o segundo
o teórico; o terceiro, o realizador. Nos focaremos, aqui, sobretudo no
primeiro.
Johann
Joachim Winckelmann (1717-1768) era um helenista e, sobretudo, um entusiasta da
cultura grega. Em 1755, ao publicar Reflexões sobre a arte antiga,
Winckelmann propõe que um retorno aos gregos como modelo de arte, pois eles
seriam "a fonte mais pura da arte"; essa concepção pode ser
sintetizada em sua famosa frase: “o único caminho para nos tornarmos grandes e,
se possível, inimitáveis, é a imitação dos antigos” (WINCKELMANN, 1993, p. 18).
Com isso Winckelmann não propunha a cópia da obra do que ele chama antigos, ou
seja, os gregos; ele pensava que o artista deveria aprender a apreender o mundo
como os gregos. Para os gregos se tratava de dois tipos de beleza, a natural e
a ideal; aquela resulta do belo corpo — Winckelmann pensa sobretudo nas artes plásticas
—, esta só pode resultar da inteligência do artista; a lei suprema dos artistas
gregos, “representar as pessoas com fidelidade e ao mesmo tempo mais belas”
(WINCKELMANN, 1993, p. 45), diz justamente de como deve o artista proceder:
conformar a beleza natural ao eidos, a idéia universal platônica, a
beleza ideal.
Desta
concepção decorre a posição de Winckelmann segundo a qual o aprendiz de artista
deve iniciar seus estudos através da imitação dos antigos. Tal conceituar marca
a diferença entre o barroco e Winckelmann; para Bernini — o maior escultor
barroco, chamado de "segundo Michelângelo" — o aprendizado deveria se
iniciar através do estudo da natureza. Ora, Winckelmann considera que há dois
modos de imitar a natureza: objeto único (o retrato) ou o todo unido (o belo
universal); aprender arte através do estudos das obras dos antigos garantirá ao
jovem artista a capacidade de pensar e conceber com firmeza, como faziam os
antigos, resultando disso uma obra tal qual as gregas: inimitável, no limite entre
o belo humano e o belo divino. Além disso, há outra marca distintiva dos
gregos, o contorno; é ele que une as duas belezas, e por isso ele deve ser o
objetivo principal dos artistas. Há também o fato de que a arte não deve ser
vazia, isto é, exprimir nada; a arte deve pensar, e com isso Winckelmann quis
dizer: exprimir pelo material o imaterial — a alegoria; com esse fito, o
artista deve adquirir erudição seja pela poesia, seja pela mitologia. Através
deste proceder, o pintor mostrará que sua pintura possui um legado não só
estético, mas também da ordem do pensamento. O fim da arte, assim, deve ser não
só agradar, mas instruir também; e isto, até hoje, quem fez melhor, para
Winckelmann, foram os gregos. O que distingue as obras gregas é sua tranqüilidade,
sua calma, seu equilíbrio, sua "nobre simplicidade e grandeza serena,
tanto na atitude quanto na expressão" (WINCKELMANNN, 1993, p. 53),
portanto, tanto no artista — beleza ideal, do eidos —, quanto na
expressão — beleza natural, do belo corpo e belo modelo grego.
*
O programa estético de Winckelmann
teve grande influência, sobretudo, nos literatos, malgrado sua especialização
em artes plásticas. Goethe e Schiller, além Herder e Wieland, ao adotarem esse
programa constituíram o chamado "Classicismo de Weimar".
Paradoxalmente, a maior figura do neoclassicismo alemão, Goethe, será também a
maior figura do romantismo, movimento de reação às idéias neoclássicas; Fausto
é simultaneamente o grande ápice do neoclassicismo alemão, mas também uma obra
romântica de primeira grandeza. A influência de Winckelmann foi grande, não
tanto como teórico, mas como aquele que trouxe um ideal, o grego, à Alemanha;
essa ligação entre os gregos e os alemães se fará presente por séculos na
cultura alemã, de Goethe a Heidegger, de Herder à Hölderlin; para muitos dentre
estes, os alemães são os gregos da era moderna: povo verdadeiramente criativo,
originário.
Se na Alemanha, embora o alarde, a
produção cultural tenha sido pequena, no resto da Europa o neoclassicismo teve
grande relevância. Propriamente dito, o movimento nasce em Roma, seio do
barroco, com a descoberta das cidades soterradas de Herculano e Pompéia; com
celeridade chega tanto à França como à Inglaterra. Aqui é notável a influência
de Winckelmann. Na França o movimento atingirá seu auge com Jean-Jacques Louis
David, pois este se torna o pintor oficial do então imperador Napoleão
Bonaparte. É através do império e da perspectiva napoleônica de uma unidade
européia que o neoclassicismo ofereceu a possibilidade de uma outra unidade
européia, a cultural. Neste campo temos de citar as obras arquitetônicas do
período, que abrangem tanto o Arco do Triunfo, em Paris, como o Portão de
Brandenburgo em Berlim, ressoando até os dias de hoje nas mais diversas partes
do globo. O século XIX viu a grande disputa entre o neoclassicismo eo
romantismo, também na França, materializado na disputa entre dois grandes
pintores: Delacroix, romântico, pintor da Liberdade guiando o povo, e
Ingres, neoclássico, aprendiz de David e refinador do estilo deste, pintor da Odalisca.
Podemos dizer, que a derrocada do neoclássico, no correr do século XIX,
acompanhou a derrocada do império napoleônico e de seus ideais, aos quais havia
se vinculado. A
O neoclassicismo é, sobretudo, a
arte do Iluminismo, portanto arte da razão, do calmo, do equilibrado; com já
disse Nietzsche, do apolíneo. Por origem e por inspiração, o neoclássico
liga-se tanto à arte grega quanto à arte romana, como, ainda, à arte
renascentista. Pela sua proposta, o século XVIII foi o mais apropriado local ao
neoclássico. Tanto é que o período 1750-1800 é chamado de "era da
razão", isto é, do neoclássico, ao passo que o período 1800-1850 é chamado
"era da sensibilidade", pelo seu caráter romântico. Há quem diga que
o clássico e, por extensão, o neoclássico sejam a arte do mundo mediterrâneo
pelo tipo de relação que se mantém com a natureza, uma relação clara, positiva,
fecunda.
Exposto o programa e a
contextualização do neoclassicismo, só nos resta prosseguir com nossa proposta
e analisarmos, nestas bases, o famoso quadro de David.
ANÁLISE DE OBRA
QUADRO: “As sabinas
que interrompem o combate entre romanos e sabinos” (1794-99), Jean-Jacques
Louis David

Este quadro de David possui todas as
principais características elencadas pelo programa estético de Winckelmann,
quais sejam: a imitação dos antigos; a
beleza natural e o eidos, beleza ideal; o contorno; a expressão imaterial por
meio do material, a alegoria.
Quando a imitação dos antigos, ela
se dá já, pois o tema do quadro que, muito embora não grego, é romano.
Winckelmann considerava os romanos como que gregos deturpados, mas não os
desprezava de todo; além disso, o quadro é de David, e as recorrências a temas
latinos é constante em sua obra. Na temática já se expressa a imitação dos
antigos. Há outras referências aos gregos; por exemplo, ao fundo pode-se
visualizar uma edificação sobre uma rocha elevada, referência velada à
Acrópole; nesta mesma edificação, é possível distinguir um homem com a mão
levantada, que vê toda a batalha, mas dela não comunga diretamente, talvez, uma
referência a Zeus ou, antes, Júpiter, nome romano do líder dos deuses; outra
referência velada se encontra entre a cabeça do soldado em primeiro plano e a
cabeça do cavalo branco, pois aí podemos divisar a figura de uma mulher com um
capacete tal qual o das representações da deusa Atenas ou, antes, Minerva, nome
romano da deusa da sabedoria; por curiosidade, vale citar que esta dama segura
uma longa vara na ponta da qual há um monte de gravetos de palha atados, o fasci,
de onde descende o termo fascismo.
Do belo corpo não há o que se dizer:
todos os homens e mulheres são belíssimos; os soldados, com músculos
definidos, glúteos perfeitamente
redondos; sua posição e o jogo de sombras salientam sua musculatura; a mulher
em primeiro plano, com os seios torneados à mostra, demonstra o cuidado com o
corpo; a outra mulher, que conduz o cavalo para fora do combate, completamente
nua, também demonstra suas belas formas, enquanto que as demais sabinas não
mostram senão beleza; até mesmo as crianças e os cavalos tem músculos
definidos. Enfim, pode-se dizer que os modelos são belos corpos. Quanto ao eidos,
a beleza ideal, não há como negar: o sabino em primeiro plano é quase que um
David de Michelângelo mais forte, enquanto que a sabina, a Vênus vestida. A “lei suprema dos artistas gregos” é aqui
seguida à risca, pois a beleza dos corpos é completamente idealizada de acordo
com o tipo físico propriamente grego, aspirado pelo homem grego ou pelas
escolas de inspiração grega, como a renascentista; podemos comprovar isso no
mesmo soldado romano em primeiro plano, pois entre sua testa e seu nariz há uma
continuidade perfeita, e isto é uma das características do belo rosto grego.
Embora na batalha, não se vislumbra uma única mancha de sangue e os homens
lutam nus, o que demonstra a idealização da guerra, comparada as Olimpíadas
gregas, onde os jovens disputavam nus.
Se as duas belezas não se completassem,
o quadro teria falhado; é o contorno que dá unidade as duas belezas, que as
unes, as fecha em um todo harmônico. Ele não falta no quadro, pelo contrário, é
desde-já visível. Não há dúvidas das posições, expressões ou definições das
figuras: elas são claras; não há desfoque ou interpretações mais ousadas: a
pintura é objetiva. É o contorno que garante essa clareza, esse compasso dos
elementos do quadro. A clareza se dá também doutra forma tanto pela visão
panorâmica da batalha quanto pelo fato de não haver mistérios, o quadro, a
representação, se dá toda sem nada esconder, de uma vez só.
O quadro retrata o episódio no qual os romanos, em seu processo de
expansão imperialista, invadiram e raptaram as mulheres da tribo dos sabinos,
que habitavam o sul da península Itálica. Assim, a temática demonstra a
erudição de David. Portanto é um quadro não só belo, mas, também, em certa
,medida, pedagógico, pois esclarece um episódio da história do Ocidente.
Enfim,
e de modo mais geral, caso notemos que em meio a batalha, não há nenhuma feição
de medo, exceto a do cavalo branco – uma das poucas personagens que olham
diretamente ao fruidor –, e nisto nos lembrarmos das palavras de Winckelmann,
que o distintivo das obras gregas é sua serenidade, sua calma, seu equilíbrio,
sua "nobre simplicidade e grandeza serena, tanto na atitude quanto na
expressão" (WINCKELMANNN, 1993, p. 53), poderemos caracterizar esta obra
como executora do programa neoclássico de Winckelmann. Com a conclusão de
nossos objetivos, damos por concluído nosso trabalho.
Bibliografia
ARGAN, J. C.; Arte
Moderna, SP: Companhia das Letras, 2002, 8ª reimpressão
STICKHARD, C.; Arte
comentada da pré-história ao pós-moderno; RJ: Ediouro, 1999, 4ª ed.
WINCKELMANN, J. J.;
Reflexões sobre a arte antiga; Porto Alegre-RG: Movimento, 1993, 2ª ed.
Nenhum comentário:
Postar um comentário