quinta-feira, 13 de junho de 2019

O programa neoclássico de Winckelmann e “As sabinas que interrompem o combate entre romanos e sabinos” (1794-1799), de Jean-Jacques Louis David


            O programa neoclássico de Winckelmann e “As sabinas que interrompem o combate entre romanos e sabinos” (1794-1799), de Jean-Jacques Louis David


JUSTIFICATIVA METODOLÓGICA

            Nossos objetivos neste texto são: estabelecermos o programa estético do neoclassicismo alemão; e, com base nele, analisarmos o quadro As sabinas que interrompem o combate entre romanos e sabinos” (1794-1799), de Jean-Jacques Louis David, caracterizada como neoclássico. Levantaremos o programa estético do neoclassicismo a partir daquele que foi o seu maior inspirador na Alemanha: Winckelmann. Para tal, nos serviremos de seu pequeno ensaio Reflexões sobre a arte antiga, nos apoiando tanto no texto introdutório da edição por nós utilizada, como em alguns livros de história da arte. Como o neoclássico se liga indubitavelmente ao desenvolvimento da unidade cultural do povo alemão, faz-se necessário dele também um pouco falar. Com isso buscaremos os elementos necessários seja para esclarecer o leitor quanto a análise proposta, seja para darmos a nós mesmos os elementos teóricos fitando pensar, na supracitada obra, os elementos que a caracterizam como neoclássica.

INTRODUÇÃO HISTÓRICA
           
            O século XVIII começa, no campo artístico, com a predominância de um estilo, o barroco, ou de alguma de suas variantes como o Rococó; conhecido como arte da “dobra”, do fausto, do detalhe, da contradição entre dor e felicidade, divino e profano, o espírito do barroco logo entrará em contradição profunda com aquele que é o chamado, devemos nos lembrar, “século das luzes”, seja pelo iluminismo, seja pelo fim dos resquícios da então chamada “idade das trevas”, isto é, a medievalidade, e a emergência da modernidade. É neste contexto que surgirá aquilo que chamamos “neoclassicismo”, que por sua vez dará origem, como contra-efeito, ao romantismo. Como já dito, entender o surgimento do neoclassicismo implica que compreendamos, mesmo que superficialmente, a história daquela região hoje agrupada sob o estado alemão.

            Durante toda a era medieval, a Europa vivia, de modo geral, um contexto de unidade cultural, advindo do cristianismo. No campo artístico, o período é marcado por dois estilos que se manifestaram, sobremaneira, no campo arquitetônico, quais sejam, o românico e o gótico; aquele corresponde a Alta Idade Média (portanto ao período de maior feudalização e fechamento cultural), este corresponde a Baixa Idade Média, assim, ao período anterior à explosão que foi o humanismo renascentista.

Essa unidade será cindida por esse Renascimento e pela Reforma protestante. Do século XVI ao século XVIII, esse último movimento levará as regiões componentes do Sacro-Império Romano Germânico, e, numa acepção mais geral, toda a “cultura germânica”, a um isolamento do Renascimento “latino”, cujo ápice foi, não por acaso, a península Itálica, berço da nascente burguesia comercial. A Reforma se opõe ao Renascimento pelo seu caráter anti-humanista e, até mesmo, irracionalista, ao privilegiar um mundo sobrenatural e uma purificação do cristianismo “terreno” dos católicos, em um mundo teocêntrico. O neoclassicismo será, neste âmbito cultural restrito, a tentativa de rompimento com o isolamento cultural germânico. Entretanto, será somente com o romantismo que a futura Alemanha poderá fundar uma cultura nacional, entendida como manifestações artísticas de uma unidade, o "povo"; e é por serem os forjadores dessa unidade cultural, dentre outros motivos, que tanto o neoclassicismo como o romantismo só podem ser plenamente entendidos no contexto da nação cultural alemã.

WINCKELMANN: NEOCLASSICISMO E A CULTURA ALEMÃ

            O neoclassicismo é um movimento de reação ao barroco. Seu surgimento, conforme mostrado, está profundamente ligado à cultura alemã do período e a seu isolamento e fragmentação diante do contexto europeu. Diz-se que o neoclassicismo alemão teve três grandes figuras: Winckelmann, Herder e Goethe; o primeiro seria o grande incentivador; o segundo o teórico; o terceiro, o realizador. Nos focaremos, aqui, sobretudo no primeiro.

Johann Joachim Winckelmann (1717-1768) era um helenista e, sobretudo, um entusiasta da cultura grega. Em 1755, ao publicar Reflexões sobre a arte antiga, Winckelmann propõe que um retorno aos gregos como modelo de arte, pois eles seriam "a fonte mais pura da arte"; essa concepção pode ser sintetizada em sua famosa frase: “o único caminho para nos tornarmos grandes e, se possível, inimitáveis, é a imitação dos antigos” (WINCKELMANN, 1993, p. 18). Com isso Winckelmann não propunha a cópia da obra do que ele chama antigos, ou seja, os gregos; ele pensava que o artista deveria aprender a apreender o mundo como os gregos. Para os gregos se tratava de dois tipos de beleza, a natural e a ideal; aquela resulta do belo corpo — Winckelmann pensa sobretudo nas artes plásticas —, esta só pode resultar da inteligência do artista; a lei suprema dos artistas gregos, “representar as pessoas com fidelidade e ao mesmo tempo mais belas” (WINCKELMANN, 1993, p. 45), diz justamente de como deve o artista proceder: conformar a beleza natural ao eidos, a idéia universal platônica, a beleza ideal. 

Desta concepção decorre a posição de Winckelmann segundo a qual o aprendiz de artista deve iniciar seus estudos através da imitação dos antigos. Tal conceituar marca a diferença entre o barroco e Winckelmann; para Bernini — o maior escultor barroco, chamado de "segundo Michelângelo" — o aprendizado deveria se iniciar através do estudo da natureza. Ora, Winckelmann considera que há dois modos de imitar a natureza: objeto único (o retrato) ou o todo unido (o belo universal); aprender arte através do estudos das obras dos antigos garantirá ao jovem artista a capacidade de pensar e conceber com firmeza, como faziam os antigos, resultando disso uma obra tal qual as gregas: inimitável, no limite entre o belo humano e o belo divino. Além disso, há outra marca distintiva dos gregos, o contorno; é ele que une as duas belezas, e por isso ele deve ser o objetivo principal dos artistas. Há também o fato de que a arte não deve ser vazia, isto é, exprimir nada; a arte deve pensar, e com isso Winckelmann quis dizer: exprimir pelo material o imaterial — a alegoria; com esse fito, o artista deve adquirir erudição seja pela poesia, seja pela mitologia. Através deste proceder, o pintor mostrará que sua pintura possui um legado não só estético, mas também da ordem do pensamento. O fim da arte, assim, deve ser não só agradar, mas instruir também; e isto, até hoje, quem fez melhor, para Winckelmann, foram os gregos. O que distingue as obras gregas é sua tranqüilidade, sua calma, seu equilíbrio, sua "nobre simplicidade e grandeza serena, tanto na atitude quanto na expressão" (WINCKELMANNN, 1993, p. 53), portanto, tanto no artista — beleza ideal, do eidos —, quanto na expressão — beleza natural, do belo corpo e belo modelo grego.
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            O programa estético de Winckelmann teve grande influência, sobretudo, nos literatos, malgrado sua especialização em artes plásticas. Goethe e Schiller, além Herder e Wieland, ao adotarem esse programa constituíram o chamado "Classicismo de Weimar". Paradoxalmente, a maior figura do neoclassicismo alemão, Goethe, será também a maior figura do romantismo, movimento de reação às idéias neoclássicas; Fausto é simultaneamente o grande ápice do neoclassicismo alemão, mas também uma obra romântica de primeira grandeza. A influência de Winckelmann foi grande, não tanto como teórico, mas como aquele que trouxe um ideal, o grego, à Alemanha; essa ligação entre os gregos e os alemães se fará presente por séculos na cultura alemã, de Goethe a Heidegger, de Herder à Hölderlin; para muitos dentre estes, os alemães são os gregos da era moderna: povo verdadeiramente criativo, originário.

            Se na Alemanha, embora o alarde, a produção cultural tenha sido pequena, no resto da Europa o neoclassicismo teve grande relevância. Propriamente dito, o movimento nasce em Roma, seio do barroco, com a descoberta das cidades soterradas de Herculano e Pompéia; com celeridade chega tanto à França como à Inglaterra. Aqui é notável a influência de Winckelmann. Na França o movimento atingirá seu auge com Jean-Jacques Louis David, pois este se torna o pintor oficial do então imperador Napoleão Bonaparte. É através do império e da perspectiva napoleônica de uma unidade européia que o neoclassicismo ofereceu a possibilidade de uma outra unidade européia, a cultural. Neste campo temos de citar as obras arquitetônicas do período, que abrangem tanto o Arco do Triunfo, em Paris, como o Portão de Brandenburgo em Berlim, ressoando até os dias de hoje nas mais diversas partes do globo. O século XIX viu a grande disputa entre o neoclassicismo eo romantismo, também na França, materializado na disputa entre dois grandes pintores: Delacroix, romântico, pintor da Liberdade guiando o povo, e Ingres, neoclássico, aprendiz de David e refinador do estilo deste, pintor da Odalisca. Podemos dizer, que a derrocada do neoclássico, no correr do século XIX, acompanhou a derrocada do império napoleônico e de seus ideais, aos quais havia se vinculado. A

            O neoclassicismo é, sobretudo, a arte do Iluminismo, portanto arte da razão, do calmo, do equilibrado; com já disse Nietzsche, do apolíneo. Por origem e por inspiração, o neoclássico liga-se tanto à arte grega quanto à arte romana, como, ainda, à arte renascentista. Pela sua proposta, o século XVIII foi o mais apropriado local ao neoclássico. Tanto é que o período 1750-1800 é chamado de "era da razão", isto é, do neoclássico, ao passo que o período 1800-1850 é chamado "era da sensibilidade", pelo seu caráter romântico. Há quem diga que o clássico e, por extensão, o neoclássico sejam a arte do mundo mediterrâneo pelo tipo de relação que se mantém com a natureza, uma relação clara, positiva, fecunda.

            Exposto o programa e a contextualização do neoclassicismo, só nos resta prosseguir com nossa proposta e analisarmos, nestas bases, o famoso quadro de David.

ANÁLISE DE OBRA

QUADRO: “As sabinas que interrompem o combate entre romanos e sabinos” (1794-99), Jean-Jacques Louis David

            






















            Este quadro de David possui todas as principais características elencadas pelo programa estético de Winckelmann, quais sejam:  a imitação dos antigos; a beleza natural e o eidos, beleza ideal; o contorno; a expressão imaterial por meio do material, a alegoria.

            Quando a imitação dos antigos, ela se dá já, pois o tema do quadro que, muito embora não grego, é romano. Winckelmann considerava os romanos como que gregos deturpados, mas não os desprezava de todo; além disso, o quadro é de David, e as recorrências a temas latinos é constante em sua obra. Na temática já se expressa a imitação dos antigos. Há outras referências aos gregos; por exemplo, ao fundo pode-se visualizar uma edificação sobre uma rocha elevada, referência velada à Acrópole; nesta mesma edificação, é possível distinguir um homem com a mão levantada, que vê toda a batalha, mas dela não comunga diretamente, talvez, uma referência a Zeus ou, antes, Júpiter, nome romano do líder dos deuses; outra referência velada se encontra entre a cabeça do soldado em primeiro plano e a cabeça do cavalo branco, pois aí podemos divisar a figura de uma mulher com um capacete tal qual o das representações da deusa Atenas ou, antes, Minerva, nome romano da deusa da sabedoria; por curiosidade, vale citar que esta dama segura uma longa vara na ponta da qual há um monte de gravetos de palha atados, o fasci, de onde descende o termo fascismo.

            Do belo corpo não há o que se dizer: todos os homens e mulheres são belíssimos; os soldados, com músculos definidos,  glúteos perfeitamente redondos; sua posição e o jogo de sombras salientam sua musculatura; a mulher em primeiro plano, com os seios torneados à mostra, demonstra o cuidado com o corpo; a outra mulher, que conduz o cavalo para fora do combate, completamente nua, também demonstra suas belas formas, enquanto que as demais sabinas não mostram senão beleza; até mesmo as crianças e os cavalos tem músculos definidos. Enfim, pode-se dizer que os modelos são belos corpos. Quanto ao eidos, a beleza ideal, não há como negar: o sabino em primeiro plano é quase que um David de Michelângelo mais forte, enquanto que a sabina, a Vênus vestida.  A “lei suprema dos artistas gregos” é aqui seguida à risca, pois a beleza dos corpos é completamente idealizada de acordo com o tipo físico propriamente grego, aspirado pelo homem grego ou pelas escolas de inspiração grega, como a renascentista; podemos comprovar isso no mesmo soldado romano em primeiro plano, pois entre sua testa e seu nariz há uma continuidade perfeita, e isto é uma das características do belo rosto grego. Embora na batalha, não se vislumbra uma única mancha de sangue e os homens lutam nus, o que demonstra a idealização da guerra, comparada as Olimpíadas gregas, onde os jovens disputavam nus.

            Se as duas belezas não se completassem, o quadro teria falhado; é o contorno que dá unidade as duas belezas, que as unes, as fecha em um todo harmônico. Ele não falta no quadro, pelo contrário, é desde-já visível. Não há dúvidas das posições, expressões ou definições das figuras: elas são claras; não há desfoque ou interpretações mais ousadas: a pintura é objetiva. É o contorno que garante essa clareza, esse compasso dos elementos do quadro. A clareza se dá também doutra forma tanto pela visão panorâmica da batalha quanto pelo fato de não haver mistérios, o quadro, a representação, se dá toda sem nada esconder, de uma vez só.

             O quadro retrata o episódio no qual os romanos, em seu processo de expansão imperialista, invadiram e raptaram as mulheres da tribo dos sabinos, que habitavam o sul da península Itálica. Assim, a temática demonstra a erudição de David. Portanto é um quadro não só belo, mas, também, em certa ,medida, pedagógico, pois esclarece um episódio da história do Ocidente.

Enfim, e de modo mais geral, caso notemos que em meio a batalha, não há nenhuma feição de medo, exceto a do cavalo branco – uma das poucas personagens que olham diretamente ao fruidor –, e nisto nos lembrarmos das palavras de Winckelmann, que o distintivo das obras gregas é sua serenidade, sua calma, seu equilíbrio, sua "nobre simplicidade e grandeza serena, tanto na atitude quanto na expressão" (WINCKELMANNN, 1993, p. 53), poderemos caracterizar esta obra como executora do programa neoclássico de Winckelmann. Com a conclusão de nossos objetivos, damos por concluído nosso trabalho.

Bibliografia

ARGAN, J. C.; Arte Moderna, SP: Companhia das Letras, 2002, 8ª reimpressão
STICKHARD, C.; Arte comentada da pré-história ao pós-moderno; RJ: Ediouro, 1999, 4ª ed.
WINCKELMANN, J. J.;  Reflexões sobre a arte antiga; Porto Alegre-RG: Movimento, 1993, 2ª ed.

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