O livro Um departamento francês de ultramar, de Paulo Arantes, elabora uma análise da formação da filosofia brasileira, especialmente um de seus capítulos chave, o caso uspiano. Apesar de já contar quase trinta anos, o livro não enevelheceu, talvez pelo fato de ser uma retrospectiva crítica deste período, sobretudo a década de 60. Como se sabe, uma missão de intelectuais, dentre os quais muitos franceses, vieram ao Brasil na quase centenária década de 30, a fim de dar as linhas mestras da formação da Universidade de São Paulo, notadamente a faculdade de filosofia, designada para ser o acabamento do conjunto da universidade. No caso específico da filosofia, estes intelectuais trouxeram na bagagem certo ideário, devedor do espiritualismo francês, sobre como ler e fazer filosofia, o chamado estruturalismo francês. Não o estruturalismo de Foucault, Levi-Strauss, Lacan, Althusser e Barthes, mas o de Guéroult e Goldschmidt, "este obscuro professor de província". De acordo com estes, não se deve interrogar o texto filosófico naquilo que ele pode ter de verdade, mas sim buscar sua estrutura interna, sua arquitetônica, a ordem dos conceitos. Assim, deve-se ler Descartes segundo a ordem das razões, eternizando seu raciocínio, fora de qualquer tempo histórico, atado que devemos estar ao tempo lógico das construções. Esta metodologia de leitura, uma verdadeira técnica do métier, fez escola no país, e é sobre ela que se foca Arantes, juntamente com as tentativas de fuga que ela provocou, por exemplo, com Bento Prado, Porchat Gianotti e Ruy Fausto, expoentes da filosofia uspiana, que, cada qual a seu modo, tentaram escapar das grades de ferro deste método. O livro focaliza na própria chegada dos intelectuais franceses e na implantação desta metodologia na juventude paulistana adepta da especulação filosófica, e, em como estes expoentes da filosofia paulista tentaram escapar dos rígidos limites que ora se insinuavam: Bento Prado, através da filosofia da literatura, Porchat por meio do ceticismo redivivo, Ruy Fausto e Gianotti se valendo de uma leitura renovada do marxismo, buscando dotar-lhe de estofo filosófico. Como observa Ivan Domingues, juntamente com Cruz Costa, Um departamento francês de Ultramar constitui leitura obrigatória para os filosofantes brasileiros, visto que contribui na contextualização da filosofia brasileira, e explica um dos motivos de não termos uma tradição filosófica brasileira: a ligação com o comentário, e sua institucionalização como forma privilegiada de filosofia, ou, como querem alguns, história da filosofia, visto que a autêntica filosofia trabalha preferencialmente com temas, antes de se ater a mera glosa de autores, tal qual muito bem observou o saudoso professor Antônio Trajano. Poderíamos acrescentar à lista de livros obrigatórios o livro do professor Ubirajara Rancan de Azevedo Marques, A escola francesa de historiografia da filosofia, que vai dar mais elementos para pensarmos o fazer filosófico brasileiro, seus limites, suas benesses e seu escopo. Enfim, somente conhecendo nossa própria formação histórica poderemos, um dia, ensejar uma tradição filosófica brasileira, nos colocando no mesmo nível dos países da metrópole exportadora de filosofia, de onde nos nutrimos e retiramos as bases de nossas letras e ciências.
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