Apontamentos para a genealogia da psiquiatria
Sumário
1. Introdução
2. Primeiro capítulo:
Pequena notação de método: epistemologia política e genealogia
2. 1. Fontes
epistemológicas de Michel Foucault
2.2.
Ontologia do saber
Conceito de saber
A ordem do discurso
O regime de verdade
2.3. O método: a genealogia
3. Segundo capítulo: A
situação desta pesquisa: Observações metodológicas e analíticas
4. Terceiro capítulo: Para
compreender a psiquiatria
4.1. A
psiquiatria (para os psiquiatras)
Uma
medicina mental
A terapêutica
Psicofarmacologia
Os tratamentos de choque
As psicoterapias
4.2. O papel da Psicopatologia
Estudo de caso:
Psicopatologia do juízo
Conclusões
4.3.
A história da psiquiatria (para os psiquiatras)
5. Quarto capítulo: Fundamentos da crítica de Foucault
6. Quinto capítulo: A formação do mundo psiquiátrico
Proveniência do internamento
Emergência do internamento
Os desvios
religiosos e a medicina
7. Sexto capítulo: Medicina ou psiquiatria?
Cullen inventa a neurose e a
nosologia
7.1. Rumo à biopolítica: as três medicinas sociais
da Ilustração e a tecnologia do hospital
O
hospital
7.2. Pinel,
francês
8. Conclusões
Bibliografia
1.
Introdução
O século XIX
viu raiar uma série de disciplinas que se pretendiam científicas, dentre os
quais, pelas analogias possíveis e ligações diretas, salientamos duas: a
psiquiatria — medicina mental — e a psicanálise. Além disso, a emergência da
figura do doente mental, noção nodal às duas disciplinas, e suas conseqüências
sociais, institucionais e epistêmicas somente engrossam nossas inquietações.
Afinal de contas, por quais motivos o século de ouro da burguesia, o século do
triunfo do capitalismo de mercado, do estabelecimento desta noção confusa
embora sensível de modernidade; enfim, por que justamente o XIX inventou
esta figura do louco enquanto doente mental? Por que ali as disciplinas médicas
ou pretensamente médicas das afecções mentais surgiram, com toda sua
parafernália asilar, suas terapêuticas de choque e psicoterapias?
O
objetivo deste curto ensaio é analisar a proveniência e a emergência de uma
destas disciplinas, esta pérola ocidental cujo nome é psiquiatria, a partir dos estudos de
Michel Foucault sobre a temática. Em fato, o pensador francês elaborou uma
maneira peculiar de abordar a questão, apropriando-se de todo um instrumental
teórico nietzscheano para mostrar, como, no fim das contas, estas disciplinas —
medicina, psiquiatria, psicanálise — responderam a interesses bastante
concretos da sociedade capitalista industrial urbana e burguesa em formação.
Embora
nossa ênfase nas elaborações foucaultianas, nossa análise não incorre no erro
de esquecer o que o permite. Foucault, em fato, é incluído por muitos autores
no rol dos antipisiquiatras (GRANDINO, NOGUEIRA, 1985, p. 33-37), quer
dizer, aqueles autores que (...) “questionam a psiquiatria como instituição,
assim como o conceito de doença mental e os tratamentos psiquiátricos”
(GRANDINO, NOGUEIRA, 1985, p. 34). Dentre Szasz, Basaglia, Laing, Cooper e
Castel, a obra de Foucault merece destaque, pela sua inovação e consistência
teórica além de sua amplitude temática. Não lançamos mão, contudo, destas
obras. Malgrados as semelhanças aparentes, diferem muito entre si.
Ao
mesmo tempo, — para sermos fiéis ao método genealógico de Foucault — buscamos
as fontes diretas. Afinal, afora as críticas, como os próprios psiquiatras
dizem de sua ciência? E o que Freud, este divisor de águas, o que o pai
da psicanálise diz de seu invento? Navegando neste mar de conceitos e práticas
psquiátricas, médicas ou pseudomédicas; nesta casuística assombrosa — onde se
encontram o imbecil e o uranista, a histérica e o esquizofrênico —;
nesses métodos terapêuticos, como a estrapada ou a traumatoterapia;
nestas fundamentações psicopatológicas, onde o delírio distingue-se da
alucinação e a neurastenia da hebêfrenia; nas distintas tipologias,
levantamentos, anamneses e entrevistas morosas, com seus inúmeros formulários
destinados a estabelecer quem é o louco e qual sua loucura. Enfim,
buscando entender o cerne da psiquiatria singramos por todo um período até
pouco bem obscuro e tivemos contato com textos que, ditos médicos, assombram:
que cura podem propor, quais doenças e quais curas podem identificar? E, o mais
importante, quais práticas eles fundam, quais relações estabelecem — a quais
interesses respondem?
Insistimos na
questão. Ela é, diz Foucault, importante: somente perguntando-nos a origem do
presente poderemos retraçar os delicados meandros da histórias, fazendo vir á
tona as lutas, o interesses e os interessados, com suas táticas, recuos,
avanços e investidas. Foucault, com sua concepção belicista e radicalmente
vertiginosa da história (BRUNI, 1989) elabora sua analítica das relações entre
poder e saber situando a psiquiatria e a psicanálise no lugar que lhes é de
direito: o seu, o de seu aparecimento. Assim, vinca-se o passado e o presente,
dando a luz ao processo intenso e multifacetário de origem da psiquiatria.
Nessa confusão, onde ciência e poder se complementam, se demandam e se necessitam,
qual o preciso lugar da psiquiatria: onde devemos situá-la? como devemos
entendê-la? E, fundamentalmente, o que ela criou, de onde ela criou e de onde
ela veio? Enfim, trata-se, para nós, neste pequeno trabalho, estabelecer como
foi possível a psiquiatria, o que no impele a desvelar qual correlação de
forças a engendrou e a qual correlação ela veio responder.
No primeiro capítulo, empreendemos uma síntese do
método foucaultiano, distinguindo genealogia e arqueologia e algumas heranças
nietzscheanas de Foucault.; Também enveredamos no rumo de dar certa
sistematicidade às produções metodológicas de Foucault, objetivando aclarar
suas produções.
No segundo capítulo e breve
capítulo, situamos esta pesquisa face à nossa démarche, apontando
limites, futuros desdobramentos e caminhos passados e vindouros.
No terceiro, avaliamos criticamente
a psiquiatria contemporânea a partir de alguns textos médicos, dando especial
ênfase àquilo que se tornou a marca mais conhecida da psiquiatria, o tratamento
de choque; mas também analisamos a psicopatologia, a partir de um texto talvez
desatualizado, mas que situa esta disciplina na época em que Foucault escreveu
e pensou a medicina mental. Também elaboramos um inventario crítico da maneira
como os psiquiatras contam a história de sua própria disciplina, contrastando
com as posições epistemológicas de Foucault.
No quarto capítulo, traçamos breve
comentário acerca de um estudo epistemológico de Foucault sobre a psicologia,
no caso, o primeiro livro publicado de Foucault, depois revisto e alterado.
No quinto e maior capítulo, entramos
propriamente falando em nosso objeto, analisando a formação da psiquiatria, os
sujeitos envolvidos e a parafernália medical implicada. Para tanto, nos
baseamos tanto em textos de Foucault, quanto em textos de psiquiatras tratando
de sua própria disciplinas..
No sexto capítulo, recapitulamos
alguns elementos, mostrando a constituição da psiquiatria contemporânea, a
partir de autores como Cullen e Pinel, elaborando também breve conclusão.
2. Pequena notação de
método: epistemologia política e genealogia
2.1. Fontes
epistemológicas de Michel Foucault
Chama-se
epistemologia àquela disciplina filosófica que estuda e reflete acerca da
natureza, forma, características, limites e obstáculos do conhecimento, bem
como sobre a verdade; dado isto, a epistemologia pode ser tomada em duplo
sentido: teoria do conhecimento ou teoria da ciência (PENNA, 2000). Neste
último sentido, como é possível compreender o que é a ciência em sua singularidade
senão por meio de sua história e de sua sociologia?
Estamos a dizer, portanto, das
relações entre epistemologia e história das ciências, velha polêmica teórica. A
tradição epistemológica que baliza Foucault, que leva de Bachelard a
Canguilhem, passando por outros autores franceses (MACHADO, 1988), reflete
acerca disto em termos da contribuição de uma para outra e de outra para uma.
Detalhemos. Dado que muitos
historiadores da ciência fizeram seus trabalhos sem referir-se a qualquer
epistemologia, eles pensam que esta disciplina mais se aproveita do que provem
os trabalhos historiográficos. Canguilhem discorda: a epistemologia mais
contribui do que recebe. Uma história das ciências que não se vale da
epistemologia se reduz a mostrar as relações lógico-cronológicas de enunciados,
de problemas e de soluções; nada distinguiria, a partir deste ponto de vista, a
história da ciência da história de qualquer outro campo da cultura e o valor de
um historiador ou de seu trabalho historiográfico seria determinado pelo mero
acúmulo de saber, por sua erudição. A história de uma ciência seria o
inventário de tudo que foi produzido sobre um objeto, quer dizer, o historiador
deveria seguir uma linha móvel de progresso que deságua no objeto e na ciência
atual.
Contrário a esta posição,
Canguilhem cita Suzanne Bachelard: “Que a atividade do historiador seja
retrospectiva é um facto que lhe impõem limites, mas que lhe dá poderes. O
historiador constrói seu objecto num espaço-tempo ideal. Compete-lhe evitar que
este espaço tempo seja imaginário” (CANGUILHEM, 1977, p. 14). Portanto, o
passado não jaz dado: o historiador, na minúcia de seu saber e em seu bailar
teórico, cria a memória, altera o passado, torna ele verde ou cinza. Canguilhem
está a se opor à concepção metódico-positivista continuísta de história,
facilmente perceptível na máxima de Leopold von Ranke, segundo a qual o
historiador deve (e pode) apresentar as coisas tal qual elas realmente se
passaram (CANGUILHEM, 1977, p. 12).
Exemplificando, Canguilhem cita o
caso da botânica. No século XVIII, os botânicos baseavam-se na fisiologia
animal, dividindo esta área em fisiológos-químicos e fisiólogos-físicos. A
botânica atual, ao contrário, baseia-se na bio-química e na biofísica. Quer
dizer há uma descontinuidade radical entre uma e outra; há, em termos
bachelardianos, um corte epistemológico: duas racionalidades diferentes,
que balizam ciências diferentes, e cujos objetos são diferentes.
No jogo desta relação, três
personagens e suas diferentes relações com o saber: o cientista, aquele
que efetivamente gera ciência; o epistemólogo, o que constrói um
meta-saber, isto é, saber crítico do próprio saber; e o historiador das
ciências, que faz construir o passado, nos termos já por nós dito. Cabe ao
cientista conhecer o passado das investigações da mesma ordem que a sua, com um
preciso fim heurístico, dado ser o objetivo do cientista o progresso de sua
teoria; apesar disto, o próprio Canguilhem reconhece como são relativamente
raros os cientistas com conhecimento do passado de suas disciplinas, o que
demonstra como a história das ciências não é originária, mas complementar à
prática científica propriamente dita. Já quanto ao epistemólogo, seu problema é
abstrair o processo por detrás dos enunciados científicos que se pretendem
verdadeiros, visando encontrar nos atos do saber os meios que permitiram a este
maior eficácia; para tanto, o epistemológo deve instalar-se no interior dos
enunciados científicos, imitando a prática do cientista, quer dizer, sabendo
como cientista pode produzir o que produziu e porque o fez. Fica explícito,
assim, que como se trata da análise de um processo, a história da ciências é
central, fundante ao ofício do epistemólogo.
Vemos, portanto, que nesta
tradição filosófica — a mesma de Foucault — a história das ciências ocupa papel
fundamental em relação à epistemologia. O historiador das ciências trabalha com
o passado de uma determinada produção cultural cuja especificidade é buscar a
verdade. Passado: designação dos antecedentes das atuais condições de
exercício. Com isso, o historiador das ciências corre um risco, o de aplicar os
atuais modelos científicos ao passado; quer dizer, perguntar o passado porque
lhe falta a maturidade lógica alcançada pela ciência atual. Compete ao
epistemólogo impedir que o historiador das ciências proceda desta forma,
deixando claro que o que baliza a história da ciência é a descontinuidade; quer
dizer, cabe ao epistemólogo reativar o sentido da história de uma ciência:
ruptura epistemológicas entre normas científicas distintas. A partir disto, o
historiador das ciências, se valendo da epistemologia, não pode confundir “a
persistência dos termos com a identidade dos conceitos, a invocação dos fatos
de observação análoga com parentesco de método e de problematização” (CANGUILHEM,
1977, p. 20).
Portanto, Canguilhem, orientador
e fonte de Foucault, elabora, a partir de Bachelard, uma história
epistemológica, onde epistemologia alimenta a história e a história alimenta a
epistemologia, em análises balizadas nos conceitos de ruptura, corte
epistemológico, descontinuidade. Seu método se chama, então, da recorrência:
“jurisdição crítica sobre a anterioridade de um presente científico, que está
isento, precisamente porque científico, de ser ultrapassado ou retificado”
(CANGUILHEM, 1977, p. 20).
*
São estas as maiores influências
histórico-epistemológicas de Foucault. Já veremos como elas se refletem nas
análises do filósofo francês.
Compreenderemos como
epistemologia política toda aquela análise que situa esses ditos elementos
acerca do conhecimento em face da política, das relações de poder entre os
homens, das condições sociais de produção, circulação e armazenamento do saber.
Dado nosso recorte, e mais especificamente, por epistemologia política
entendemos as elaborações realizadas por Foucault, a partir de uma
interpretação tanto da filosofia de Nietzsche quanto da epistemologia francesa,
que redundaram em uma teoria política do saber e em um método de análise que
permite tomá-lo como forma de poder. Em
suma, o objetivo de tal teorização é mostrar que “por trás de todo saber, de
todo conhecimento, o que está em jogo é uma luta de poder. O poder político não
está ausente do saber, ele é tramado com o saber” (FOUCAULT, 2005b, p. 51).
Trata-se, assim, da constituição tanto de uma ontologia do saber quanto de um
método analítico — a genealogia — e de um modelo teórico do poder. Analisemos
cada uma destes elementos componentes.
2.2.
Ontologia do saber
Por
ontologia do saber compreenderemos: um conceito de saber; conceito de ordem do
discurso (por conseguinte, ordem do saber); e, conceito de regime de verdade.
Que desde já fique claro que conhecimento e saber são, para nós, sinônimos
neste texto.
Embora
esta distinção um tanto quanto rígida, estes três conceitos estão fortemente
imbricados: um supõe e baseia o outro, etc. Quer dizer, a separação que ora
fazemos tem como base tanto a necessidade de explicitar com máximo de rigor o
que caracteriza um e outro conceito, e, também, o fato de suas fontes serem
diferentes. Não há nenhum texto onde Foucault una esses conceitos, dando-lhes a
necessária correlação com fins analíticos. É exatamente isto que pretendemos
fazer neste tópico.
Conceito de saber
Para Aristóteles o
conhecimento é um impulso natural presente em todos os humanos. De onde que, se
conhecer é natural, por extensão também é natural o conhecimento, os objetos e
os sujeitos. Para estes, não há história, senão aquela que leva do mais simples
ao mais complexo, do menos lógico ao mais logicamente refinado. Foucault discorda.
Na série
de conferências editadas sob o nome A verdade e as formas jurídicas, M.
Foucault elabora uma teoria política do saber ou, o que ele chamou então de política
da verdade. Trata-se, para ele, de mostrar como o saber não é natural, como
os objetos, os campos de saber, os sujeitos de conhecimento e a verdade não
estão dados, mas são produzidos pelas práticas sociais, notadamente as práticas
jurídicas.
É a
partir da filosofia de Nietzsche que o epistemólogo de Poitiers buscará
elaborar tal teoria. Nietzsche, diz ele, “faz a análise histórica da própria
formação do sujeito, a análise histórica do nascimento de um certo tipo de
saber, sem nunca admitir a preexistência de um sujeito de conhecimento”
(FOUCAULT, 2005b, p. 13). De fato, para Nietzsche o conhecimento é uma
invenção, Erfindung, em alemão. Erfindung se contrapõe a Ursprung,
origem ou fundamento originário, termo este que terá bastante importância
também no método de Foucault.
Toda Erfindung
é uma ruptura cuja origem é baixa; quem faz solenes as origens são os
historiadores. Também é assim com o conhecimento. Se ele é uma invenção, ele
não é inerente ao homem: não se trata de um instinto ou de um desejo natural.
Para Nietzsche, diz Foucault, “o conhecimento é simplesmente o resultado do jogo,
do afrontamento, da junção, da luta, do compromisso entre os instintos”
(FOUCAULT, 2005b, p. 16). O conhecimento é um efeito de superfície da batalha
entre os instintos: ele é contra-instintivo, é contra-natural. Entre as coisas
e o conhecimento não há ligação necessária, assim como também não há nada que
ligue a priori natureza humana e conhecimento.
“É contra um mundo sem ordem, sem encadeamento, sem
formas, sem beleza, sem sabedoria, sem harmonia, sem lei, que o conhecimento
tem de lutar. É com ele que o conhecimento se relaciona. Não há nada no
conhecimento que o habilite, por um direito qualquer, a conhecer esse mundo.
Não é natural à natureza ser conhecida” (FOUCAULT, 2005b, p. 18)
A
relação entre conhecimento e natureza é “uma relação de luta, dominação,
subserviência, de compensação (...) de poder e de força, de violação (...) e
não percepção, reconhecimento, identificação delas ou com elas” (FOUCAULT,
2005b, p. 18).
Foucault,
asseverando Nietzsche, rompe com toda a tradição filosófica ocidental para a
qual haveria uma unidade, uma continuidade que levaria do conhecimento às
coisas e vice-versa; mas, se entre coisas e conhecimento há uma batalha, vemos
a dita unidade esfarelar-se no ar. Além disso, trata-se de dissolver outra
unidade, a do sujeito: o conhecimento e o instinto não são a marca da soberania
e da força unitária do sujeito; eles estão em guerra, é a violência da batalha
que caracteriza a relação de um com outro, e não a de uma calmaria do Mesmo que
se reencontra consigo.
Para explicar a origem
do conhecimento Nietzsche retoma Spinoza para marcar sua posição. Este último
pensava que para compreender (inteliggere) as coisas, é necessário que
se evite rir (ridere), deplorar (lugere) e odiá-las (detestari).
Nietzsche diz que não: o conhecimento seria resultado da guerra entre os
instintos, como que resultado parcial da luta entre eles, momento de trégua,
estabilização temporária da luta entre as três paixões. Compreender o
conhecimento implica parar de tê-lo como beatificado, puro; é por meio da
compreensão do jogo de interesses, das relações de força, de poder, de
dominação que podemos compreender o conhecimento. O conhecimento é fruto da
luta de três más relações que não respeitam, não aproximam, mas riem do objeto;
que não o acolhem, mas deploram, lamentam-no; que não o amam, mas o odeiam,
buscam destruí-lo.
O fato de advir da luta explica
algumas características do conhecimento. Primeiro, o fato de ele ser
generalizante: como ele é violência, ele esquematiza, solapa o que é diferença
nas coisas em benefício de si mesmo. Segundo, o fato de ele, paradoxalmente,
ser particular: como o conhecimento é maldade, ele se desenvolve como duelo,
relação de força aplicada sobre cada coisa particularmente. Terceiro, o fato do
conhecimento ser perspectivo: por perspectivo Foucault entende o fato do
conhecimento não possuir essência, unidade ou condições universais; como a luta
entre os três instintos não terminou, mas somente estabilizou-se
temporariamente, resultando no conhecimento, este é, portanto, rearranjo ou
trégua temporária advindo de relações precárias; ou seja, “o conhecimento é
sempre uma relação estratégica em que o homem se encontra situado (...) Pode-se
falar do caráter perspectivo do conhecimento porque há batalha e porque o conhecimento é efeito dessa
batalha” (FOUCAULT, 2005b, p. 25). Por fim, e como decorrência desta última
característica do conhecimento, o fato do interesse; bem sabemos que há toda
uma tradição filosófica que compreende o conhecimento, mais precisamente, o conhecimento
científico, como desinteressado, como a relação de candura que faz a verdade
brilhar em sua pureza criadora. Ora, se, para nós, o conhecimento é fruto de
relações estranhas, externas a si, ele é sempre interessado, pois fruto da luta
de outrem; conhecimento não exclui desejo: é fruto destes; o conhecimento não
desata as maldades do poder, mas muito ao contrário, não só as aplica, como ele
mesmo é, uma relação de poder contra as coisas; o conhecimento não é
independente, autônomo ou livre, mas dependente, subserviente e
interessado.
*
Se
quisermos aclarar os motivos que levam Foucault a tomar todo saber como poder
devemos ir mais longe e buscar as bases filosóficas do pensamento deste, ou
seja, recuperar Nietzsche. Trata-se de uma hipótese o que estamos a dizer.
Na Genealogia
da moral, Nietzsche distingue entre procedimento e sentido. A
propósito do castigo, diz ele que:
“Há que distinguir nele dois aspectos: o que nele é
relativamente duradouro, o costume, o ato, o ‘drama’, uma certa seqüência
rigorosa de procedimentos e o que é fluido, o sentido, o fim, a
expectativa ligada às realização desses procedimentos” (NIETZSCHE, 2007, p. 68,
grifos nossos)
Polemizando
com os psicólogos ingleses, Nietzsche busca mostrar como há uma diferença entre
a coisa material, queremos dizer, o procedimento, e o campo de
significações na qual as inserimos, o sentido. Por exemplo, o castigo
não foi feito para dar exemplo, ao contrário do que diz; é impossível dizer,
precisamente, porque ele surgiu já que há uma série de sentidos nos quais ele
foi inserido; o castigo foi, na verdade, “alternadamente submetido às
necessidades de se vingar, de excluir o agressor, de libertar a vítima, de
aterrorizar os outros” (FOUCAULT, 2007c, p. 22). O mesmo procedimento, castigar,
teve, portanto, pelo uma dezena de sentidos, que Nietzsche cita neste mesmo 13º
aforismo.
Analogamente,
o saber é o sentido que se dá às coisas do mundo. Só que esta relação que
designa, que interpreta, não é solta; dizer o sentido de algo significa
conformá-lo: se uma árvore é uma estrutura orgânica ou um a encarnação de um
deus, isto implica em mudança nas ações que se desenvolverão em relação a
ela. Nietzsche bem sabia disso, tanto é
que ele define como regra de método que “o conceito denotador de preeminência
política sempre resulta em um conceito de preeminência espiritual” (NIETZSCHE,
2007, p. 23); os que dominam politicamente dão o sentido as coisas.
Disto
Foucault extrai — é precisamente nossa hipótese — a base de sua epistemologia
política. O poder gera saber, ou seja, a dominação política gera sentido sobre
as coisas do mundo, sobre os procedimentos, visando se manter e fortalecer-se.
O saber gera poder, isto é, dizer o que algo é adequar-lhe a determinado estado
de coisas político, seja atual seja um projeto ou proposta.
A ordem do discurso
Em suma,
saber é poder: fruto de relações de luta, gerador de relações de poder,
instrumento de guerra, meio de dominação, etc.
Deve-se
notar, no entanto, que até agora consideramos o saber em si, se com isto
entendermos que não o situamos em suas condições de circulação e de produção,
mas somente naquilo que o caracteriza precisamente enquanto saber. É o que
faremos agora.
O ano de 1970 marca uma importante
inflexão teórica de Michel Foucault. É neste ano que, a propósito de sua aula
inaugural no Collège de France, ele tomará o discurso — que, lembremos,
é a parte material do saber, a escrita ou a fala — nas precisas condições que
acabamos de dizer. Façamos uma breve exposição da metodologia de M. Foucault
para que possamos compreender melhor o que há de novo nesta aula.
Até então, seu método, a arqueologia,
caracterizava-se pela análise do campo discursivo, isolado em si mesmo, ou,
antes, da análise da fronteira entre o discursivo e o não discursivo. Assim, o filósofo de Poitiers tomava como
possível um recorte analítico que se debruçasse sobre o discurso sem levar em
conta outros aspectos, como aqueles sociais, políticos, econômicos, etc, mas,
também, sem achatar o discurso sobre si mesmo: trata-se de analisar o limiar
entre discursivo e o não-discursivo. Deleuze: “Ele criou uma nova dimensão, a
que poderíamos dar o nome de dimensão diagonal” (apud DOSSE, 1994, p. 274)
Aproximando-se
dos historiadores da Terceira Geração dos Annales,
a chamada Nouvelle histoire (cf.
BURKE, 1997, p. 117), Foucault punha em prática uma história estrutural, de long durée, que busca a sistematicidade
das formações discursivas, em detrimentos de análises psicologizantes ou
individualizantes, que fariam uma história das obras, dos autores.
Problematizando o naturalizado, Foucault se propôs a fazer a história das
coisas inusitadas: a loucura, o olhar médico, o campo do saber imediatamente
antecedente ao surgimento das humanidades, etc.
O documento é, então, o centro da
problemática teórico-historiográfica foucaultiana, e não o devir, e, apesar de
tudo, nem mesmo a questão da estrutura propriamente falando, apesar da
aproximação Foucault-estruturalismo levado a cabo pela mídia do establishment intelectual francês; trata-se,
pois, de saber como levar a cabo a
“constituição de corpus coerentes e homogêneos de
documentos (...); o estabelecimento de um princípio de escolha (...); a
definição do nível de análise e dos elementos que lhe são pertinentes(...); a
delimitação dos conjuntos e subconjuntos que articulam o material estudado
(...); a determinação das relações que permitem caracterizar um conjunto”
(FOUCAULT, 2007a, p. 12).
O método de Foucault então posto em
prática, a arqueologia, se baliza nas supracitadas posições
histórico-filosóficas; podemos dizer, grosso modo, que trata-se de um método
estrutural de história do pensamento. Cada discurso é constituído por elementos
chamados enunciados – signos
relacionados a um conjunto de objetos, que prescrevem determinada posição aos
sujeitos e que podem ser repetidos em sua materialidade. A arqueologia busca
desvelar os enunciados considerados a partir de seus sistemas de formação, que definem um discurso. Em outros termos,
trata-se de analisar a lei de formação
de enunciados, buscando as formações
discursivas que constituem objetos, sujeitos, temas, etc., que permitiram a
articulação de diversos enunciados em um discurso ou conjunto de discursos.
Para o arqueólogo, não existe
necessidade no mundo, ou seja, tudo deve ser problematizado já que poderia ser
de outra forma. A história, ou elementos seus, tomados como continuidade ou evolução é o principal inimigo do arqueólogo e é justamente este
ponto que mais separa Foucault dos historiadores da Terceira Geração dos Annales; pelo continuísmo que era
próprio a estes historiadores, Foucault queria destruí-los, queria destruir a
forma hegemônica como então se praticava o ofício do historiador na França (cf.
DOSSE, 1994, p. 267-292).
Existem várias formas de
continuidade. Além daquelas propriamente históricas, como compreender a
história como continuidade, evolução, progresso, etc., existem outras não
imediatamente visíveis: o livro, o autor, a obra, etc.; são formas de continuidade, pois supõe unidades naturais, ou seja, desconsideram o próprio devir, em se focando na
permanência do Mesmo, do sujeito tomado como dado. Afora o fato de serem
conceitos operacionais continuístas, Foucault os considera, além disso,
unidades fracas para fundarem uma arqueologia. É no enunciado, tomado ele mesmo
como acontecimento, que uma
empreitada teórica de tipo arqueológica deve fundar-se. O enunciado não pode
ser descrito enquanto as formas de continuidade continuarem a ser tomadas como
originárias: a linguagem, os objetos, os temas, o estilo. A
unidade do discurso, a sistematicidade de diferentes enunciados, somente pode
ser buscada no enunciado considerado enquanto acontecimento – portanto, dotado
de um espaço e de uma geografia que lhe singularizam na história. A unidade do
discurso deve ser buscada nas formações
discursivas: as regularidades definíveis, a partir da correlação de
diferentes objetos e conceitos, em um mesmo funcionamento e ao mesmo regime de
transformações; e nas regras de formação:
condições às quais se submetem os elementos de uma formação discursiva, ou
seja, as condições de existência, coexistência, manutenção, transformação e
desaparecimento de uma formação discursiva. São estes os dois focos que
imprimem a unidade ao discurso.
*
É graças
a esse enfoque no enunciado tomado enquanto acontecimento que Foucault deve
isolar o saber do resto da sociedade, sem, contudo, considerá-lo de forma
ensimesmada, tal qual acima expusemos.
O que há de novidade na
aula inaugural, A ordem do discurso, são duas hipóteses. A primeira consta
logo nas primeiras páginas:
(...) suponho que em todas as sociedades a produção
do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e
redistribuída por certo número de procedimentos que têm por função conjurar
seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua
pesada e terrível materialidade” (FOUCAULT, 2005 p. 9).
A
segunda, um pouco mais adiante, considera que o discurso não é neutro, não é
desinteressado, mas está vinculado ao poder e ao desejo. O discurso não apenas
manifesta ou esconde desejo: é objeto de desejo; não apenas descreve ou traduz
as lutas e as dominações: é objeto de luta, luta-se para dominar o discurso.
*
Da
primeira hipótese, uma série de conclusões. Há uma ordem do discurso, um regime
discursivo que seleciona “quais discursos”: controle da produção, circulação e
aplicação do discurso. No campo discursivo há, portanto, procedimentos de
controle, os quais Foucault divide em internos e externos. Como estes últimos
darão ensejo para a teorização de um regime de verdade, abordemos, em primeiro
lugar, os procedimentos internos de controle.
Os
procedimentos internos de controle são exercidos pelos discursos sobre si
mesmos, funcionando, marcadamente, “a titulo de princípios de classificação, de
ordenação, de distribuição como se se tratasse, desta vez, de submeter outra
dimensão do discurso: a do acontecimento e do acaso” (FOUCAULT, 2005a, p. 21).
Foucault passa, então, a considerar diversos procedimentos, os quais citaremos
de maneira quase sumária, dividindo-os, contudo, em princípios de coerção
e de rarefação.
Procedimentos de coerção:
são os procedimentos de controle da aparição do discurso, quer dizer, que fixam
regras de surgimento e significação. O comentário: desnível entre os
discursos que são proferidos e desaparecem e aqueles que são permanentes, quer
dizer, que duram além de sua enunciação; estes dão ensejo a textos segundos,
discursos que se acumulam sobre outros discursos e cuja novidade “não está no
que é dito, mas no acontecimento de sua volta” (FOUCAULT, 2005a, p. 26),
portanto, limitar o acontecimento aleatório do discurso por meio da repetição
do mesmo. O autor: este entendido como principio de coerência,
significação e agrupamento do discurso; ainda que móvel ao longo da história,
nas sociedades contemporâneas o autor cumpre a precisa função de reduzir a
multiplicidade do discurso á forma identitária do eu. A disciplina:
trata-se de um corpo de proposições, regras, técnicas e métodos constitutivos
de uma sistematicidade anônima; esta relação de sistema permite que se agrupe
tudo que pode ser dito de verdadeiro ou aceito
sobre determinada coisa; a disciplina determina uma série de princípios
restritivos (objetos, técnicas, conceitos, instrumentos) que determinarão a
pertinência ou não de uma proposição a si; “a disciplina é um princípio de
controle da produção do discurso. Ela lhe fixa os limites pelo jogo de uma
identidade que tem a forma de uma reatualização permanente das regras”
(FOUCAULT, 2005a p. 36).
Procedimentos de rarefação dos sujeitos: são aqueles que
controlam não tanto as condições de aparecimento do discurso, mas, sim, de sua
circulação, de funcionamento dos discursos. Ritual: qualificação dos
sujeitos que falam, quer dizer, prescrição de posições, gestos, comportamentos
e fixação dos efeitos que cada discurso terá. Sociedades do discurso:
“cuja função é conservar ou produzir discursos, mas para fazê-los circular em
espaço fechado, distribuí-los somente segundo regras restritas, sem que seus
detentores sejam despossuídos por essa distribuição” (FOUCAULT, p. 39, 2005a). Rituais
da palavra: trata-se de sociedades do discurso difusas, mais amplas, cuja
função é também produzir discursos, mas de forma a não permitir a sua
permutabilidade: são funções, como o escritor e o sistema que o apóia, ou
formas prescritas ao discurso, como a do segredo técnico. Grupos
doutrinários: se eles assemelham-se à disciplina pelas condições que exige
(verdades comuns e regras de conformidade com os discursos válidos), a doutrina
questiona o sujeito que fala a partir do enunciado, excluindo todo conteúdo
inassimilável como heresia, justificando-se a partir da ortodoxia; o sujeito
que fala, carrega o sinal de uma pertença prévia, que a doutrina questiona
também. Apropriações sociais: trata-se da “maneira política de manter ou
de modificar a apropriação dos discursos com os saberes e os poderes que eles
trazem consigo” (FOUCAULT, 2005a, p. 44).
O regime de verdade
A primeira hipótese da Ordem do discurso é a de que existem
procedimentos externos de controle do discurso, os procedimentos de exclusão.
Aquele que Foucault aborda mais detalhadamente chama-se vontade de verdade,
mas há outros, como a interdição e a separação/rejeição. Interdição:
restrição de enunciação, quer dizer, “não se tem o direito de dizer tudo, que
não se pode falar de tudo, em qualquer circunstância, que qualquer um, enfim,
não pode falar de qualquer coisa” (FOUCAULT, 2005b, p. 9); três tipos
principais de interdição: tabu do objeto, ritual da circunstância e privilégio
ou exclusividade do sujeito que fala. Separação/rejeição: Foucault dá o
exemplo do louco, que nada mais é senão aquele cujo discurso não deve circular,
quer dizer, cuja materialidade de seu discurso deve, ao mesmo tempo ser
seccionada das demais, rejeitada em um aparato de saber, constituído de uma
rede de instituições, que escutam esse discurso, e lhe retira os poderes.
Mas é a vontade de verdade que mais nos importa. Ela rege nossa
vontade de saber desde o século VI a.C. Olhado por dentro, um discurso verdadeiro
ou falso não guarda semelhança com os demais procedimentos de exclusão, pois
estes devem ser arbitrários, dotados de aporte institucional; mas vista de
fora, a vontade de verdade se mostra como um procedimento de exclusão:
histórico, arbitrário e institucionalmente apoiado. Institucionalmente apoiado,
pois há os sistemas de livros, de edição, as bibliotecas laboratórios,
universidades, etc...; embora isto, o que reconduz a vontade de verdade é,
sobretudo, a maneira pela qual uma sociedade aplica o saber: formas de
valorização ou não, formas de distribuição de repartição, de atribuição.
Encarada por estas vias, a vontade de verdade mostra-se como sistema de
coerção: exerce, sobre os demais discursos, pressão e poder de coerção: os
discursos buscam autorizar-se pelo discurso da verdade. Há séculos que a
vontade de verdade só faz crescer; tanto é que outros procedimentos de exclusão
– interdição, sujeição e rejeição – se orientam no sentido da vontade de
verdade: esta os toma, os modifica, os reorienta, ao passo que ela mesma se
fortalece e se torna, mais e mais, incontornável.
Histórico, porque remete ao
surgimento da filosofia platônica, à separação entre poder e saber no Ocidente,
ao fim do sofista e ao surgimento da distinção verdadeiro / falso, que dará a
forma a mais total de nossa vontade de saber. É a partir da separação entre saber e poder e da distinção —
instituída pela filosofia platônica e pelo saber das testemunhas, próprio à
prática judiciária grega — entre verdadeiro e falso que nossa vontade de saber
tomará a forma que tem até hoje; forma geral, que funcionou historicamente como
procedimento de exclusão do discurso.
Passou por diversas mudanças durante os séculos que nos separam de
Platão, de Aristóteles, etc, mas não deixou, nunca, de funcionar como sistema
de exclusão, como atestam aqueles que ousaram opor-se a ela.
Por
que se fala tão pouco dessa vontade de verdade? Desde os gregos, na verdade,
desde Platão, o discurso verdadeiro não corresponde, não pode corresponder ao
desejo e ao poder; a verdade existe, no mundo das idéias, imutável, é este
mundo que é a corrupção das idéias; se a verdade não está em jogo, somente o
desejo e o poder estão. A verdade não pode reconhecer que uma vontade a guia,
portanto, mascara-a, e o faz de tal maneira, que a verdade aparece a nós como
rica, fecunda, doce, universal. Por isso não a vemos como sistema de exclusão,
tal como de fato ela se fez exercer.
A vontade de verdade, que faz girar, em torno de si, os
demais discursos, funciona como procedimento de exclusão. E isto porque, se em
todas as sociedades há um regime de verdade. Na nossa, ocidental, este toma
proporções imensas. Por regime de verdade devemos entender os discursos que
funcionam como verdade, regras de enunciação da verdade, técnicas de obtenção
da verdade, definição de um estatuto próprio daqueles que geram e definem a
verdade; portanto ligação circular entre verdade e poder: poder que produz
verdade e a sustenta, verdade que produz efeitos de poder. (cf.
FOUCAULT, 2007c, p. 14).
Esta concepção, que permite à Michel
Foucault conceituar a verdade de um ponto de vista estritamente discursivo,
toma esta como um “conjunto das regras segundo as quais se distingue o
verdadeiro do falso e se atribui ao verdadeiro efeitos específicos de poder” (FOUCAULT,
2007, p. 13) ou como um “conjunto de procedimentos regulados para a produção, a
lei, a repartição, a circulação e o funcionamento dos enunciados” (FOUCAULT,
2007 p. 14).
Um regime de verdade ou, o que interpretamos como
o mesmo, uma economia política da verdade indica as maneiras, os
procedimentos de troca, de mudança, de atribuição, de produção, de incitação,
de cessão, de constituição da verdade. Cinco características dessa economia em
nossas sociedades: o discurso científico e as instituições que o produzem
centralizam a verdade; esta é incitada constantemente pelos campos político e
econômico; há um grande consumo e uma grande difusão da verdade; há grandes
aparelhos de produção e difusão da verdade: universidades, exército, escritura,
mídia; por último, ela é objeto de debates políticos e confrontos sociais.
*
Portanto, “por trás de
todo saber, de todo conhecimento, o que está em jogo é uma luta de poder. O
poder político não está ausente do saber, ele é tramado com o saber” (FOUCAULT,
2005, p. 51). O discurso deve ser analisado em termos de estratégia, em termos
de guerra, de política, de interesse, como objetivo e meio de luta, mesmo
porque, na constituição mesma do conhecimento, e, por conseguinte, do discurso
está uma relação de força. Da mesma forma a verdade não existe fora das
relações de poder, pois ela mesma é uma relação de poder, fruto de relações de
poder, exercendo efeitos de poder. A verdade não só faz, integra as relações de
poder como, ela mesma, é uma relação de poder.
2.3. O método: a genealogia
A genealogia é um método
inspirado em Nietzsche. A obra de Nietzsche analisou elementos os mais variados
buscando estabelecer-lhes a genealogia, quer dizer, sua história não-
metafísica. Dentre estas obras talvez a mais famosa seja a Genealogia da moral, na qual o filósofo alemão empreende uma
pesquisa genealógica dos valores cristãos (como humildade, piedade, etc.)
mostrando buscar sua origem, ligada ao modo de vida dos escravos de Roma, e seu
desenvolvimento que somente pode ser pensado em relação ao poder que os
sacerdotes adquiriram desde então. Nietzsche foca-se no corpo, na vivência dos escravos, submetidos pelos
bárbaros germânicos, para mostrar como os valores não surgem fora do mundo, e
depois caem do céu à guisa de pingos de chuva; ao contrário, os valores vêm dar
sentido, vêm fundamentar determinados modos de vida. Portanto, colocar as
coisas no mundo dos homens, pensá-las em sua própria história, através da
análise documental que busque a vida, o corpo daqueles que viveram, e não as
letras mortas nos livros (cf. NIETZSCHE, 2007).
O genealogista não se contenta
com o azul dos sonhos metafísicos, com aquilo que se diz desde sempre dado; a
genealogia, diz Nietzsche prefere “o cinza, isto é, a coisa documentada, o
efetivamente constatável, o realmente havido” (NIETZSCHE, 2007, p. 13). A
genealogia é um método, portanto, que busca saber, na acepção dada pelo
filólogo-filósofo, o valor dos valores, o peso próprio, a real importância, a
origem e o contexto da origem dos valores; não qualquer saber: deve-se
demonstrar documentalmente, para não ficar na mera verborragia bíblica.
Todos estes elementos são
resgatados por Foucault em seu famoso texto, Nietzsche, a genealogia e a história. Em se tratando de um método
de análise histórica, a genealogia funda-se na análise de documentos, conforme
o dito, que situa as coisas na história de forma anti-metafísica. “A genealogia
não se opõe à história como a visão altiva e profunda do filósofo ao olhar de
toupeira do cientista; ela se opõe, ao contrário, ao desdobramento
meta-histórico das significações ideais e das indefinidas significações. Ela se
opõe à pesquisa de 'origem'” (FOUCAULT, 2007c, p. 16). Em alemão há, ao menos,
três palavras para origem: Ursprung, Entestehung e Herkunft.
Ursprung
é origem no sentido de essência metafísica, sendo que uma
pesquisa deste tipo busca o fundamento originário das coisas, anteriores ou
mesmo fora da história. É a esta “origem” que a genealogia se opõe.
Lendo
Nietzsche, Foucault interpreta que o genealogista não deve buscar a essência das coisas, porque nada tem
essência – o que é indicado por este nome foi construído pouco a pouco, por
acidentes externos as coisas; é que “o que se encontra no começo histórico das
coisas não é a identidade ainda preservada da origem – é a discórdia entre as
coisas, é o disparate” (FOUCAULT, 2007c, p. 18). Não existe uma verdade tal
querem os platônicos; não existe nenhum eidos.
O genealogista compreende que “a história com suas intensidades, seus
desfalecimentos, suas grandes agitações febris, com suas síncopes, é o próprio
corpo do devir. É preciso ser metafísico para lhe procurar uma alma na
idealidade longínqua da origem” (FOUCAULT, 2007c, p. 20), é preciso ser
metafísico para empreender uma pesquisa de Ursprung.
Por isso, o objeto da genealogia é indicado mais fidedignamente
pelas palavras alemãs Herkunft e Entstehung, que, ainda que
ordinariamente traduzidas por origem, tal como Ursprung, indicam, mais exatamente, outras coisas.
A
melhor tradução para Herkunft é “proveniência”, pertencimento a um grupo,
povo, clã ou tradição. Trata-se de fazer aparecer o acontecimento que permitiu
a formação de um conceito ou caráter; portanto, em dissociando o que hoje se
dá, pesquisar o que se perdeu. Sem nenhum traço evolucionista, a Herkunft quer “descobrir que na raiz
daquilo que nós conhecemos e daquilo que nós somos – não existem a verdade e o
ser, mas a exterioridade do acidente” (FOUCAULT, 2007c, p. 21). Pesquisa de
herança, das falhas, da heterogeneidade, da instabilidade, que dissocia o que é
dado como uno. Como é em um corpo que as marcas se inscrevem, que os
acontecimentos se fazem sentir, é justamente na articulação entre corpo e
história que a Herkunft se situará.
Quanto a Entstehung, a melhor tradução seria “emergência”: análise do ponto e da lei de surgimento de algo. “A
genealogia reestabelece os diversos sistemas de submissão: não a potência
antecipada de um sentido, mas o jogo casual das dominações (...) [e é por isso
que] a emergência se produz sempre em um determinado estado das forças”
(FOUCAULT, 2007c, p. 23). Portanto, a análise da Entestehung deve mostrar o combate entre as forças ou o meio pelos
quais elas buscam se perpetuar quando já decadentes. A Entstehung se dá na distância entre as forças em combate, pois não
existe emergência que não se dê no âmbito da luta entre dominadores e
dominados. Se a dominação é histórica, alterando-se na história, ela sempre
“impõe obrigações e direitos; ela constitui cuidadosos procedimentos. Ela
estabelece marcas, grava lembranças nas coisas e até nos corpos; ela se torna
responsável pelas dívidas” (FOUCAULT, 2007c, p. 25); a dominação estabelece
regras, que são a violência da guerra na qual tudo está imerso; é por meio de
regras que se violenta aqueles que violentam, e serão os mais astutos aqueles
que souberem usar as regras contra quem as inventou; neste sentido, a
interpretação das regras liga-se ao devir da humanidade: ele próprio nada mais
é senão uma série de interpretações. A genealogia deve fazer aparecer as sucessivas
interpretações que vincaram as coisas; deve mostrar os sentidos que se fizeram pesar sobre os diversos procedimentos, sobre os diversos corpos,
sobre as coisas todas do mundo, pois qualquer coisa pode ser tomada objeto da
genealogia: tudo tem uma história, que lhe é idiossincrática.
A genealogia é método histórico
anti-metafísico que visa mostrar a proveniência e a emergência das coisas,
através da dissociação das unidades naturalizadas. Contrastar as diferenças,
mostrar as forças em jogo em cada menor coisa, expulsar os interesses de suas
tocas, eis o que faz o genealogista. Quebrando as unidades, Foucault também
quebra o telos, as finalidades,
terminando por opor o homem, os homens, entre si, ou seja, vincando as
diferenças, salienta-se a historicidade das coisas – de todas as coisas, até
mesmo daquelas que se mostram as mais naturalizadas.
*
Neste ponto, devemos fazer uma
observação sobre o percurso teórico de M. Foucault. Até A ordem do discurso, 1970, a obra de Foucault é marcada pela análise
do campo discursivo, isolado em si mesmo, ou antes, da análise da fronteira
entre o discursivo e o não- discursivo; é que discurso é o nome dado ao saber no que há nele de mais físico: a
fala, a escrita; queremos dizer, assim, que o filósofo de Poitiers tomava como
possível um recorte analítico que se debruçasse sobre o discurso sem levar em
conta outros aspectos, como aqueles sociais, políticos, econômicos, etc, mas,
também, sem achatar o discurso sobre si mesmo; trata-se de analisar o limiar
entre discursivo e o não-discursivo.
É graças a esse
enfoque no enunciado tomado enquanto acontecimento que Foucault deve isolar o
saber do resto da sociedade, sem, contudo, considerá-lo de forma ensimesmada,
tal qual acima expusemos. A genealogia é, assim, um deslindar da arqueologia;
ao passo que o discurso continua sendo o foco, busca-se mostrar seu caráter
político. Ou seja, ligam-se os sistemas e as regras de formação às disputas de
poder entre os homens: às urgências históricas, as guerras, aos projetos políticos,
etc. O genealogista como que dá um passo além, em relação ao arqueólogo desde
nossa interpretação: se o arqueólogo considerava o discurso, limiar entre o
saber em forma e em ato, o genealogista aumenta esta fronteira: mostra como
todo fato discursivo, como todo fato epistêmico é, simultaneamente, fato
político.O genealogista aborda o fato discursivo como acontecimento, mas
acontecimento político, que vem responder às injunções do poder. É na
intersecção entre saber e poder, entre discurso e política (interesse, desejo,
cf. FOUCAULT, 2005a) que se deve buscar as verdadeiras regras de formação, o
real significado epistêmico das teses e seu real fito.
Neste sentido, tanto As palavras e as coisas, o grande livro
arqueológico de Foucault, quanto Vigiar e
punir, a grande obra da genealogia foucaultiana, ambas abordam o mesmo
objeto, a partir de vieses diferentes. Naquele, considera-se como foi possível
o objeto de saber homem, como as
ciências humanas foram possíveis; mas o foco são as articulações discursivas:
quais problemáticas propriamente epistemológicas, quais as mudanças na
estrutura mesma do saber – chamada por Foucault de epistemê – tornaram possível o homem enquanto objeto de algo como
uma série de ciências que nós chamamos Humanidades,
fazendo com que ele emergisse, ao mesmo tempo, como sujeito (cf. BRUNI,1989, p. 199-200).
Em Vigiar e Punir trata-se da mesma coisa em se tratando de outra. O
objetivo é, também, mostrar como foi possível que um setor das ciências se
focasse sobre esse objeto emergente, o homem.
Mas todas as diferenças são observadas. É partir da disciplina que Foucault
levará a cabo essa análise, mostrando como o homem tornou-se objeto e sujeito a
partir de uma série de mecanismos de poder postos em funcionamento pela máquina
emergente da sociedade industrial. Foi como espelho de um projeto de
domesticação que as ciências humanas foram tornadas possíveis.
No curso O poder
psiquiátrico, Foucault conta, entre as transformações advindas com a
industrialização, a formação de um tipo de relações de poder chamado poder disciplinar – esboço daquilo que
Foucault desenvolverá mais apuradamente em Vigiar
e Punir. A disciplina organiza
aparelhos de apropriação total do tempo, dos corpos e das condutas, de forma a
submeter os homens a mecanismos contínuos de vigilância e registro do
comportamento. Estabelece-se uma norma,
que deve ser posta em jogo por meio do exercício,
que cria, faz surgir, engendra um corpo ou comportamento. Quando constatado
elementos desviantes em relação ao normal,
faz-se rodar medidas corretivas, medidas de punição. O objetivo da disciplina
é, em último caso, anular-se a si mesma, já que ela busca criar um corpo, quer dizer, dispensar os elementos disciplinadores.
A sociedade industrial fez surgir uma rede de aparatos disciplinares que se
completam entre si. Os mecanismos da disciplina são intercambiáveis e
articuláveis, já que as relações que uns e outros exercem ao invés de se
excluírem se complementam em sua diferença.
O indivíduo não é originário: ele
emerge como realidade no final do século XVIII, como conseqüência do
desenvolvimento do capitalismo e dos mecanismos disciplinares. Por meio destes,
procedeu-se a acumulação de homens, correlata historicamente necessária à
acumulação de capital: distribui-se a multiplicidade da força de trabalho, se
lhe torna utilizável na multiplicidade dos homens, aperfeiçoando-a. Por isso a
disciplina emerge exatamente no momento da constituição da sociedade
industrial. Quando de então, o indivíduo era tematizado sobre duas formas
predominantes, ou indivíduo jurídico ou indivíduo histórico. É da junção entre
estas tematizações e dos aparatos disciplinares que emergirá as ciências
humanas.
É que os mecanismos disciplinares
tornam cada corpo, considerado separadamente, um sujeito, pois é por meio da
atomização somática que a vigilância, o registro, a punição, a dicotomia
normal-anormal opera. Poder disciplinar: “uma série constituída pela
função-sujeito, a singularidade somática, o olhar constante, a escrita [dos
comportamentos] o mecanismo de punição infinitesimal, a projeção da psique e,
finalmente, a divisão normal-anormal” (FOUCAULT, 2006, p. 69). Em seu
exercício, a disciplina cria uma individualidade, uma psique. São estes
elementos conjugados que tornaram possível historicamente a constituição de
algo como uma ciência do homem.
A ciência clássica realizava
classificações diante da multiplicidade do mundo empírico – já se tratava de
expressão da verdade-demonstração. A acumulação de homens desenvolveu outra
forma de operação, também fundada na verdade-demonstração, que é a tática:
distribuição de singularidades de modo a maximizar a eficácia produtiva de
singularidades; novamente, é da tática, e das questões que ela suscita que
emergem as ciências humanas.
*
Fizemos breve exposição do método
arqueológico que pode ser resumido, em poucas linhas, como um método de
pesquisa de história do pensamento, que busca desvelar e descrever as formações
discursivas, constitutivas de discursos, grupos articulados de enunciados, que são,
por sua vez, acontecimentos, ou seja, são singulares — tem seu tempo e seu
espaço.
A genealogia acrescenta elementos
às análises arqueológicas, em articulando saber (discursivo) com o político,
tornando o saber resultado-objeto das guerras sociais, que envolvem a tudo e a
todos. Assim, ainda que se trate de um mesmo projeto, de análise
histórico-epistêmica do saber, a genealogia inova ao mostrar como o saber
responde à urgências históricas, à interesses determinados; a genealogia mostra
como as relações de poder engendram saber, discurso, massa documental, seja em
decorrência de seu próprio exercício, seja como condição de sua existência.
Em suma, a genealogia é um método
de análise histórica de um conceito, de um corpo ou de um caráter, que busca
mostrar a proveniência e a emergência destes no âmbito da luta entre
dominadores e dominados, articulando a constituição de formas de saber com o
exercício do poder. Vigiar e Punir,
por exemplo, é a análise da proveniência da disciplina e da emergência de suas
formas contemporâneas em escolas, prisões, asilos, exército, etc., que levou a
constituição de uma série de ciências conhecidas como Humanidades. Como a genealogia sempre supõe a luta entre
dominadores e dominados, cumpre dissolver as unidades (esculpidas pacientemente
pelos dominadores) para mostrar a baixeza (“o que há de humano”) da
proveniência e da emergência – aquilo que foi intencionalmente apagado seja do
campo do poder seja do saber.
3. A situação desta pesquisa: Observações metodológicas e
analíticas Observações metodológicas e analíticas
Nosso
objetivo inicial com este projeto era cobrir o período que iria desde o
principio da modernidade — quando seus principais elementos são dados — até
quando os primeiros discípulos de Freud começam a traçar seus próprios
caminhos, um tanto quanto distintos de seu mestre vienense. Pretendíamos
aplicar a mesma genealogia, utilizando a obra de Foucault como linha mestre e
fonte última, mas, ao mesmo tempo, incluir novos elementos, articulando, pois,
uma genealogia plena das ciências da vida e da saúde.
Teríamos,
pois, quatro períodos a cobrir, quer dizer, quadro séries distintas no quadro
estes estudos. A primeira cobriria um período pré-psiquiátrico da loucura,
desde o fim da Idade Média até o gesto fantasioso onde Pinel teria rompido as
cadeias dos loucos de Bicêtre. A segunda série deveria cobrir o período francês
deste novo sentido aplicado a loucura, desde o tratamento moral até,
aproximadamente, os dois trabalhos que apontam para o fim desta era: Charcot e
Morel. O terceiro deveria cobrir a saída de cena da médécin mentale, com sua metodologia confusa, para a aparição das
duas grandes figuras da psichiatrie
alemã, a primeira maior que a segunda: E. Kraepelin e R. Krafft-Ebing. Por fim,
deveríamos englobar esta psicopatologia nova, surgida da intersecção dos
trabalhos de Charcot, e seu sussurro sexual da origem das afecções ,e com a
preocupação de origem de Kraepelin: Sigmund Freud. Fechando nossa pesquisa,
acompanharíamos seu trajeto até algumas escolas dissidentes, como Reich, Jung e
Fromm. Com isto, teríamos empreendido uma série dentro de um quadro geral, mais
amplo, da biopolítica.
Contudo,
o caráter de nossa metodologia tornava impossível esta pesquisa. Em fato, uma
pesquisa genealógica implica uma dupla analítica que, na caneta do pesquisador,
reencontram-se: uma de caráter epistemológico, no campo do sentido; outra de
caráter político-histórico-social, pesquisa de procedimento. Portanto,
tivemos de reorientar nossos estudos, e isto, pois, por motivos:
1.
metodológico; pois a genealogia nos
requereria uma bibliografia consideravelmente mais ampla e que desse conta de
um amplo espectro;
2.
epistemológico; já que, para
empreender uma epistemologia política faz-se necessário um amplo conhecimento
do campo que ora queda como objeto da série;
3.
sociológico; que envolveria o rigoroso conhecimento das sociedades francesa e
alemã do período, dificultado pelo fato das agitações, revoluções e dos
fervilhamentos pelos quais passavam estas sociedades no período. Em suma, uma
sincronia diacrônica poderosa.
4.
histórico: teríamos de colocar estas distintas perspectivas dentro de um
rigoroso marco histórico, que, apesar das distintas músicas pelas quais bailam
as teorias e as práticas, conseguisse lhes achar o compositor comum. Quer
dizer, uma diacronia precisa que fizesse vir a tona o dispositivo ou, antes, a
série de dispositivos envolvidos.
Estes
pontos implicariam uma análise bibliográfica de muito vulto afim de empreender
uma pesquisa plena. Assim, tivemos de cortar partes, realocar documentos, abrir
a gaveta para que outros esperassem o momento certo de adentrar esta marcha
teórica. Nosso período diminuiu em dois, deixando Freud e os seus para uma
pesquisa futura, ao mesmo tempo em que muitos textos, fundamentais para uma
analítica completa, não puderam entrar nesta genealogia. Também sentimos a mais
plena necessidade de incluir um texto explicativo sobre a psiquiatria e o que
os próprios psiquiatras dizem de si. Com ele, impediremos que outros passem
pelas dificuldades que passamos, e, ao mesmo tempo, permitiríamos que, enquanto
falamos de psiquiatria se saiba em fato o que queremos dizer.
Assim,
o que é este trabalho? Diante de nossa explicação, muitos pensarão que se trata
de um monstro horrível e que, talvez, na hora da leitura encontrarão passagens
e, quem sabe, até mesmo capítulos inteiros, onde a perna que se deixou de fazer
fará falta, ou onde a cabeça prematura confundirá o azul com o vermelho,
contrastando e fazendo vir a tona o contrário do que deveria ser.
Não
está assim. Este trabalho buscou estabelecer notas para a genealogia da
psiquiatria e da psicanálise. Bem dito: elaboramos algo cujo melhor nome não
pode ser outro senão notas. Notas para a genealogia de um grupo de ciências ou,
antes, como preferimos, notas para a epistemologia política das ciências da
vida e da saúde. São elas que seguem.
4. Para compreender a
psiquiatria
4.1. A psiquiatria (para os
psiquiatras)
Os psiquiatras consideram que a doença mental é um fato do mundo: ela não
varia de acordo com as sociedades, tampouco as distintas culturas influenciam o
modo como ela há de se dar. Não: lidando com o fato complexo da doença mental —
substrato comum de todas as escolas psiquiátricas —, decorrem também teorias
complexas e heterogêneas, fruto de tendências e autores distintos. Todas
postulam, contudo, que há doença
mental, que ela, sob as camadas meramente lingüísticas do nome, permanece
igual, indistinta desde que existe, desde que raiou sobre o mundo o animal que
faz promessas.
Pretende-se
uma ciência ou um discurso cientifico (intersecção de saberes científicos de
origens diversas) unificada por seu objeto, a doença mental. Assim, a
psiquiatria elabora teorias a fim de organizar, com fins epistêmicos e médicos,
a complexidade do real, na verdade, de uma realidade, o doente mental, que a
psiquiatria instrumentaliza por meio de conceitos visando elaborar uma
terapêutica — pois a psiquiatria é um ramo da medicina.
A psiquiatria não interpreta a
doença mental enquanto fato místico ou religioso. Ela é um discurso científico
sobre fatos mentais patológicos. Costuma-se confundir o anormal com o
patológico: o anormal refere-se ao desviante em relação a uma regra, enquanto
que o patológico refere-se a uma patologia. O anormal pode ser estabelecido a
partir de métodos quantitativos de ocorrência de determinados fenômenos; o
patológico diz respeito a emergência de uma nova racionalidade, diz respeito a
um desvio na vida do individuo — portanto, uma patologia, ou, em nosso estudo
de caso, uma psicopatologia, estabelece esta divisões e delineia
o que distingue o louco do são. O patológico é, enfim, qualitativo.
Leriche (1878-1955): “[a saúde é] ‘a vida no silêncio dos órgãos’
enquanto o patológico implica sentimento concreto de sofrimento e impotência”
(apud GRANDINO; NOGUEIRA, 1985, p.
11). O sofrimento, contudo, não define
a patologia, pois existem patologias assintomáticas, outras que não provocam
nenhum sofrimento e algumas que o provocam. A doença é, pois, entendida de
maneira geral como esta alteração de racionalidade, como um rearranjo dos
elementos da psique que, dependendo de suas características, levarão ao
desenvolvimento de distintas patologias.
As doenças são idéias desenvolvidas
pelos médicos para compreender e tratar processos patológicos; ou seja,
trata-se de conceitos operacionais. A causa, a etiologia de uma doença, é composta de inúmeros fatores, e o que
determina algo como um nome é a repetição das formas de seu aparecimento, portanto,
uma constância. Nas doenças mentais, ao contrário das orgânicas, as formas de
aparecimento não são tão claras; as doenças mentais são produzidas por
condições de vida particulares, embora sua sintomatologia seja estereotipada. Diagnóstico é o nome de um agrupamento
de sintomas; um conjunto de diagnósticos tem por nome nosografia, e seu estudo de modo, digamos epistêmico, tem como
epíteto a alcunha de nosologia. A
busca pela cura da doença, com todos os processos que implica, é chamada de terapêutica.
A terapêutica
Inúmeros recursos terapêuticos foram desenvolvidos na história da
psiquiatria. Por exemplo, os hospitais psiquiátricos. Atualmente, eles não são
como os asilos dos séculos precedentes, mas clínicas comuns. Indica-se a
hospitalização somente em casos agudos; a internação deve ser breve, pois o
hospital não é, atualmente, depósito de gente. Hoje em dia a internação deixou
de ser compulsória tornando-se, pois, voluntária — esta era uma das
reivindicações daquele movimento que se convencionou chamar de antipsiquiatria. Com o tempo, entre o
não internamento e o internamento desenvolveu-se uma série de recursos
intermediários que o hospital pode oferecer: pensão protegida, quando os pacientes residem próximos ao hospital;
hospital-dia, o paciente passa o dia
em tratamento e retorna à noite para casa; hospital-noite¸
o próprio hospital é o dormitório; e ambulatório
psiquiátrico, consultas periódicas de
reavaliação.
Na atualidade, os principais ramos
da terapêutica são: a psicofarmacologia, os tratamentos de choque e as
psicoterapias.
Psicofarmacologia
Por volta da década de 50 desenvolve-se a psicofarmacologia, nome do ramo da farmacologia que estuda as
drogas que atuam no sistema nervoso central, modificando as funções mentais por
meio de substâncias nomeadas de psicotrópicos:
os barbitúricos foram sintetizados em
1913 e ametilanfetamina em 1938;
contudo, embora seu uso terapêutico, somente com a clopromazina, na segunda metade do século XX, as substâncias
psicotrópicas ganharam importância psiquiátrica.
Dentre inúmeras classificações, a de J. C. Madalena (apud GRANDINO;
NOGUEIRA, 1985), para o qual existem seis grupos de psicotrópicos:
1. Ataráxicos, que atuam sobre manifestações psicóticas em geral; seu
principal grupo é o dos neurolépticos (efeitos: indiferença, controle das
agitações e excitações, ação subcortical, influência nos delírios e
alucinações), recomendados em casos de agitação motora, delírios, alucinações,
manias, manutenção de períodos assintomáticos e contra a insociabilidade.
2. Tranquilizantes: atuam sobre
a ansiedade,comum em estados neuróticos; a principal família é dos
benzodiapezínicos (efeitos: queda da tensão e da ansiedade; sonolência; ação
depressora sobre o sistema límbico; ausência de ação nos fenômenos psicóticos).
3. Antidepressivos: para a
psiquiatria depressão “é um estado
patológico caracterizado por inibição das funções psíquicas e restrição do
campo existencial” (GRANDINO, NOGUEIRA, 1985, p. 43); os antidepressivos
combatem este estado; dividem-se em dois tipos: timerépticos (ação
antidepressiva unida a ação desinibidora) e os timolépticos (regulam o humor);
são estimulantes, anti-hipnóticos e invertem o humor depressivo; sua atuação é
eficaz somente em casos de depressão endógena,i.é,sem fatores externos com doenças.
4. Hipnossedativos: induzem ao
sono; podem ser hipnóticos ou euípnicos; dentre os primeiros, os barbitúricos,
que inibem o sistema nervoso central; dentre os últimos, derivados de
benzodiazepnícos, miorrelaxantes; atualmente prefere-se os euípnicos, pelo
número menor de efeitos colaterais, menor ação sobre sistemas vitais, e menor
índice de dependência.
5. Anticonvulsivos: muito heteróclitos quimicamente para serem
descritos, sua ação fundamental é controlar as manifestações paroxísticas da
epilepsia, sendo a mais notável a convulsão tônico-clônica.
6. Psicodislépticos: alteram a
percepção em favor de um estado de “estar acordado”; seus efeitos são múltiplos
e, devido a isto, seu uso terapêutico é escasso, restrito, sobretudo, à
diminuição de algumas aminas biogênicas (como serotonina e dopamina).
Os psiquiatras avaliam, ao menos nas fontes que nos consultamos, que os
psicotrópicos melhoraram a ação psiquiátrica, possibilitando o atendimento
ambulatorial e o controle de inúmeros sintomas. Eles permitiram, também, uma
melhor compreensão dos fundamentos biológicos das doenças, e a emergência de
novas preocupações como a relação corpo-mente.
A psicofarmacologia marca a abertura de um novo período da história da
psiquiatria, onde aquela de cunho anglo-saxã desbancará a psiquiatria alemã,
dominante desde os trabalhos de Kraepelin e Krafft-Ebing. A partir da
utilização da clorprocacina no tratamento da esquizofrenia (1952), dos
derivados iminodibencilo como arma contra os sintomas depressivos (1950), os
barbitúricos — até então vivamente recomendados — caem por terra e abre-se a
porteira: toda uma nova série de substâncias são ministradas aos loucos, como a
reserpina e as butirofenonas (neurolépticas) e os tioxantenos. Em breve
inúmeros antipsicóticos terão sido desenvolvidos e hoje muitos psiquiatras
questionam os efeitos da farmacologia na psiquiatria, especialmente o aumento
do leque de comportamentos patologizáveis e patogênicos; questiona-se mesmo se,
com isto, o sonho moreliano de algo como uma sociatria, medicina do corpo social (cf. CAPONI, 2009, p. 425-6, e
também, CAMPAILLA, G., 1982, p. 343-368), não estaria se tornando mais e mais
realidade.
A utilização dos fármacos está ligada não somente a uma nova sociedade na
qual uma vida acelerada requer tratamentos acelerados, e onde mecanismos
brutais de normalização, postos em jogo por inúmeras instituições, discursos e
práticas, pressionam o individuo a um controle interno rigoroso — Foucault nos
descreve este mecanismo muito bem em Vigiar
e Punir e em O poder psiquiátrico.
Os psicofármacos são recomendados porque, do ponto de vista psiquiátrico,
funcionam. Os fármacos fazem cessar o sintoma. Tarda, um (ou uma?) psiquiatra,
cita algumas vantagens: não sedam necessariamente o paciente para serem efetivos,
acabam ou atenuam os sintomas, alguns (como os antipsicóticos) não levam a
dependência e a tolerância desenvolve-se somente com efeitos secundários, além
de haver baixa letalidade em sua utilização (ENGUIX, s/d, pp. 1320-1353).
Para uma compreensão epistemológico-politica da psicofarmacologia,
contudo, não devem nos enganar: o fim da sociedade de massas fordistas tem,
como uma de suas marcas, a emergência de mecanismos de controle muito mais
sutis. Contra aquela psiquiatria dos asilos enormes, contra a polícia
psiquiátrica, e todas as conseqüências — e resistências — políticas que dele
advinham, os novos métodos sutis de psiquiatrização da conduta e, mais
importante, a auto-psiquiatrização do próprio comportamento. Assim, esvazia-se
a crítica antimanicomial, ao menos se tomada nos termos de luta contra a
instituição, o que não parece ser o caso do movimento antimanicomial
contemporâneo[1]. Mas, se o
manicômio diluiu-se em mecanismos de subjetivação — muito distinto do cinza dos
manicômios, com seus pisos de um verde que enlouquecem qualquer um e tetos
altos que isolam no isolamento—, bem, esta luta torná-se um tanto mais difícil.
Os tratamentos de choque
É muito difundida a imagem segundo a
qual teria sido o regime de Mussolini que inventou o tratamento de choque, o
que é somente meia-verdade. O tratamento de choque deve ser inscrito naqueles
grandes debates, muito antigos na psiquiatria (desde as teses de Bayle, ao
menos[2]),
acerca da etiologia da patologia — se biológica ou psicológica, de onde decorreria,
por uma lógica frouxa, que a terapêutica deve ser ora biológica ora
psicológica, respectivamente[3]
Os
tratamentos de choque contam-se dentre aqueles biológicos: assumindo uma doença
sediada no cérebro, também os tratamentos devem aplicar-se aqui. Nos grandes
debates localizacionistas, Bayle sem dúvida ocupa um papel fundamental. Ao
descrever a aracnoidite crônica[4]
como vetor para a paralisia geral, ele iniciaria toda uma série de pesquisas
que iriam se interrelacionando até que Noguchi e Moore descrevessem, em 1913, a
origem sifilítica da paralisia geral, agora denominada demência sifilítica — e
cuja história passa pela descoberta do Treponema
pallidum como vetor da sífilis, em 1905, por Schaudinn; pela prescrição de
métodos piréticos contra a sífilis, por K. Landsteiner; e pela invenção do
método do soro fisiológico como instrumento de diagnóstico da doença, elaborado
por Wasserman em 1908.
Desde há muito, desde Hipócrates, os
tratamentos piréticos eram indicados, juntamente com outros procedimentos de
choque — como convulsões e traumatismos cranianos — para tratar a loucura: não
nos esqueçamos dos banhos alternados, das duchas circulares, das cestas de
vime, das camisas-de-força, da estrapada, etc. Ao mesmo tempo, muitos
psiquiatras defendiam, com base em estatísticas clínicas, que havia uma
incompatibilidade entre muitas doenças mentais e as convulsões, conforme
veremos.
A partir deste solo epistemológico
fecundo, J. Wagner Jauregg iniciará a moderna malarioterapia[5],
contaminação intencional dos doidos com malária a fim de provocar-lhes febres,
que tinham um valor terapêutico positivo. Se há muito já eram prescritos os
tratamentos piréticos, a diferença consiste em que, durante o ano de 1917, este
jovem médico vienense inoculou malária extraída de soldados da Grande Guerra no
corpo de alguns loucos, diagnosticados como dementes sifilíticos, doença
bastante comum naquele período.
Jaregg abria, pois uma série histórica que desembocará diretamente no
eletrochoque. Sua malarioterapia, amplamente difundida no mundo (utilizada no
Brasil, inclusive[6]), com seus
resultados terapêuticos tidos como positivos, malgrado fossem apenas de caráter
sintomatológico (como se postulará mais tarde), colocam a psiquiatria biológica
na vanguarda dos tratamentos, em detrimento, pois, da psicoterapêutica,
freudiana ou não.
Deste modo é que Sakel encontrará terreno livre para tratar uma mulher
viciada em morfina com insulina, em 1927, obtendo resultados animadores. A técnica de Sakel utilizava as recentes
descobertas (1921) acerca da insulina (seu isolamento; a descoberta de suas
funções no organismo) com o objetivo de provocar hipoglicemia em seus
pacientes, levando-os, pois, ao coma, a febre e as convulsões, estas últimas
descritas como recursos terapêuticos, tal qual vimos. Aplicando seu método na
esquizofrenia, Sakel o descobriu brutalmente eficaz no controle dos doidos, o
que popularizou sua técnica quase que imediatamente, no mundo todo. Não se pode
perder de vista que a esquizofrenia era, então, um dos carros-chefe da
problemática psiquiátrica, tendo assumido este papel desde os trabalhos de
Kraepelin[7].
Na direção rumo ao eletrochoque,
outro psiquiatra contribuiu bastante; trata-se de L. von Meduna, húngaro —
curiosamente, a Hungria vivia uma forte ditadura protofascista no período —
que, por meio de estudos estatísticos postulou que a ocorrência de epilepsia
impossibilitava a ocorrência de esquizofrenia. Assim, Meduna passa a elaborar
testes clínicos visando encontrar uma substância que levasse a convulsões, concebidas
em um sentido, dizia, terapêutico. Neste caminho, Meduna testou inúmeras
substâncias, como a cânfora (1934), estricnina, tebaína, pilocarpina e
pentilenotetrazol (metrazol ou cardiazol), por meio de injeções
intramusculares, por vezes associadas ao uso de insulina.
Meduna conseguiu o que queria quando
procedeu por meio de injeções intravenosas de metrazol, que levavam a
convulsões rápidas e violentas. Comunicando seus achados em 1937, a comunidade
psiquiátrica se dividiu entre o choque insulínico e o choque por metrasol: o
primeiro mais caro, trabalhoso (9h de internação!!!) e com poucos efeitos
colaterais, era, contudo, mais controlável que o choque por metrasol (47% de
casos de fraturas espinhais! Tamanha a violência das contrações)[8].
E. Bennet, 1940, buscou contornar este problema combinando metrazol com curare
(paralisante que bloqueia a ação da acetilcolina) e, depois, com escopolamina e
curare, visando sedar os pacientes.
O metrazol acabou se mostrando mais eficiente que a insulina somente em casos
de psicoses afetivas — o eletrochoque mostrou-se o mais adequado para os casos
de esquizofrenia. Seu desenvolvimento está ligado ao trabalho de Cerletti, que
havia se convencido que, malgrado sua utilidade terapêutica, o metrazol tinha
muitos inconvenientes, como a incapacidade de controlar as convulsões e o medo
que os pacientes tinham dele. Sendo especialista em epilepsia, já havia
utilizado eletrochoques em animais para provocar crises epilépticas. Ajudado
por L. Bini e L. B. Kalinowski terminou por desenvolver um novo invento para
utilizar o eletrochoque em humanos — havia nascido esta técnica que tanto
sucesso fez nos asilos.
O método de Cerletti-Bini, como ficou conhecido, produzia amnésia
retrógrada (o que levava os pacientes a não temerem a terapia) e permita um
controle e segurança maior, apresentando baixas taxas de mortalidade. Aos
poucos se passou a utilizar, conjuntamente com ele, o curare e a escopolamina,
substituindo, assim, as terapêuticas pautadas na insulina ou no metrazol. O
método Celetti-Bini também se mostrou eficaz, especialmente no tratamento de
distúrbios afetivos, o que o levou a hegemonia dos tratamentos de choque, mesmo
diante de outros novos, como indução pirética por microondas, anóxia[9]
cerebral induzida pela inalação de oxigênio-hidrogênio e crioterapia[10].
Progressivamente vozes se insurgem contra o eletrochoque. Seu uso era
compulsório, independentemente da vontade dos loucos, além do que, se a própria
criação do método sob um regime fascista já levaria os mais desconfiados a
criticas, a prática psiquiátrica e os relatos dos pacientes davam conta de sua
utilização estritamente disciplinar, ao contrário do que afirmava publicamente
nossos dottores[11].
Afinal, quantas enfermarias não foram tomadas pelos boçais[12]?
Se é verdade que as criticas, sobretudo dos movimentos por direitos
humanos e antimanicomiais[13],
fizeram recuar a utilização do eletrochoque, ainda há quem a recomende.
Rebatizada de eletroconvulsoterapia (ECT), diz-se dela como uma terapêutica
efetiva para algumas afecções graves, como: depressão, catatonia, mania,
esquizofrenia. A própria associação mundial de psiquiatria faz jus a sua
história e a faz vivas loas ao método[14],
descrito como eficaz e, mesmo como mais eficiente em alguns casos!
Para concluir esta breve exposição sobre a
terapêutica de choque, devemos ser justos com o produto nacional, com a mais
pura flor tupiniquim da medicina psiquiátrica:
“Pacheco
e Silva [sucessor de Francisco Franco da Rocha como diretor do Juquery], por
exemplo, refere-se orgulhosamente a uma descoberta cientifica de Franco da
Rocha, quando uma paciente ‘melancólica ansiosa’, ao irritar suas companheiras
de pavilhão, sofreu uma violenta paulada na boca do estômago, acordando
‘curada’ do coma decorrente da pancada: estavam lançadas as bases da futura traumaterapia, tornando Franco da Rocha
— segundo as palavras de seu sucessor— um ‘precursor das modernas terapias de
choque’” (CUNHA, 1988, p. 98)
As psicoterapias
Por fim, devido aos trabalhos
ligados ao mesmerismo, ao bradismo, à hipnose[15],
ao método catártico — sintetizados
por Freud na talking cure[16]
— veio ao mundo a psicoterapia. Esta consiste em terapêuticas que se desenrolam
somente por meios psíquicos; ela distingue-se dos métodos farmacopsicológicos,
pois o efeito destes é fundamentalmente oriundo de ação metabólica de seus
componentes químicos. A psicoterapia é um conjunto de métodos de saber
acessíveis por diversos meios; dentre elas conta-se a terapia comportamental de
B. F. Skinner, o psicodrama,de J. L. Moreno; as terapias bioenergéticas,
inspiradas em Reich, dentre outras.
Dentre todas as psicoterapias, a
psicanálise é a mais difundida e estudada. Após superar a utilização da hipnose
como método — desenvolvida por J. Breuer sob o nome de método catártico —, a
psicanálise teve um desenvolvimento teórico-metodológico que permitiu sua
autonomia frente à psiquiatria. O analista não descreve remédios: ele somente
propõe-se a ouvir e intervir ocasionalmente. Este método simples faz vir à tona
conteúdos inconscientes, primeiramente disfarçados, esperando para serem
decifrados. Aos poucos, conforme o paciente faz emergir o censurado, a verdade
tende a se sobrepor sobre os elementos de repressão.
*
Vejamos como se dá a prática psiquiátrica. O estudo de um conjunto de
sintomas determinado serve de guia para a elaboração do diagnóstico, variável
conforme o estágio de conhecimento em que se encontra o médico. Médicos
diferentes podem fazer análises distintas dos sintomas, elaborando diagnósticos
distintos, embora ambos visem à objetividade. É o diagnóstico que permite se
descubra a natureza da doença e os meios mais eficientes de tratá-la.
Em relação à cronificação da doença,
hoje a psiquiatria postula que a internação prolongada somente contribui para
este fato. Por isso, ao contrário do que ocorria á cinqüenta anos, mudou-se o
caráter da intervenção: desapareceu o antigo asilo, “depósito de gente”, em
benefício do hospital psiquiátrico. Hoje a internação persiste somente para
casos graves de crise, agitação ou depressão com risco de suicídio; quer dizer,
o papel fundamental do hospital reside nas situações de emergência
psiquiátrica, tornando a internação e o hospital como estratégias possíveis
dentre outras, como aquelas ambulatoriais.
Vários elementos contribuem para as
limitações práticas da psiquiatria, sendo o mais óbvio aqueles econômicos, que
restringem a atuação hospitalar (mais cara) em beneficio da ambulatorial, bem
como o acesso a remédios e outros bens. Outro elemento é quando a psiquiatria é
chamada para resolver casos que não são de sua alçada (médica), especialmente
aqueles sócio-econômicos, como internações famélicas. Não se descarte também, a
utilização política da psiquiatria, da qual o estalinismo e o fascismo, mas
também o capitalismo liberal ou não, mostraram tão bem; e, ainda, os interesses
econômicos envolvidos na indústria da loucura, que terminam por levar a
prescrição de estes ou aqueles tratamentos em detrimento, sempre, do louco.
4.2. O papel
da Psicopatologia
Sem dúvida, nesta analítica que fazemos dos fundamentos da psiquiatria,
seria uma traição não nos determos naquilo que lhe serve de fundamento: a
psicopatologia. Assim como todo discurso que busca tornar-se ciência também a
psiquiatria buscou mimetizar outras ciências na busca do estabelecimento de seus
princípios positivos, que fundamentassem suas operações, na qual a medicina
aparecia como alvo predileto.
Por volta do fim do século XVIII,
com a Inquisição arrefecida em mundo em entrando no turbilhão industrial,
desenvolve-se na França uma nova medicina, pautada em outra racionalidade
médica. “Muito cedo os historiadores
vincularam o novo espírito médico à descoberta da anatomia patológica”
(FOUCAULT, 2008, p. 136). Sob o impulso de X. Bichat um campo analítico novo se
dava a conhecer e isto se refletia nas formas como se praticava a medicina e no
seu entendimento no conjunto da sociedade.
A psiquiatra, como se sabe, surge na
mesma época e rapidamente uma inquietação epistêmica passa a preocupar seus
aderentes. Conforme a psiquiatria buscava se tornar ciência, seguia o caminho
rumo a algo como física médica da alma, e, assim, pareceu aos dottores que, se a fisiologia estava
para a medicina como a psicologia deveria estar para a psiquiatria[17],
do mesmo modo, haveria de existir a contraparte espiritual da anatomopatologia.
Somente com Jaspers, na sua monumental Allgemeine
Psychopatologie, esta ciência almejada se tornará independente, pautada na
fenomenologia germânica de então, o que não significa que ela não estivesse
presente na derrière dos alienistas.
Certamente, tratava-se de outra coisa, e somente a fenomenologia poderia dar a
ela o caráter contemporâneo — pois a psicopatologia é, antes de tudo, uma
grafia semiológica do fato mórbido-mental, com uma casuística, que devem pautar
a prática terapêutica psiquiátrica.
Esta disciplina, ao menos nas fontes por nós consultadas[18],
é extremamente dispare, como todo o restante da psiquiatria, com autores
distintos defendendo posições, por vezes, irreconciliáveis. Neste ponto, há de
se notar que um dos manuais que consultamos K. Jaspers, considerado por alguns
como aquele que colocou a questão da
psicopatologia[19], é citado
como tendo apenas propugnador de uma metodologia antropológico-analítica e a
psicopatologia como desvalorizadora da experiência do Outro-paciente em
benefício do Eu-médico[20].
Se para uns é assim, para outros,
não. “Existiria uma abordagem especializada do humano que, sem ser nem uma
psicologia nem psiquiatria, tenha os meios metodológicos de observar e
descrever os distúrbios psíquicos e compreender seu acontecimento fenomenal
singular no cerne da generalidade das experiências?” (FÉDIDA, 1998, p. 108).
Esta questão, posta por Jaspers, seria para Pierre Fédida o ato de fundação de
psicopatologia geral. Senão isto, no
mínimo Jaspers merece um papel destacado na história da disciplina, pelo
momento em que escrever sua obra e pelo caráter que ele teve[21].
É fato que reinava, então, no campo
da psiquiatria e também no da psicopatologia uma confusão generalizada. A
psicanálise estava se tornando conhecida e os debates entre organicistas e
psicologistas se acentuavam. Além disso, as próprias ciências humanas debatiam
vivamente qual método tomar, qual caminho seguir. A obra de Jaspers não
poderia, pois, passar despercebida. Fruto de grandiosa observação empírica
proporcionada pela clínica em Heildelberg, Jaspers sistematiza estes
conhecimentos ao mesmo tem em que elabora furiosa critica metodológica. No
curso de dois anos, publicará duas obras que darão uma reviravolta nesta área.
A psicopatologia já não podia mais
ser nem uma psicologia do patológico nem uma psicologia patológica. Quer dizer,
nem, de um lado, se ater a uma psicologia objetiva — de cunho naturalista — que
desprezaria seu objeto próprio, a psique; e, de outro, não tinha como se manter
uma psicologia meramente subjetiva se quisesse manter pretensões cientificas —
como criticar os dados psicológicos alheios pautados somente na empatia (por
ele compreendida como a representação para si da experiência alheia)?
Assim, a solução de Jaspers passava por uma critica metodológica. A
tarefa da psicologia subjetiva seria, justamente, distinguir, descrever e
nomear os fenômenos subjetivos a fim de que pudessem ser criticáveis: esta é a
própria fenomenologia para Jaspers, ou psicopatologia descritiva. Nesta tarefa
descritiva, Jaspers definia alguns parâmetros objetivos, visando diminuir as
limitações do método, embora os limites continuassem a existir — justamente por
isto, não negava outras formas de abordagem do afigurado, dos fenômenos
psíquicos do paciente. Jaspers dava assim uma ancoragem empírica e criticável à
psicopatologia, pois as descrições deveriam ser feitas em uma linguagem comum,
em um referencial simbólico único, ou seja, intersubjetivo.
Esta é a primeira parte da proposta
jasperiana: a compreensão empática. O método de Jaspers pode parecer
reducionista, isto é, tomar o subjetivo somente por suas manifestações
internas; em fato, para Jaspers, este método deve ser como que o anteparo que
permitirá uma psicopatologia, ao apontar os fenômenos de seu campo claramente.
Tratava-se de apreendê-los por meio de uma compreensibilidade estática — para
Jaspers, sinônimo de fenomenologia. Após este seria possível uma psicopatologia
propriamente falando, que estabelecesse uma compreensibilidade genética dos
fenômenos ao estabelecer conexões compreensíveis entre eles.
A
fenomenologia de Jaspers parte de uma psicologia descritiva que deve
fundamentar o acesso do subjetivo, de modo, pois, a conciliar uma psicologia
objetiva com outra descritiva — assim, garante-se a cientificidade da
disciplina, ao mesmo tempo em que não se dissolve o objeto que lhe é próprio, o
campo subjetivo de experiências.
Desse modo, o objeto da psicopatologia é o estudo descritivo dos
fenômenos mentais tomados como anormais a partir da experiência dos doentes.
Embora etimologicamente o termo signifique “doença do espírito”, não existem, a
rigor, doenças psíquicas, pois toda doença é do corpo; aquelas psíquicas serão
doenças se e somente se estiverem condicionadas a alterações patológicas do
corpo.
Para Jaspers, o objetivo da
psicopatologia é estudar a vida psíquica anormal independentemente da clínica,
ou seja, ser uma descrição da experiência do enfermo, tomada como adaptação á
enfermidade. A psicopatologia deve fornecer as bases para a atuação dos
psiquiatras, dando-lhes o instrumento para que a psiquiatria elabore o
“diagnóstico, o tratamento e a profilaxia das doenças mentais” (PAIM, 1977, p.
12).
O fato dos psiquiatras buscarem a
fenomenologia como método proveio das dificuldades causadas pela interpretação
então majoritária do delírio e da alucinação como erros. Somente a compreensão
de que o enfermo vive em um mundo diferente, levada a cabo por Jaspers,
sobretudo, fez com que os psicopatólogos buscassem, primeiro, compreender o
fenômeno mórbido, e depois explicá-lo. Quer dizer, estudar a vivência objetiva
subjetiva do enfermo para dar-lhe uma explicação objetiva pautada nas
descrições observadas da vivência.
Assim, a metodologia fenomenológica
— malgrado parta de um arremedo da noção de solidariedade orgânica, algo como
uma unidade dinâmica do psiquismo, donde uma indissolubilidade do fenômeno da
consciência — divide o aparelho psíquico em inúmeras funções, mais ou menos
arbitrárias, e, após, procede pela descrição dos fenômenos mais básicos, de
suas características psicopatológicas determinadas em função da alteração das
funções psíquicas elementares; disto decorre uma analítica do valor semiológico
dos fenômenos, com uma fisiopatologia quando possível. A doença queda definida,
mesmo que de maneira tácita, como uma alteração funcional.
Em português claro: trata-se de uma
análise psicológica das funções, das quais se determina uma operacionalidade
psíquica normal ou saudável. A partir deste, descrevem-se
as alterações na racionalidade deste funcionamento, fenômenos que somente podem
ter, assim, um caráter patológico. Quando estes fenômenos determinam alterações
de cunho bio-quimíco, descreve-se sua fisio-patologia. E, após, arrola-se a
ligação destes fenômenos com as distintas afecções, tomadas como espécies, em
uma casuística da morbidez: como se, à visão de listras, concluíssemos que
somente pode se tratar ou de um tigre ou de uma zebra.
Estudo de caso: a psicopatologia do juízo
Em seu Curso de psicopatologia, I. Paim divide o conjunto do psiquismo
humano em algumas funções: percepção, representação, conceitos, juízos,
raciocínio, memória, atenção, orientação, afetividade, atividade voluntária,
linguagem e consciência. Esta última é como que o fio condutor de todas as
demais ciências, unificando-lhes. Diante de cada uma das funções, faz as
determinações necessárias e procede como descrevemos.
Vejamos um exemplo:
AS ALTERAÇÕES
NOS JUÍZOS:
Para elaborar a psicopatologia dos juízos, Paim parte da abordagem lógica
— aristotélica, devemos dizer — do juízo, entendido em seu aspecto formal
enquanto afirmação ou negação de uma relação entre dois conceitos, sendo sua
peculiaridade o fato de asseverar, de enunciar. Sujeito: de quem se afirma. Predicado:
aquilo que se afirma do sujeito. Os termos,
expressão lógica de conceitos, são ligados por meio de um termo cópula que estabelece, pois, a relação
entre sujeito e predicado. A forma do
juízo na linguagem é a proposição,
enquanto que a palavra é a expressão
dos conceitos. Hegel, segundo Paim, apontaria que a principal contradição do
juízo é fato de nele o singular ter de ser geral ou reduzível à generalidade;
esta contradição mostra o caráter dialético do juízo, nele unidos o
contraditório e o diferente por meio de um ato noético vinculador. Um juízo
expressa a verdade ou o erro conforme sua correspondência na prática, sendo
este seu único critério de verdade: consonância com a realidade.
Na psicopatologia dos juízos, Paim
inclui os delírios, tratado de praxe como formas de alteração do conteúdo do
pensamento. Para ele, nos casos de delírios esquizofrênicos os juízos se formam
sem ter uma pedra de toque empírica, isto é, sem balizamento na realidade
referindo-se a sujeitos ou predicados inexistentes; contudo, afora isto, o pensamento
funciona de maneira normal. Por isso ele considera delírio como integrante da
patologia dos juízos.
Além disso, por muito tempo os
delírios eram nomeados, de forma equivocada, sempre segundo Paim, de idéias
delirantes e, deste modo concebido pelos clássicos, eram definidos como um erro
incapaz de ser corrigido — concepção impossível de ser sustentada hoje em dia.
Salientamos que para nós o delírio é uma alteração na formação dos juízos, não
das idéias, dos conceitos ou das representações, que Paim considera como
funções de outra ordem. Um delírio é uma alteração profunda da consciência, que
leva ao proferimento de juízos falsos; se desenvolve em condições patológicas
pré-existentes.
CLASSIFICAÇÃO
DOS DELÍRIOS
De acordo com Paim, Jaspers
considerava o delírio como um estado no qual os juízos são enunciados com
certeza inabalável, mesmo pela experiência ou pela lógica muito embora seu
conteúdo e modo de formação sejam falsos. Quando sua causa é compreensível,
chamam-se idéias deliróides; quando
as causas são primárias, incompreensíveis, chamamos idéias delirantes verdadeiras. K. Schneider conta três modalidades
de delírio:
1. Percepção delirante: atribuição
aleatória e arbitrária de uma significação anormal a uma percepção normal; a
significação exótica é experimentada como imposição exterior, mas que permite
acesso a uma realidade superior incompreensível para outrem. A percepção é
alterada dada a vivência delirante, que resulta em perturbação do pensamento,
de modo que o objeto percebido adquire significações inusitadas e insólitas, em
geral autorreferentes. Trata-se, pois, de transtorno no ato de integração
significativa, deformação que ao invés das intenções estarem nos sujeitos, elas
tornam-se parte dos próprios objetos: as significações dadas por estes passam a
subjugar toda a existência da pessoa.
As percepções delirantes geralmente indicam psicose esquizofrênica. Há
três posições: para alguns, elas instauram uma nova vivência; para outros são
alterações do juízo (Jaspers) e para outros ainda são alterações do pensamento
(K. Scheneider). Há ainda outras concepções: para C. Del Pino, sendo a percepção delirante a atribuição de
significações caprichosas a fenômenos, ela é, então, patologia da significação;
na pegada da analítica existencial, Kunz defende que a chave primária da
percepção delirante é a completa transformação do ser-no-mundo[22].
2. Ocorrência delirante: trata-se
de um fenômeno onde a crença delirante é puramente subjetiva e a significação
anormal é indistinguível do enfermo. De difícil diagnóstico, tem pouca
importância nestes termos embora revele a natureza da psicose do enfermo. Seu
conteúdo em geral refere-se à política, religião ou qualidade especial,
colocando o paciente em uma posição distinta das demais, como rei ou imperador.
Weitbrecht[23] alerta que
a ocorrência delirante nunca tem lugar isoladamente,o que marca-lhe posição no
diagnóstico; além disso, sempre acompanham psicoses endógenas e somáticas.
3. Reação deliróide: O estado
de ânimo do enfermo é a raiz que dá sentido às alterações de significação e de
referência. A partir de sentimentos de angústia e desconfiança, bem como de
distimia, desenvolvem-se reações deliróides, cujo tema geralmente é secundário,
embora valiosos para a Psicopatologia Forense.
TIPOS DE DELÍRIO
GENUÍNO
Delírio
de perseguição: Seu início é bastante variável conforme a casuística,
embora sempre marcado pelo sentimento de certeza absoluta. Seu início pode ser
súbito, originado em um ato considerado singular, ou, quando não, desenvolve-se
a partir de um estado de inquietação interna; nomeado humor delirante, ele é marcado por desconfiança excessiva de todos
e um comportamento demasiadamente crítico e áspero, donde brotarão os delírios
como certezas irremovíveis. Quando completamente maturado, todos poderão fazer
parte da conspiração, inclusive o médico.
Delírio de revelação: todos os
fatos externos, inclusive os menores, passam a ter relação com a pessoa do
doente. O conteúdo do delírio geralmente negativo e tem relação com a vivência
psíquica do enfermo antes da emergência da afecção.
Delírio de influência: o
paciente sente influenciado por ondas, telepatia, radiações, choques, etc., que
advêm de máquinas ou aparatos inventados por seus inimigos para controlá-lo ou
machucá-lo. Em alguns casos, assume a forma do envenenamento, percebido nos alimentos, o que pode levar a sua
recusa. Geralmente este delírio é prodrômico[24]
de alteração grave da personalidade.
Delírio de ciúme: Manifesta-se
em esquizofrênicos paranóides geralmente com grande valor do ponto de vista
médico. Se manifesta-se sob a forma conjugal, todos passam a fazer parte de uma
conspiração onde o cônjuge o trai com diversas pessoas;e m casos extremos
pode-se desenvolver rumo a um delírio de envenenamento; em outros, termina em
homicídio ou uxoricídio (assassinato da mulher pelo marido).
Delírio de grandeza: Pode
assumir várias formas de acordo com o contexto sócio-histórico do paciente,
como riqueza, poder, eróticos, fisiológicos, etc. Quando ambicioso, o delírio assume a forma de exagero da própria
personalidade com respectivos exageros comportamentais. Quando de invenção, o delírio faz o doente crer
que descobriu maravilhas científicas de ordens distintas — é forma rara de
delírio. Se de reforma, o delírio
constitui variação daquele de grande, tomando conotações sócio-políticas;
distingue-se militantes normais daqueles delirantes por três características,
quais sejam: crença na originalidade, ilogismo, ausência de senso para
propagá-las. A forma erótica manifesta-se
sob forma de paixão — sexual ou platônica — normalmente por celebridades.
FISIOPATOLOGIA
DOS DELÍRIOS
Paim refere-se à Pavlov para considerar que a retenção dos
processos excitatórios no córtex cerebral[25]
desencadeia o desenvolvimento dos delírios pela diminuição da capacidade crítica
no enfermo. Essa retenção pode advir tanto do meio como de estados patológicos
cenestésicos[26]
VALOR
SEMIOLÓGICO
Em relação ao valor semiológico,
Paim defende que o mais importante nos fenômenos de delírio é o fato de
servirem como índice de uma agressão profunda na personalidade, geralmente
processos de alterações esquizofrênicos, senis ou advindos de intoxicações. As
psicoses sintomáticas, maníaco-depressivas e psicopáticas são terreno fértil
exclusivo para as idéias deliróides.
Com isto, exposta a psicologia do
delírio, suas alterações patológica, sua fisiopatologia e seu valor
semiológico, mostramos o proceder elementar da psicopatologia. Poderíamos
mostrar de todas as funções — mas de nada nos serviriam para entender não cada
menor parte, mas a racionalidade por meio da qual opera a psiquiatria.
Conclusões parciais
Esta síntese da psiquiatria e de
seus métodos há de nos servir para nossa exposição histórica. A elaboramos a
partir de textos médico-psiquiátricos a fim de permitir que, conforme nosso
olhar deslize pelo jaleco dos dottores,
tenhamos claro a história que os marca, o pensamento que o define e a prática
que empreendem
A psiquiatria, em termos gerais,
ciência que leva os traços marca da sociedade que a criou, não pode escapar
desta. Veremos que em sua busca por se tornar ciência médica, tomou o caminho
mais curto, a reta. Se reconhecia a proposição de Euclides, contudo lhe faltava
as ferramentas próprias para cultivar o terreno que se propunha e, ao mesmo
tempo, de acordo com as teses de Foucault, que já veremos, incorria em um erro
epistêmico fundamental.
Assim, tal
qual a medicina obtinha da fisiologia o substrato próprio para a ação do
médico, também a psiquiatria quis que a psicologia, tornada ciência a partir
dos trabalhos de Wundt — germânico,
lembrem-se —, lhe proporcionasse a fisiologia da alma — com instrumentos que a
psicologia nunca contou. Assim como Bichat deu as bases da anatomopatologia,
também a psiquiatria quis uma psicopatologia, um manual das morbidades mentais
que servissem como a bússola para a aplicação de sua terapêutica de
efetividade, eficácia e procedências duvidosas.
Esta
trajetória, que em nada deve à Comte, é trajetória de um corpo de discursos em
busca de sua cientificidade, assim como os cristãos fundaram a teologia para
refutar sua falta de fé. Ou, senão, e talvez também, de uma pseudo-ciência
buscando a capa do saber cientifico para fundamentar seus próprios desígnios,
justificar suas relações de poder — base de todo saber, conforme vimos.
Sem perceber,
o que lhes era impossível, sem saber sua própria história e seus próprios
fundamentos; sem dar em si das relações de poder que lhes permitiam, a
psiquiatria passou por todo seu período de ouro atrás de um substrato tão firme
que lhes colocasse no primeiro plano da saúde pública e parte integrante da
higiene pública. Se é fato que a “a psiquiatria manobrou para ser reconhecida
como parte da higiene pública” (FOUCAULT, 2007c, p. 255), não é menos concreto
que somente pôde ser o que pretendia quando reconheceu seus fundamentos
históricos, quer dizer, sua dupla base moral e política: é Morel[27],
na fronteira entre a médécin mentale
francesa e a psychiatrie alemã, que
permitirá isto, animando novas questões e dando o leit motif de Hoffmann e Pereira Passos.
Pretendemos,
pois, a partir desta breve exposição sobre os rudimentos da psiquiatria de
hoje, mostrar as condições de surgimento desta — antes da aparição da própria
noção de psiquiatria e de doença mental —, seu desenvolvimento em seus maiores
autores e praticadores, sobretudo até que um jovem neurologista de Viena
propusesse um modo de superar as problemáticas postas rumo a uma nova ciência,
uma nova psicopatologia...
4.3. A história da psiquiatria (para os
psiquiatras)
“O alienado mais violento e mais temível se tornou, por vias
suaves e conciliatórias, o homem mais dócil e digno de interesse por uma sensibilidade
tocante.”
Philippe Pinel
Tratado médico-filosófico
sobre a alienação mental
Se F. Nietzsche tivesse tido a
oportunidade de ler a forma como os psiquiatras fazem a história de sua própria
disciplina, sem dúvida não saberia distingui-los dos ingleses, estes que gostam
da suave história azul do Mesmo, da semente plantada na aurora dos dias que se
desenvolveu até o estalar de nossas horas.
Para os psiquiatras (cf ALEXANDER,
SELESNICK, 1966; GRANDINO, NOGUEIRA, 1985; CAMPAILLA, 1982; PAIM, 1977) sua
ciência possui um objeto positivo. A loucura é um fato do mundo e acompanha o
homem desde que este surgiu no planeta. A doença mental e os loucos, os
enfermos, os alienados, enfim, estavam ali expostos ao nível cultural e
cientifico das distintas civilizações, e, assim, tinham o tratamento adequado à
evolução do saber em sua época. Dependendo dos dias de seu nascimento, o louco
poderia ser desde uma divindade a objeto de profunda repulsa; podia ser tratado
com as honras do Cristo redivivo que retorna ao mundo da carne ou exposto às
sevícias mais horripilantes para nossa sensibilidade contemporânea.
Os doentes mentais, dizem os psiquiatras, tiveram de aguardar a
psiquiatria surgir, quer dizer, a ciência avançar em seus conhecimentos
objetivos sobre as coisas para, só então, serem compreendidos e poderem
vislumbrar as possibilidades do cessar de seu sofrimento através de
diagnósticos e terapêuticas.
Este positivismo, esta teleologia historiográfica dos psiquiatras alcança
tamanha proporção que, segundo eles,
“Três
tendências básicas no pensamento psiquiátrico podem ser traçadas até os tempos
mais antigos: a tentativa de explicar as doenças da mente em termos físicos,
isto é, o método orgânico; a tentativa de encontrar explicação psicológica para
as enfermidades mentais; e a tentativa de lidar com acontecimentos
inexplicáveis por meio de magia” (ALEXANDER, SELESNICK, 1966, p. 28)
Os mais astutos facilmente poderão
deduzir o restante: a abordagem mágica seria como que a pré-história da
psiquiatria, ainda imberbe e insuficiente em termos de recursos descritivos,
analíticos e conceituais adequados para dar conta da complexidade do fato
mórbido-mental. Pautados no embotamento de pensamento que lhes é próprio, os
primitivos buscariam respostas divinas ou anímicas para compreender a doença
mental, e, naturalmente, também os processos de cura seriam pautadas no mesmo
primitivismo de cunho tribal, com métodos de sugestão utilizados sobremaneira
pelos feiticeiros, oráculos e afins.
Aos poucos, contudo,
teria o homem através de uma fina observação do meio, passado a compreender a
regularidade dos fenômenos naturais e, assim, descrevê-los em termos racionais,
embora pré-científicos: o corpo emergia como uma realidade físico-química para
os gregos, helenos e romanos. Este desenvolvimento foi atrasado pelas trevas
medievais e a ressurreição das já ultrapassadas “tendências demonológicas e
religioso-mágicas” (ALEXANDER, SELESNICK, 1966, p. 32), somente combatidas no
Renascimento, onde se principia a última fase deste processo suave que
desemboca na moderna ciência e na moderna medicina, a de X. Bichat, C. Bernard
e A. Fleming. A psiquiatria, enquanto especialidade médica, obviamente fez
parte desde processo de amadurecimento, desde o xamã de aldeia aos modernos dottores
com todo seu aparato técnico. Quer dizer, o método racionalista-moderno, físico
enfim, de descrição e compreensão do mundo seria plenamente utilizável em
psiquiatria, sendo o método orgânico sua forma psiquiátrica contemporânea.
Do mesmo modo, o método
psicológico de diagnóstico e terapêutica também já estava embrionário desde os
despertares da civilização. Se os primeiros homens descreviam as formas de
sofrimento mental em termos de espírito maus que atormentavam o pobre enfermo,
teve-se de esperar até Hipócrates — do qual falaremos um tanto — para que a
epilepsia perdesse seu caráter divino e se tornasse mais uma moléstia, embora
de cunho orgânico. Somente Cícero, na Antiguidade, teria reconhecido seu
caráter psicológico, tendo ele, inclusive lançado os alicerces da psicoterapia!
Neste redemoinho de precursores, Sto Agostinho torna-se o maior psicólogo até
Freud, Montaigne, Maquiavel, Boccacio e Rabelais aparecem como os descritores
da psique enquanto realidade do homem. Todos eles, psicólogos; todos
eles, predecessores da psiquiatria moderna.
*
Embora o termo doença mental seja contemporâneo, sempre se reconheceram,
dizem os psiquiatras, este mesmo fenômeno, o do distúrbio mental. Malgrado as
distintas interpretações do fenômeno, o reconhecimento das perturbações mentais
é universal, constando desde em civilizações paleolíticas até os incas,
passando pelos egípicios, chineses, judeus. Hipócrates (460-375 a.C.) criou uma
classificação dos distúrbios mentais; no sec. I, o romano Celso faz constar em
sua enciclopédia médica os distúrbios mentais. Durante a Id. Média,
distinguiu-se entre loucura natural e loucura fruto do pecado. No Renascimento,
alguns elogiavam e outros tratavam a loucura como bruxaria.
Juntamente à desdivinização do homem
empreendida pelos naturalistas no séc. XVIII, situando o homem junto aos demais
animais, passa-se a pensar seu comportamento não em termos divinos, donde o conceito
de doença mental pode ser expresso como patologia da liberdade. O francês Pinel
destaca-se neste contexto, ao libertar os loucos das masmorras, providenciando,
por um lado, higiene, alimentação e desenvolvimento das qualidades morais; por
outro, vale-se dos métodos naturalistas de classificação para elaborar uma
nosografia das doenças mentais, divididas em conjuntos de sintomas. Com Pinel,
teria iniciado a humanização do tratamento da loucura.
Contudo, a nosografia pineliana era
confusa e ineficaz. A partir de estudos biológicos operou-se, contudo, uma nova
abordagem dos fenômenos patológicos. Em 1822, Bayle individualizou a paralisia
geral ao mostrar que as origem era devida a inflamação da aracnóide,uma das
glândulas que revestem o cérebro. Em 1879 Fournier liga a paralisa geral
progressiva com a sífilis.
A partir disto, os psiquiatras passaram a buscar as causas específicas de
outras doenças. Emil Kraepelin (1856-1926) elaborou durante 20 anos a base da
nosografia psiquiátrica a partir do conceito de unidade nosológica, ao qual se vincula uma doença com causas,
sintomatologia, desenvolvimento e anatomopatologia equivalente. Kraepelin
agrupou a psicose maníaco-depressiva, a demência precoce (e suas três formas
clínicas: paranóide, hebefrênica[28]
e catatônica[29]) e
esclareceu o campo teórico-prático de atuação do psiquiatra, definindo seu
objeto, marcando a importância das classificações para uma disciplina
científica e permitindo à união do saber clínico com o de demais áreas e
disciplinas. Tratado de psiquiatria,
1909, E. Kraepelin: “A psiquiatria é o estudo das doenças mentais e seu
tratamento (...) [ela é] o conhecimento científico da natureza das doenças
mentais” (apud GRANDINO, NOGUEIRA, 1985, p. 66). Kraepelin leva as últimas
conseqüências a posição biologista, que busca o fundamento biológico da doença,
e analisá-la de maneira causal. Sem dúvida, pois, podemos chamar sua
psiquiatria de positivista.
Dentre
os fatores que fizeram fracassar a classificação de Kraepelin conta-se a
crítica de Jaspers a ele. Na Psicopatologia
geral (1913), K.Jaspers aponta que a noção de unidade nosológica demanda um
amplo leque de conhecimentos então indisponíveis. Em 1907, Bonhoeffer mostrou
como Kraepelin errou ao catalogar duas doenças com causas distintas, que concordavam
em todo o restante. Bleuler, em 1911, se propõe a rever o conceito de demência
precoce utilizado por Kraepelin; para ele a alteração mental não é
quantitativa, mas qualitativa, com um reordenamento das funções; ressaltou as
diferenças de evolução entre distintos doentes; além disso,privilegiou, no
diagnostico,a sintomatologia ao invés de critérios clinicoevolutivos.
Além destes, as propostas de Freud e
do existencialismo[30]
fizeram tremer o conceito de unidade nosológica. A teoria da psicose unitária
(há uma doença mental com inúmeras formas de apresentação), as propostas de
Hoche (a noção de síndrome, com origem especificada pelos sintomas mutáveis) e
os que continuaram classificando, deram a tônica da psiquiatria no período.
Contudo, pode-se dizer que a
psiquiatria organizou-se, depois, em torno da noção de síndrome e de seus
grupos: exógenas, originárias de
lesões demonstráveis, doenças somáticas e intoxicações; endógenas, cujo diagnóstico é puramente psicopatológico,
baseando-se tanto nos sintomas como na reação do pacientes, conta-se a
esquizofrenia e a psicose maníaco depressiva aqui; e psicogênicas¸ grupo grande, que inclui todas as patologias
dependentes de vivências e somente compreensíveis a partir da forma como o
sujeito organiza sua própria vida.
Há dois tipos de tratamento das
doenças mentais: os psicoterapêuticos (talking
cure, etc.) e os biológicos; estes buscam corrigir problemas metabólicos e
neurofisiológicos por meio de remédios, tratamento de choque, etc. Freud é um
dos fundadores da psicoterapia, através da psicanálise, principal corrente
desta modalidade. Ligada diretamente ao tratamento das histéricas, Freud as
estudara juntamente com Charcot. Aprendeu os benefícios e os malefícios da
hipnose como técnica terapêutica, logo substituída pelo método da associação
livre; este permite a vinda à tona de atos psíquicos reprimidos, revelando,
pois, a existência do inconsciente, mérito da psicologia freudiana; estes atos
terminam por retornar sob a forma de sonhos, sintomas e atos falhos. Outro
pilar da teoria freudiana é a da sexualidade, sob suas diversas formas.
Jung
e L. Binswanger, próximos a Freud, deram outro rumo as suas teorias, com
Binswanger aproximando-a do existencialismo de Heidegger. Outros buscaram as
causas orgânicas das moléstias bem como tratamentos: o choque insulínico de
Sakel, o eletrochoque de Cerletti e Bini, ambos visando reequilibrar o
funcionamento do organismo por meio do choque[31].
Além disso, os farmacopsicotrópicos também passaram a ser utilizados (P. Chapontier,
1950, clorpromazina, anestésico): remédios que atuam na bioquímica cerebral.
Na década de 1960, quando a
psiquiatria de fato encorpa-se enquanto disciplina médico-científica não
especulativa surgem as críticas mais severas.
Em 1961 são lançados História da
loucura e O mito da doença mental[32],
de Foucault e Szasz, que questionam a psiquiatria e o conceito de doença
mental. Laing, Cooper, Basaglia, Castel, dentre outros, também partem para o
ataque. Laing e Cooper defendiam a inexistência da esquizofrenia, sobretudo
considerando-a uma viagem interior à uma realidade mais ampla; o tratamento é
visto como tortura a serviço da ordem burguesa. Basaglia[33]
propõe a união entre doentes mentais e grupos revolucionários, devendo a
terapêutica ser realizada pela comunidade. Alguns dentre eles tentaram por em
prática suas teorias, a maior parte, contudo, fracassando.
*
Algumas notas historiográficas antes de debatermos as contestações
propriamente psicológicas de Foucault a estas teses comuns na psiquiatria. A forma
como os historiadores da ciência tradicionais tocam seu trabalho foi inúmeras
vezes comentada por Foucault. Não há de se estranhar, portanto, que nossa
orientação na elaboração deste trabalho seja eqüidistante da de nossos
historiadores da psiquiatria, sejam os descritos acima, sejam todos aqueles os
quais lançaremos mãos neste texto.
Também não deve causar espanto que
os psiquiatras busquem em grandes pensadores do Ocidente o tenro broto de sua
disciplina. Quando expõe os motivos pelos quais quis estudar a psiquiatria,
parece-nos que o próprio Foucault aponta uma das causas desta identificação tão
bem apreciada pelos psiquiatras: não será porque (...) “o perfil epistemológico
da psiquiatria é pouco definido, e porque a prática psiquiátrica está ligada a
uma série de instituições, de exigências econômicas imediatas e de urgências
políticas de regulamentações sociais?” (FOUCAULT, 2007c, p. 1). Quer dizer, uma ciência tão frágil e tão
contestável diante da analítica histórica tem de se agarrar em algo um tanto
mais fixo para se manter científica.
Já expusemos as teses historiográficas de Foucault, e que
cotejadas com o modo como os psiquiatras escrevem seu destino progresso, não
deixa dúvidas do caráter da disciplina.
Portanto, antes de sermos contra ou a favor da psiquiatria, somos
contrários aos métodos que nossas fontes utilizam para traçar a história de sua
própria disciplina. Afinal, como considerar que se trata da mesma ciência
quando seu objeto é distinto, pois as formas de apreendê-lo, quer dizer,
conceituá-lo, opõe-se tanto? A título de exemplo, basta citarmos que para
Hipócrates (460-377 a.C.) a histeria era causada pelo desprendimento do útero
da bacia; em compensações, já no séc. XIX, Charcot dirá que “dans ces cas
pareils, c’est toujours la chose génitale, toujours, toujours”[34].Trata-se,
pois, de uma mesma medicina, que amadurece com o tempo, ou de medicinas
distintas, uma sucessão de racionalidades estranhas entre si, com formas
epistêmicas completamente opostas de apreender as coisas?
5. Fundamentos da crítica de Foucault
Doença Mental e psicologia ocupa um papel importante em nossa
reflexão. Obra de um Foucault ainda influenciado pelo marxismo e pela analítica
existencial de cunho fenomenológico-heideggeriano de L. Binswanger, e sem método
próprio; neste texto encontramos uma problematização profunda das patologias
mental e orgânica[35]
e a saída diagonal de Foucault ao problema.
Na análise foucaultiana, o pensamento psicológico do século de XIX
pautara-se na identificação do que é a doença mental e de qual sua
relação com a patologia orgânica.
Para Foucault, a patologia mental foi então abordada com os mesmos métodos e
critérios daqueles das doenças orgânicas, quer dizer, a psiquiatria e
psicologias do século XX agiam como se houvesse uma metapatologia, uma doença
existente enquanto ser abstrato, que se manifesta em patologias mentais e
orgânicas
Assim, as duas patologias
moveram-se no sentido de fundamentar uma essência da doença: estabelecer uma
etiologia a partir da sintomatologia obtida na observação clínicas; estas duas
devem fundamentar uma nosografia que, por sua vez, dê os subsídios para o
estabelecimento da terapêutica. Ou seja, a doença série uma espécie, algo que
existe organicamente e independentemente dos critérios de avaliação, cabendo ao
psiquiatria, tanto quanto ao médico — sendo a medicina e a psiquiatria as duas
faces do mesmo Janus —, sua descrição tal qual o faria um historiador natural
ou um biólogo. Podemos dizer, sem dúvida, que se tratava de aplicar o more botanico inventado pelos
naturalistas das Luzes ao campo da doença mental.
Foucault nos descreve, contudo, outro momento da
psiquiatria: a doença passa a ser entendida como desorganização em uma
maturação do individuo; como se a personalidade desenvolve-se rumo a uma
finalização totalizante e a doença fosse a grande interrupção, a pedra que
cerra o caminho do desenvolvimento, forçando a abertura de um novo caminho,
aquele da morbidez. Assim, desenvolve a clássica distinção entre neurose e
psicose. Sendo a doença desorganização de uma personalidade dada, há de se
fazer uma distinção qualitativa do grau de alteração da personalidade; serão
neuroses todas aquelas patologias que alterarem uma faculdade do aparelho
psíquico, mantendo as demais intactas; ao mesmo tempo, serão consideradas
psicoses as doenças mentais que mudarem o conjunto da personalidade tornada
mórbida.
*
Malgrado esta diferença entre os dois procedimentos
psicopatológicos presentes no século XIX — uma psicopatologia unificadora e uma
psicopatologia da personalidade — , a psicologia de então tinha como base que a
doença desagrega as funções mentais e “suprime as funções complexas, estáveis e
voluntárias, exaltando as funções simples, instáveis e automáticas” (FOUCAULT,
1975, p. 25) como se doença desencadeasse um estado de retorno ao passado
individual, fazendo com que determinadas faculdades se percam ou se
desorganizem e que funções inteiras da psique se transformem. Mesmo
Freud tomava que a neurose é uma forma de regressão a um nível de estruturação
libidinal ultrapassado.
A análise de Foucault segue adiante, interpelando a
psicologias evolucionistas de Janet[36]
e de J. H. Jackson[37]
e questionando-as por meio da psicopatologia fenomenológica de Biswanger[38]
e de Jaspers[39]. A partir
destes dois autores — particularmente Binswanger, leitor atento de Heidegger —
Foucault elaborará uma tese bastante interessante para nós: para que assome
como possibilidade algo como uma medicina mental — se ela for possível — ela
deve se pautar em uma compreensão histórica das relações entre homem louco e
homem normal. Para nós isto equivale a dizer que a base da psicopatologia, ou, melhor, da psiquiatria, não pode ser reduzida a
uma dicotomia ou psicológica ou orgânica, tal como querem nossos
historiadores da psiquiatria. Para nós, a tese de Foucault neste texto, e que
ele desenvolverá em História da Loucura,
e em toda sua obra, conforme veremos, toma que a base da psiquiatria é
histórica e variável de acordo com distintas culturas.
A partir disto, nosso objetivo neste trabalho é acompanhar:
1º a formação das bases para uma apropriação médica da loucura; e 2º os
desenvolvimentos da medicina mental e da psiquiatria — que são distintas, ao
menos no século XIX, já veremos porque — no século retrasado.
Para tanto, lançaremos mão da obra magna de Foucault
sobre o tema, a História da loucura,
especialmente para o primeiro objetivo; mas também, vez ou outra, de seus
principais textos genealógicos sobre o tema, quais sejam Poder Psiquiátrico e Os
anormais. Ao mesmo tempo, contudo, tentamos ser rigorosamente fieis ao
próprio pensamento de Foucault; afinal, como os psiquiatras pensavam sua
ciência e como ainda hoje fazem esta história de si mesmos e de seu saber? Ou
seja, lançamos mão da leitura de textos psiquiátricos e de historiadores da psiquiatria,
na tentativa de entender melhor esta disciplina e suas escaramuças
metodológicas e teóricas.
6. A formação do mundo psiquiátrico
Proveniência do internamento
Na História da Loucura na Idade Clássica[40]
Foucault trata de nos descrever como a loucura, que até então tinha uma vida
ativa e livre no imaginário e cotidiano da Europa, foi, aos poucos, apreendida
por uma consciência médica até redundar na formação da médécin mentale inaugurada por Pinel.
Na Alta Idade Média organizou-se na Europa toda uma rede de leprosários,
destinados a receber, enquanto espaços de exclusão, a encarnação do mal, os
lázaros do continente. Quando Luis VIII regulamenta os leprosários no século
XIII, eles já são mais de 2000 em toda a França. Contudo, a partir do século XV
os leprosários esvaziam-se — com o fim das Cruzadas, rareiam as fontes de
contágio —, embora a função que ocupavam permanecerá, mas agora assumida por
outras figuras.
As maladrièries passam a
receber pobres, desnutridos, mendigos e soldados estropiados. Se desde o século
XVI a monarquia busca reorganizar as maladrièries,
em 1672 e em 1693-5, o rei terminará por unificar todos os estabelecimentos
hospitalares (maladrièries,
instituições assistenciais e hospitais) sob um só regulamento e controle.
Em dois séculos, pois, a até então central lepra regredirá, bem como os
leprosários em toda a Europa. Vários motivos e nenhum é médico. Contudo, a
função do leproso continua: sinal da fúria e da salvação de deus, o leproso é o
instrumento divino na luta pela purgação dos pecados, em um movimento que
unifica exclusão social nos leprosários e reintegração espiritual com os
desígnios da divindidade. Em um primeiro momento, serão as doenças venéreas que
ameaçaram ocupar o lugar da lepra, mas o baixo número de infectados e a
existência de terapêuticas — a utilização do azougue, por exemplo — farão com que seja a loucura que ocupe este
espaço. O louco, contudo, não era figura nova, estando presente desde antes da
Idade Média como figura central.
Na Renascença havia a figura da Nave dos Loucos, Narrenschaft. Se,
por um lado é uma figura artística, por outro é real: navios que carregavam os
loucos de uma cidade a outra, malgrado as leis locais e os distintos
procedimentos já existentes, bem como a existência de espaços reservados aos
loucos nos hospitais. Se é verdade que a Nave expulsa os loucos, livrando a
cidade de mantê-los ou de lidar com eles; ao mesmo tempo, a Narrenschaft
tem forte caráter simbólico. Estar na Nave significa que o louco é prisioneiro
de seu destino; se é a água que trará e levará os loucos para os distintos
lugares de peregrinação e contraperegrinação, ao mesmo tempo, a água purifica. O louco é aquele que está
preso na liberdade de vagar, prisioneiro da viagem. Enfim, o louco é, na Idade
Médica, "posto no interior do exterior" (FOUCAULT, 1972, p. 22)
Ao final da Idade Média, o louco tornar-se uma figura maior e ambígua:
"ameaça e derrisão, vertiginosa desrazão do mundo, e mince ridícula dos homens" (FOUCAULT, 1972, p. 24). Se na
crítica o louco é denunciado, na arte ele detém a verdade. A loucura é o vício
do qual ninguém escapa. Dubiedade que não deixa dúvidas: é o tempo de Erasmo,
mas também de Bosch.
A loucura ocupa, nesse sentido, o papel outrora ocupado pela morte na
mentalidade medieval da Europa: peso de vida embora destino do homem. É a
loucura que ocupará o lugar ambíguo da morte, ou seja, do vazio existencial. O
louco é aquele que não se preocupa com a morte, desarmando-a: a invasão da
loucura é outro sinal do fim das eras.
O aparecimento da loucura no final da renascença marca o fim das formas
góticas de simbolismo. As coisas, sobrecarregadas de sentimento perdem a sua
unidade e sua imediaticidade, escancarando o vazio entre o saber e a forma. A
loucura, em imagens e sentidos, vem ocupar este vácuo: o louco vaga entre o
animal e a coisa, o sonho e o pesadelo. O mundo sobrecarregado de sentidos faz
com que o saber pare de ensinar, dando lugar à fascinação, ao imaginário, ao
sonho e à loucura, que são mais atraentes que o mundo duro da carne.
Com a Renascença a animalidade, até então presa no simbolismo cristão do Nome dado por Adão, transborda,
fascinando justamente por escapar ao homem, sendo, pois, símbolo da loucura.
Este saber esotérico é próprio do louco que, com sua ingenuidade vence, para
Dürer[41],
tanto deus como o diabo. No louco, o homem vê seu destino nas profundezas do
inferno.
Na literatura filosófica e moral, há outro espaço da loucura. Na Idade
Média, a loucura é um vício, uma das doze dualidades da alma humana, oposta à
prudência. Na Renascença, a loucura é o próprio vício, tendo inúmeras
expressões, todas elas ligadas a fraqueza, a soberba e a ignorância humana.
"A loucura não tem somente caso com a verdade e o mundo que tem com o
homem e verdade dele mesmo, que ele sabe perceber” (FOUCAULT, 1972, p. 36). A
loucura diz de uma conduta, ou seja, é moral. Como o vício é a irregularidade
da conduta, a loucura é pecado
Dupla experiência da loucura: uma trágica, que a experimenta com um
fascínio cósmico; outra, crítica que a observa como vício moral. Se é verdade
que houve trocas entre estas duas posições, com o tempo elas dividirão a
experiência até então unitária da loucura. O humanismo, ao situar a loucura
como moral, diz que ela dirige a conduta dos homens: a loucura se opõe à
verdade e ao essencial. Ao final da Renascença, ao final do século XVI,
contudo, haverá somente uma experiência da loucura: como vicio, erro que
sucumbe no confronto com a verdade.
A consciência crítica da loucura passa medi-la em relação à
razão. A loucura é identificada com a imediaticidade e aparência das coisas, em
contraposição a sua essência; a ordem dos homens, imperfeita e efêmera, contra
a essencialidade de deus e da verdade eterna das coisas: ‘medida à verdade das
essências e de deus, toda ordem humana não é senão loucura" (FOUCAULT,
1972, p. 42).
A razão do homem é louca
perto daquela divina, mas esta não abandona o homem: está nele, e deus se
comunica com os homens desta forma; ou seja, a loucura não tem existência
positiva, mas relacional à razão de deus.
Reinscrita como figura da razão, a loucura logo se vê capturada. Ela
torna-se ensejo da afirmação da razão. Não sendo mais trágica, a loucura
torna-se alvo da crítica: ela é o erro e a ilusão: "ela [a loucura] toma o
falso pelo verdadeiro; a morte pela vida; o homem pela mulher, o amoroso por
L'Erynnye e a vítima por Minos" (FOUCAULT, 1972, p. 51); assim, a loucura
revela a verdade, pois ela é sempre ilusão.
Como a Idade Clássica prende a loucura na razão, também a Nave tomará
outra forma: a do Hospital dos Loucos. Lá, a desordem tomará ordem. Novas
exigências formulam-se e os loucos as saberão na pele.
Se a Renascença controlou a loucura pela repressão, a Idade Clássica a
controlará pelo mutismo. Para Montaigne a loucura é sempre a dúvida que paira
sobre qualquer um, Para Descartes, a loucura é a impossibilidade de pensamento;
duvidar da própria sanidade é índice de racionalidade, i. é, a certeza da
existência de si, o cogito implica não-loucura.
Emergência do internamento
Extravasando o campo teorético, a Idade Clássica cria casas de
internamento para os desrazoáveis: na França, o instrumento das lettres de
cachet[42];
na Inglaterra, as workhouses; na região que se tornaria a Alemanha, as Zuchthäusen.
Quando a psiquiatria se formar, o louco já estará internado, pois foi por meio
do internamento que a Idade Clássica experimentou a loucura, fazendo com que
esta desaparecesse da cultura européia.
Em 1656 o Rei Sol, Luis XIV, cria o Hôpital Général, em Paris,
como parte de uma reforma de diversas instituições. Apesar do nome, o Hôpital
não é uma instituição médica; administrado por um gérant, é de sua
competência assistir os pobres, inválidos, mendigos, doentes e alienados de
Paris.
“Soberania quase
absoluta, jurisdição sem apelação, direito de execução contra o qual nada pode
prevalecer — o Hôpital Général é um
estranho poder que o rei estabelece entre s polícia e a justiça, nos limites da
lei: a terceira ordem de repressão” (FOUCAULT, 1972, p. 61).
O que há de médico no Hôpital é a visita de um profissional destes
não mais que duas vezes por semana; de resto, não se trata de uma instituição
médica, mas de uma instância da ordem absolutista francesa.
Ligadas ao estabelecimento do poder real, em 1676, outro decreto real
dispõe a criação de um Hôpital em cada cidade do reino; em 1789 existem
32 cidades com estas instituições em toda França. Também a Igreja encabeçava
este movimento com instituições próprias, reformando-as e adaptando-as às novas
necessidades da ordem Bourbon. No próprio Hôpital há um duplo caráter
variante entre o laico e o confessional. Se os bispos participam da
administração, são les principaux citoyens que exercem o papel
fundamental. Se a vida dos internos tem um caráter monástico, ao mesmo tempo as
lettres de cachê[43]
— operação do poder monástico —
são um dos instrumentos fundamentais do internamento. Mescla-se o duplo caráter
da caridade eclesiástica com os pobres com o impulso burguês de pôr este mundo
do desregramento, da miséria, nos limites da ordem mercantil-urbana emergente.
Serão nos edifícios dos antigos leprosários que se colocarão estas novas
instituições da ordem.
Este movimento é europeu. Na Inglaterra elisabetana criam-se as houses
of correction, 1575, em cada condado; adiante, dada a falência inicial,
prescreve-se o trabalho dos internos como forma de custear a manutenção da
instituição. Já em 1697 é a vez da emergência das worhouses, a primeira
em Bristol, mas logo estendida a todo o país. Na futura Alemanha, Hamburgo cria
em 1620 a primeira Zuchthäusern, casas de reprodução ou prisões. Enfim
em toda a Europa, seja anglo-saxã, latina ou germânica surgem prisões,
hospitais, casas de força, etc, que em poucos anos formarão uma rede de
instituições onde jovens, condenados, miseráveis e insensatos grassaram como
população própria. Enfim, por trás do internamento destas figuras distintas
encontra-se a emergência de outra percepção da miséria, de resposta aos
problemas econômicos do desemprego e da ociosidade aliadas a uma nova ética do
trabalho.
Para os
Reformadores protestantes, a riqueza e a pobreza são sinais de deus, sendo a
primeira sinal de eleição divina e a segunda castigo. Isto esvazia a caridade
medieval católica: é a fé que aproxima de deus, não suas obras, pois as obras
devem ser produtos da fé não o contrário. Por isso é o Estado que deve assumir
este papel, não associações civis, donde a laicização da caridade, movimento
característico da Idade Clássica. Se antes a loucura tinha um caráter ambíguo,
entre o sagrado e o profano, agora, sob a égide protestante, ela se torna fonte
da desordem social, assim como a miséria torna-se castigo divino e
desregramento moral.
No seio do catolicismo, dá-se a laicização por outros meios; no Concílio
de Trento — realizado de 1545 a 1563 — as idéias do
humanista de origem ibérica J. L. Vives influenciam os rumos da Contra-Reforma;
este Concílio defende a designação de magistrados com a tarefa de arrolar os
pobres da cidade, investigando suas vidas e moral, para enquadrar-lhes e
internar os mais obstinados em casas de trabalho. Embora muitos tenham
resistido a estas idéias, aos poucos o catolicismo aproxima-se delas, muitas já
em voga nos países protestantes: os pobres deixam de ser enviados de deus para
estimular o exercício da caridade e da piedade tornando-se o rebotalho
espiritual da sociedade, devendo se lhes dispensar compaixão somente por suas
misérias corporais.
Dividindo os pobres em dois tipos bons e maus — quer dizer, submissos ou
não ao internamento e à assistência, influenciados por deus ou pelo demônio,
não merecedores do castigo ou merecedores — a Igreja entra nesse movimento de
desmistificação da miséria, no qual o pobre é previamente valorado enquanto
sujeito moral e a pobreza tornada objeto que cumpre ao estado organizar. Esta
assunção da pobreza não mais como objeto de uma experiência mística e sim como
experiência social passível de medidas de saneamento social, colocará os pobres
ao lado do louco e dos desempregados, nestes espaços de exclusão que a Idade
Clássica criou.
O internamento é uma medida de polícia[44]
no sentido Clássico: medidas que ligam o trabalho às necessidades daqueles que
não trabalham. Antes de qualquer imperativo médico ou filantrópico é o
imperativo do trabalho que torna o internamento necessário. Isto explica porque
o decreto de 1656 toma a mendicância e a ociosidade como fonte de desordens.
Em 1559, 30% da população de 100.000 habitantes de Paris é mendicante.
Desde o século 16, a administração da cidade tentava enquadrar esta massa
urbana: em 1532 um edito do Parlamento citadino obriga os mendigos a
trabalharem limpando os esgotos da cidade; em 1534, outro edito sanciona que os
pobres (camponeses, sem terra, desertores, desempregados, doentes, etc.)
abandonem a cidade; um decreto de 1606, completando o de 1534, legisla que os
pobres devem ser marcados e ter a cabeça raspada antes de serem expulsos, sendo
impedidos de retornar por arqueiros.
Neste contexto de guerras religiosas, de um mercantilismo emergente e de
impossibilidade de organização do movimento operário; de luta entre Igreja e
Parlamento, o Hôpital — criação parlamentar — vem banir a exclusão
simples, em troca da criação de uma rede de internamento, que postula
obrigações aos internos. Em quatro anos, serão 11000 os internos do Hôpital
Général de Paris. Nos interstícios do século XVII, o Hôpital se
encarrega dos primeiros efeitos da crise econômica originada do arrocho
salarial, inflação e descenso da economia espanhola, então a mais importante da
Europa. Se nestes períodos de crise, o Hôpital assegura a ordem
internando desempregados e vagabundos, nos tempos de crescimento seu papel é
oferecer trabalho, garantindo a prosperidade.
“A alternância é clara: mão-de-obra barata, em tempos de pleno emprego e
de salários altos; e, em períodos de desemprego, reabsorção dos ociosos e
proteção social contra a agitação e os motins” (FOUCAULT, 1972, p. 79).
Pelas condições de trabalho e produção, os internos recebem menos que os
não-internos, o que leva, progressivamente, a uma concorrência muito aguda com
as manufaturas. Diante do perigo da concorrência, aos poucos o trabalho é
extinto nas instituições de internamento. Enfim, a significação que Colbert[45]
quis dar ao internamento — econômica, laborial e de controle — falhou em seus
termos econômicos, embora tenha conseguido evitar os levantes sociais da massa
urbana miserável da época. No fim do século XIX o fechamento das casas de
internamento na Europa deixará patente o fracasso destas enquanto resposta aos
problemas da nascente sociedade industrial.
Contudo, o internamento possui um sentido ético também. Se na Idade Média
o pior pecado é a soberba e na Renascença, a avareza; na Idade Clássica é a
preguiça que vem assumir este papel: ela é esperar a generosidade da natureza
mesmo após a queda de Adão. Nos interstícios entre trabalho e sua significação
ética, o louco sofre a condenação moral enquanto ocioso, que redunda em seu
internamento prático no mundo burguês da produção então em formação.
Na realidade este sentido ético do Hôpital é o mais fundamental. A
pobreza é fruto não da escassez, mas do desregramento moral, da falta de modos
e da preguiça. Compete ao Hôpital tornar toda essa massa urbana
moralmente libertina em força útil à sociedade. O trabalho aproxima-se da
ascese, e as casas de internamento sintetizam o imperativo moral do trabalho
com a lei civil que regulamenta as relações sociais. O sonho da cidade burguesa
se estabelece: o estado produzindo verdade, administrando-a e fazendo-a majorar
suas forças; seja na Europa protestante ou na católica, o objetivo é evitar o
pecado e buscar a beatitude ética para manter a ordem moral da sociedade. Nos
primórdio de nossa experiência da loucura, a Idade Clássica; a loucura como
impossibilidade do trabalho e da integração social; e o internamento, mudando
seu sentido em relação à Idade Média, torna-se instrumento econômico e social
de manutenção da ordem ético-política-econômica do mundo mercantilista e absolutista.
*
O início do século XX viu o desenvolvimento de uma corrente
historiográfica da psiquiatria situar o internamento como o ápice de uma
finalidade social, tal seja, a da sociedade eliminar de si os elementos
nocivos. Supondo uma loucura que foi sempre a mesma, tomam que no momento do
internamento, momento do mercantilismo, o que ocorria era que a ciência médica
positiva trazia à tona a verdade da loucura, perdida de si mesma; por baixo da
sensibilidade social, que percebia o louco como associaux, a consciência médica fez brilhar a realidade da loucura
ela mesma..
Falta-lhes história: o internamento
não foi dirigido aos loucos e sequer visa eliminar os associaux. O reconhecimento do louco como Outro foi criado, e é
esta criação que permitiu interná-lo. A loucura não deitou imóvel na história;
uma série de operações a fez deixar de ser familiar e a tornou passível de
banimento. A experiência que o homem da Idade Clássica teve da loucura foi a
que possibilitou a mesma experiência que temos dela hoje: nós do lado de fora,
o louco no hospício.
Dentre os passíveis de serem internados, não só os loucos, mas os
mendigos, os miseráveis, os desempregados, os velhos, os incorrigíveis. Esta
unidade, estranha para nós, é a base de nossa experiência da loucura; e é por
isso que é a experiência que a Idade Clássica teve da loucura que deve ser
interrogada, não a psiquiatria — mais recente que o próprio internamento. O
internamento criou todo um novo campo de experiências, um novo mundo ético e
novas formas de integração social. Se o fim do século XVIII conseguirá enxergar
um parentesco entre os magos, os alquimistas, os profanadores e os loucos, foi
a Idade Clássica que o possibilitou.
Os doentes venéreos, por exemplo. Antes do Renascimento, eram somente um
grupo dentre os vários doentes, e, assim, deles se exigia o mesmo: uma
confissão, e, após, seriam tratados. Com o advento do Ressurgimento, eis que os
venéreos tornam-se alvo da punição divina destinada aos libidinosos. Expulsos
do Hôtel Dieu, será no Hôpital Général que encontrarão abrigo.
Ou seja, a doença deixa de ter um caráter apocalíptico para tornar-se índice de
culpabilidade por um pecado. No caso dos venéreos, a terapêutica envolvia
sangrias, purgações, banhos, confissões e fricções com hidrargírio; terminava
com uma longa sangria, para que os humores mórbidos vazassem. Fica claro como
medicina e moral se complementavam, como uma trabalhava para a outra, e como
ambas se intercalavam nesta estranha terapêutica, que não teme, de forma
alguma, ser dolorosa e marcar a carne.
Ocupando o mesmo espaço por mais de cem anos, veremos esta terapêutica
ser aplicada também aos loucos: a Idade Clássica havia constituído os
parentescos entre desrazão e pecado, e o louco também deveria ser purgado. O
racionalismo, pois, sobrepunha cura e castigo: a repressão na terra era como
que o prelúdio da ira divina do pós-vida. Curar o corpo e purificar a alma; já
os gregos o faziam, mas somente o século XVII, somente a razão cristã dará a
esta união entre moral e medicina tome a forma da repressão, cujo ápice será,
sem dúvida, o tratamento moral de Pinel, de Esquirol e de Leuret.
Vejamos o caso da sodomia. Até o século XVIII o tratamento a se dispensar
ao louco é o ignis et incendium: o
sodomita, o mago e o herege tem a mesma sorte. A Idade Clássica terminará mesmo
com toda uma literatura erudita libertina, que havia passado incólume pela
Renascença. Se o platonismo dividia o amor, tomado como uma forma de saber, em
diversos tipos, a Idade Clássica dividi-lo-á em dois tipos, o amor de razão e o
de desrazão, este último sendo aquele do sodomita. Eis aqui a origem da ligação
entre loucura e sexo. Da mesma forma as prostitutas e la débauche são experimentadas, e o destino é o mesmo, as casa de
força.
Em uma época onde a ética sexual é submetida a moral familiar, a polícia
pode prender muitos desrazoáveis da genitália sem processos, a fim de
salvaguardar a moral pública. A moral
burguesa fará cair o amor cortês: o sagrado é a aliança[46],
não os sentimentos. É no interior do casamento que deve dar-se o amor; fora
dele, prolifera a loucura, a desrazão amorosa e sexual. A ordem familiar é
implacável na luta contra a desrazão sexual; e, aqui neste tempo, os conflitos
entre família e individuo são questões públicas. Somente com Breteuil (ministro),
1784, é que se principiará o movimento de torná-las questões privadas. Para o
classicismo todas as irregularidades do sexo têm como denominador comum a
loucura; sendo culpada por todas estas desrazões, esta culpabilidade servirá
como substrato para o desenvolvimento da psicopatologia.
Também os sacrílegos, blasfemadores e profanadores têm sua vaga reservada
nas casa de internamento, bem como suas punições descritas nos códices
penais-corporais, como era a prática da época; por exemplo, cortar fora as
línguas daqueles que mal-diziam o deus e o divino. Toda uma série de outros
comportamentos, até então encarados a partir de um viés religioso, perderão a
ligação com o divino; continuarão a ser condenados, mas de um ponto de vista
moral: suicidas, magos, alquimistas, bruxos. Cumpre que sejam condenados,
cumpre castigá-los, mas por suas infrações morais, por representarem um perigo
para a ordem social.
Todas estas práticas representavam, na sensibilidade clássica, ilusões. E
forçar à verdade é o primeiro sentido do internamento. Se compete ao estado
velar pelas crenças e pela verdade, é porque esta faz parte da ordem. Dentro da
maison d’internement é impossível
fugir da verdade.
“Estranha área
de aplicação, portanto, das medidas de internamento. Venéreos, débauches, dissipadores, homossexuais,
blasfemadores, alquimistas, libertinos: toda uma população de estranhas matizes
se encontra de um golpe, na segunda metade do século XVII, rejeitada, doutro
lado de uma linha de divisão, e reclusa nos asilos” (FOUCAULT, 1972, p. 116).
Os desvios religiosos e a medicina
Em La vida de los hombres infames,
Foucault nos descreve outro momento, senão chave, ao menos interessante na
história da formação da psiquiatria e do internamento: o caso dos desvios
religiosos. No século XVI o diabo ainda habitava o mundo e, vez ou outra,
assumia o controle dos incautos, tornando-se senhor do corpo e da alma de
alguns. Neste contexto, a bruxaria ocupa um papel fundamental na mentalidade e
na articulação desta com as relações de poder.
A medicina pode ser analisada a partir de seu funcionamento social: o
papel e posição do médico, a forma da sua prática e os objetos de seu campo de
ação (os objetos medicalizáveis). Não existe algo como uma medicina universal:
as distintas culturas definem formas próprias, o campo dos sofrimentos e dos
desvios, e lhes medicaliza sim ou não — isto partindo do pressuposto de que
medicalizam algo. A medicina do século XIX buscou estabelecer uma divisão
universal entre o normal e o patológico. A medicina atual deu-se conta da
relatividade do normal e o do patológico: variações dentro do saber médico, o
sistema de valores de uma sociedade, a forma de vida da população, sua relação
com a morte, as formas de trabalho, etc.
Assim é que a medicina do limiar entre o Renascimento e a Idade Clássica,
orientada por toda uma lógica própria de diagnósticos e terapêuticas — o regime
da crise[47] — tinha
como um de seus principais objetos de estudo a questão da bruxaria e dos
sacrilégios. Molitor (sec. XV), Erastus e Weyer (sec. XVI) defendiam que as
bruxas não tinham poderes reais, e que se deveria confiar em deus; contudo,
defendiam punições capitais para as acusadas de feitiçaria, não pelos poderes
que afirmam ter, mas pela aliança que fizeram com o diabo. Nem estes médicos de
então, nem Sprenger, Scribonius ou Bodino questionam a existência do demônio:
as polêmicas envolvem suas formas de ação.
Outros debates se desenrolavam então:
1. Acerca do diabo: este é um anjo, malgrado tudo, tendo, pois somente
ascendência sobre os espíritos, nunca sobre os corpos, submetidos a soberania
de deus; assim Erastus conclui que o diabo tem pouco poder sobre os corpos e as
coisas, embora seja muito poderoso em relação as almas.
2. Assim, o diabo tende a agir sobre os espíritos mais frágeis de vontade
e menos piedosos: as mulheres (que é inconstante, impaciente, melancólico e
malicioso: Meyer apud FOUCAULT, 1996, p. 14), os melancólicos (Crisóstomo: o
diabo submete a todos que domina por meio da irritação ou da tristeza) e os
insensatos (que, tendo o pensamento ofuscado pela ação dos humores, tem maior
possibilidade de serem corrompidos pelo diabo). O diabo, pois, sem poder
alterar a ordem do mundo, submetida a deus, consegue se aproveitar dos defeitos
que a ordem provoca nas almas.
3. O diabo atua por meio do engano, sobretudo; não podendo atuar nas
próprias coisas, atua na forma como as imagens se transmitem à alma: os sonhos
pertencem ao diabo, este agindo nas fronteiras entre o mundo e o homem.
4. Se o diabo pode intervir no corpo, ele o faz por toda uma intrincada
rede de ligações, de cumplicidades e coisas em comum; se a imaginação é a
faculdade localizada precisamente na fronteira entre o corpo e a alma,
juntamente com os sentidos, os nervos e os humores, é certo que o diabo tem
ascensão sobre eles. Assim, o diabo sabe operar e colocar em sintonia as
distintas faculdades do corpo e do espírito para ludibriar e fazer real suas
ilusões.
5. O maior logro de Satã é conseguir enganar mesmo os crentes, mesmo
aqueles que, no ato que denunciam as bruxas, afirmam tê-las vista no sabbat, são ainda servos do Belzebu, por
sua descrença e por trazer as maquinações do Caído para o seio da igreja
(Weyer). Outros diziam o contrário, inclusive acusando Weyer de bruxo:
Scrigonius afirma que o Satã sabia como seria ridicularizado se sua influência
se reduzisse a sonhos e fantasmas; assim, o máximo da ilusão é acreditar que os
poderes das bruxas são somente ilusão. Em último caso, Satã coloca aos homens
em um círculo: quem condena Satã reafirma seus poderes, e quem o nega faz o
mesmo.
O diabo permanece em uma ausência perpétua: age por meio de imagens
falsas que são fantasias, pois. O demoníaco está, assim, próximo e distante; os
médicos lhe reduzem a ação às coisas animadas, à alma, à imaginação, na
fronteira entre mundo e interior; estes médicos do séc. XVI, reduzindo assim a
ação do diabo ao corpo, fronteira entre mundo interior e exterior, abriam
caminho para a redução naturalista dos séculos posteriores. Situado aí, Satã se
converte no porteiro do acesso à verdade: próximo do erro, mesmo quando se
denuncia a ação do diabo, ainda não se sabe se ela, a verdade, já não está no
próprio ato que a denúncia. Enfim, estas discussões sobre o diabo podem ser
reduzidas aos debates entre verdade e erro, ser e não ser, aparência e verdade.
A partir destas discussões para-religiosas elaborou-se algo como uma
medicalização que buscava demonstrar a existência a partir de uma análise da
ação demoníaca sobre as almas e corpos, sem nenhuma explicação que chamaríamos
psicológica ou, mesmo, qualquer noção, ainda que embrionária, de uma divisão
médico de tipo normal-patológico: sua referência é ilusão e erro.
*
A medicina do século XVI não se
desenvolve a partir do estabelecimento do normal ou do patológico, mas do que
afeta ao corpo, à alma e à imaginação, em sua fronteira; não há enfermidade,
mas, antes, uma artimanha do diabo para submeter os outros a seu logro. Por
isso todos que se equivocam terminaram por ocupar o mesmo lugar de exclusão.
Se em relação a questão da bruxaria e da possessão, a medicina, em sua
abordagem clássica, tomava estes fenômenos como patologias que não haviam sido
reconhecidas como tais: histéricas, paranóicas, psicóticos alucinatórios, etc;
o que importa, contudo, é como foi possível que a bruxa e o possuído,
perfeitamente integrados mesmo em sua exclusão, como eles puderam ser
medicalizados?
O juiz, o cura, o rei, o médico e a população. Todos concatenados para
perseguir os possuídos e os feiticeiros, adeptos de Satanás. No século XVIII,
contudo, dominará a medicina dos humores[48],
onde estes excluídos se perderão, conquanto no século XIX reencontrarão seu
lugar sob o nome de histéricas.
No século XVI já o médico contava entre os que levavam adiante a luta
contra a possessão. Atritando com a igreja, os médicos acreditavam que, em
fato, o diabo conduzia as bruxas ao sabbat,
e atuava sobre os corpos, sobre os humores e as mentes, para ganhar-lhes a seu
culto. Assim é que J. Meyer defende que a enfermidade advêm da ação do diabo. A
Igreja era conta, no que os juízes lha apoiavam com reticências.
Já no século XVII ocorrem mudanças. Os casos de bruxaria que tiveram
destaque no período não são, como se pensa comumente, frutos da ação da Igreja
e da Inquisição no contexto da Contrarreforma. Os processos revelam que neles
sempre havia um conflito entre o parlamento e a igreja.
Em 1598 o tribunal de Angers condenou um jovem, Roulet, por haver se
transformado em lobo e comido várias crianças, o que o jovem concordava e
assumia a culpa; o tribunal de Paris apelou e o jovem foi considerado louco e
conduzido a um hospital e condenado a conhecer deus. Outro caso parecido
ocorreu em Bordeaux, poucos anos depois: um jovem afirmava haver comido várias
crianças sob o estado de lobo; o tribunal lhe condenou a passar o resto da vida
em um convento, por ter obviamente menos razão que uma criança de oito anos e
desconhecer a deus devido à pobreza.
Estas decisões opunham-se a jurisprudência e as recomendações de Bodino e
de Meyer; estes defendiam que os casos de licantropia deveriam ser tratados
como corrupção da imaginação, e que a ação do diabo resumia-se a corrompê-la e
colocar lobos reais no caminho das vitimas. Não era esse o interesse dos
tribunais: lhes importava pouco os fatos ocorridos ou a possessão demoníaca,
mas, sim, a imputabilidade do autor por irresponsabilidade — imbecilidade ou
demência —, seguindo, pois, uma a tradição romana. Esta situação se inverteu
rápido: a Igreja passou a ser mais critica em relação aos casos suspeitos de
bruxaria, estabelecendo, no Sínodo de Reims, inúmeras precauções a se tomar
antes de exorcizar os suspeitos; neste sentido, intervieram no caso de Marta
Brossier, 1583, proibindo que qualquer sacerdote a exorcizasse. Os parlamentos,
por seu turno, queriam ser severos na aplicação das leis.
Esta oposição entre o ceticismo eclesiástico e a obstinação dos tribunais
se agrava: no séc XVII a maior parte das condenações por bruxaria são contra
padres, o que era muito incomum até então.
Isto indica os poderes ambíguos que o sacerdote adquiria, no final do
Renascimento, na mentalidade popular. Se, como afirmava De Lancre, do tribunal
de Bordeaux, os mais sábios são mais perigosos, o sacerdote ocupava, pois, uma
dupla posição: sendo o mais sagrado, deveria estar o mais longe dos atos de
bruxaria. A burguesia tinha claro que o sacerdote não pode ser perdoado de
forma alguma dos casos de bruxaria: era o sacerdócio tendo de se submeter ao
bem da sociedade, quer dizer, à razão de estado; tendo este aval, os tribunais
buscaram purificar a igreja dos elementos bruxos, ao mesmo tempo que combatiam
as influências do sacerdote sobre o povo.
Foi dúbia a atitude da igreja. Sua fração espiritual (que combatia a
interferência religiosa em assuntos temporais) apoiava as ações para combater a
fração secular da igreja, justamente a maior vítima da depuração penal. A
fração temporal da Igreja era muito cética quanto os casos de bruxaria e de
possessão: muitos defendiam que não se tratava senão de casos de melancolia,
ligada, assim, a bílis negra.
“Enfim, foram
as autoridades eclesiásticas que
pediram as Faculdades de Medicina consultas e informes periciais (...) [já que]
as autoridades eclesiásticas da igreja manifestavam um a grande desconfiança
malgrado o zelo mostrado pelo clero regular e que, em numerosas circunstâncias,
os bispos apelaram aos médicos para evitar a ingerência conjunta dos tribunais
e das ordens religiosas” (FOUCAULT, 1996, p. 27)
Nesse conflito entre a Igreja
secular de um lado, e os tribunais e as ordens religiosas de outro, venceu a
Igreja com o apoio do poder real. Se no começo do século XVII ainda o poder
real mantinha alguns casos de bruxaria, estes foram diminuídas no correr dos
anos, ao ponto de, já na metade do século, 1670, o rei mandar intervir em condenações
de bruxos à fogueira pelo tribunal de Rouen, que havia se mantido fora desse
processo. Os juízes de Rouen defendem sua posição; a Igreja intervém e não
trata de religião: seus argumentos são civis e devem ser inscritos no contexto
da razão de estado.
Em 26 de abril de 1672, o conselho de estado manda soltar todos os
acusados de bruxaria na Normandia e ordena que tal seja a jurisdição a ser
seguida por todos os tribunais de França. De agora em diante, bruxos,
sortílegos, magos e afins tem um destino: o internamento no Hôpital Général.
Não importa tanto mais sua responsabilidade acerca dos crimes eventualmente
conhecidos. “A bruxaria é já considerada unicamente em relação com a ordem do
estado moderno: a eficácia da operação é negada, mas não a intenção que
implica, nem tampouco a desordem que suscita. O âmbito de sua realidade
transferiu-se a um mundo moral e social” (ibidem, p. 29-30).
A última fase deste processo envolve
as lutas religiosas em França. Com efeito, já em fins do século XVII, os protestantes
e os jansenitas, oprimidos pela monarquia católica, começam a pregar a partir
de um forte sentimento religioso profético, com milagres e êxtases religiosos.
A Igreja e o estado, para combatê-los, intervém nos tribunais: traça-se um
paralelo entre fanatismo e loucura; difunde-se que os ditos milagres são
naturais, não divinos. Enfim, as oposições religiosas conheceram o
internamento.
A igreja buscava a medicalização destes fenômenos religiosos dos
protestantes para mostrar que não eram milagrosos, mas frutos de mentes
insensatas. Brueys, em sua Histoire de Le fanatisme dans notre temps
diz que
"se não se
conhece ‘a máquina do corpo humano’, se podem confundir os fenômenos de
fanatismo com as ‘coisas sobrenaturais’... ‘bem é verdade que estes fenômenos
são geralmente apenas uma verdadeira enfermidade’” (apud FOUCAULT, 1996, p. 31).
Aqui enfermidade tem outro sentido aqui: é maldade, mentira e
superstição.
*
Nem ciência nem o direito dão coerência a esta população, a população dos
internatos de então. Somente a forma como são percebidos, isto é, enquanto
desrazoáveis. Se a Idade Média e o Renascimento pressentiam o louco como
perigo, a Idade Clássica o localizará. Aos poucos, o louco passará a ser medido
em relação à norma social; até então, particularmente no campo da arte, o louco
também era isolado, mas de maneira abstrata. Tornado concreto, chegara o
momento de alienar os alienado, de isolá-los.
Todo o campo de objetividade epistêmica que se insinuará mais e mais
sobre o louco somente será possível depois deste movimento que o isolou a
partir de uma oposição ética, de uma divisão entre razão e loucura; eis aqui a
base de nossa moderna experiência da loucura.
7. Medicina ou Psiquiatria?
Antes de Pinel, de Tuke e de Chiaruggi, tidos como os fundadores da
psiquiatria, já existia, pois, o internamento, conforme vimos. O louco, tornado
parte de uma população urbana muito mais ampla, já tinha seu lugar reservado
nos estabelecimentos de força. Vimos também que inúmeras problemáticas, que a
medicina de hoje, no mínimo, tomaria como ridículas, ocupavam um papel
importante nos debates científicos de então: o caráter da bruxaria, a posição
do Caído na ordem das coisas e sua influência nos insensatos, as profilaxias,
os rituais a empreender, etc.
Com as teses de Newton e a difusão do pensamento de Galileu, uma série de
correntes de pensamento viram-se subitamente alçadas a um primeiro plano na
Europa. A Iatroquímica, por exemplo, que defendia um diagnóstico e uma
terapêutica pautados no controle de substâncias. Identificava-se a origem das doenças ainda por meio das velhas
teorias dos humores, de origem galenico-hipocrática, quando não por outros
tipos de substâncias, como ácidos e bases. Do mesmo modo, a iatromecânica, da
qual trataremos mais a frente, tomava que as fibras, e não os humores, eram os
principais elementos do corpo e que a alteração de seu estado de tensão, como
seu afrouxamento conduziriam á aparição das doenças mentais[49].
Apesar disto, era ainda a teoria dos humores muito utilizada em medicina.
Formulada por Hipócrates, defendia uma tese segundo a qual haveria quatro
humores no corpo humano, correspondentes a sua parte líquida, sendo eles, o
sangue, a bile amarela, a bile negra e o flegma. A saúde ou a doença
dependeriam do correto equilíbrio entre os humores; por meio da noção de crise,
o médico deveria intervir no momento certo, no oligokairos, para restabelecer o equilíbrio, por meio de duchas,
purgativos, lavagens, sucções e sangrias — já tratamos de tudo isto.
As escolas vitalistas, especialmente a de Montpelier, que formou
inclusive Pinel, pipocavam e, neste sentido, não havia absolutamente algo como
uma medicina mental ou, mesmo, o conceito de doença mental. A medicina de então
atuava sobre dois outros campos: o das doenças vaporosas e das doenças
nervosas.
Para o contexto da Ilustração, o comportamento correto era aquele que se
adaptava às normas vigentes; além do que, havia a noção do déspota esclarecido,
aquele que capaz de formular leis protetoras do corpo social. As filosofias da
época, malgrado suas belas teorias, tinham uma inaplicação evidente. Naquele
momento mesmo o campo médico valia-se de analogias de cunho mecânico, sendo o
intento do médico conhecer as causas naturais da doença, à moda newtoniana. O
campo científico-filosófico cindia-se dentro de uma oposição de método: de um
lado, o homem racional buscava estabelecer o quadro hierárquico e natural,
sobremaneira influenciados pelas experiências de Newton; de outro, buscava-se
também explicar a ordem da natureza, salientando-se a sensibilidade como porta
para o mundo interno. Para ambos, tratava-se de ordenar os conhecimentos, de
forma hierárquica e distributiva — é o século de Lineu e de seu more botanico. Colocar as coisas em relação à era o procedimento básico e
que fez carreira na medicina, particularmente em relação ao campo das doenças
nervosas, tendo como resultado último a constituição da nosologia.
Neste período pré-psiquiátrico, duas medicinas se opõem: a medicina dos
vapores e a medicina dos nervos. A primeira era muito antiga e remetia a Galeno
enquanto que a segunda desenvolve-se na pegada da obra de Newton.
Desde Galeno, o grande médico do Lácio ao lado de Celsus, supunha-se que
fermentações uterinas levariam a histeria, e mesmo o nome histeria é útero em grego
(hysteron). Já na Idade Média
desenvolveu-se uma terapêutica pautada em inalações fétidas e fumigações
vaginais com odores agradáveis, que intentavam devolver ao útero seu valor
natural e dissipar o efeito de coisas em decomposição como sangue menstrual e
sêmen. Mesmo críticos como J. Fernel (1497-1558) acreditavam que os vapores
pútridos uterinos alteravam o funcionamento normal dos órgãos e que, uma vez,
no cérebro causariam loucura e furor. Em 1702, J. Purcell relacionou as doenças
vaporosas com questões passionais. Em 1756, P. Hunauld defendia que a doença
vaporosa era acompanha de uma série de caprichos e de comportamento estranhos[50].
Se o século das Luzes acreditava que tudo poderia ser explicado pela
razão, várias crenças inexplicadas ainda viviam, Por exemplo, de que a mulher é
um homem incompleto ou que ela é destinada a maternidade, postulados de Galeno[51].
Na Inglaterra e na Escócia as damas da alta estirpe aos poucos buscaram médicos
que, paulatinamente, passaram a se preocupar com elas. W. Smillie e W. Hunter
desenvolveram técnicas ginecológicas, por exemplo, aperfeiçoando o fórceps. Não
imperava o amor nos matrimônios, em beneficio da mariage de raison[52]
e muitas técnicas Era por sua fertilidade que se avaliava a mulher, reduzida a
vida privada. As mulheres ocupavam um papel especial e a medicina tinha sob
elas um olhar agudo, particularmente a medicina dos vapores.
“‘Vocês são
apenas o seu sexo’ dizia-se a elas [as mulheres]. E este sexo, acrescentam os
médicos, é frágil, quase sempre doente e sempre indutor da doença. E este
movimento muito antigo se acelerou no século XVIII, chegando a patologização da
mulher: o corpo da mulher torna-se objeto médico por excelência” (FOUCAULT,
2007c, p. 234)
Toda uma problemática greco-latina esquecida acerca da reprodução do
aleitamento, dos casamentos, da reprodução e da contracepção surge ou ressurge
no século XVIII. A tradição médica reforçava questões como a de que era vetado
às lactantes terem novos filhos, fazendo proliferar as amas de leite, o que,
contudo conduzia a uma alta taxa de mortalidade infantil, pois as mulheres
tinham filhos atrás de filhos. Há toda uma campanha do mundo médico visando
encorajar o processo de ablactação que culmina na criação da mamadeira em 1786[53].
A problemática dos vapores, e amiúde
o das doenças nervosas, não pode, de forma alguma ser desligada deste processo,
pois as afecções desta estirpe atingiriam sobremaneira as damas — eram
moléstias uterinas, sobretudo. Seus sintomas — como coréias, irritabilidade,
mania, sonolência—, no entanto, poderiam ir além do útero. O movimento dos
vapores no corpo, com a suavidade e volatilidade que lhes é característica,
tornava todos os órgãos como potencialmente infectáveis Se atacassem o cérebro,
por exemplo, poderiam gerar furor; se
restritos ao útero, não era raro que gerassem furor genital, com as condutas sexuais antissociais que produzia.
Há de se notar também que, este processo de colocação em cena, por meios
médicos, de questões referentes não somente aos comportamentos sexuais stricto senso, mas, relativas a questões
demográficas, de natalidade, sem dúvida faz parte do movimento de formação da
biopolítica. Mas tarde integrados, ao menos em parte à psiquiatria, estas
questões tornar-se-ão centrais na integração entre medicina mental,
anátomopolítica e biopolítica, ou, para ser mais claro, atuarão como
fios-condutores de uma ampla medicalização da vida, com a disciplinarização
necessária e a forja de dispositivos de controle.
No século das Luzes “a sensibilidade feminina, seu poder cativante e
sedutor é perigosa para o homem, mas também o é quando aparecem vapores, pois
as expõem a burla social ou submete-as aos caprichos mais estranhos” (SAURI,
2005, p. 77).
Doutro lado desta medicina está a medicina ilustrada. Th. Willis (1621-73)
tem especial importância, pois aplicou com extremo rigor o modelo
galiléico-newtoniano à medicina. É tido como o inventor do “sistema nervoso”
pois postulou que a medula, o cérebro e os nervos tinham relações
sistêmico-funcionais. O funcionamento deste sistema dava-se graças à ação dos espiritus animales — formados pelo
sangue arterial destilado no cérebro — sendo móveis e atuantes nas sensações e
movimentos. A alma sensível acoplava-se à alma racional, transcendente e
material. Embora estas teorias fossem antigas, Wilis buscava uma explicação
iatrogênica. Malgrado similares aos vapores, os espíritos animais circulariam
pelo corpo através dos nervos e, tal qual os vapores, podiam gerar insanidade.
Willis explicava a afecção
espasmódica que é a histeria como tendo origem em um processo onde os espíritos
animais, sobremaneira concentrados, levariam à disrupção da ordem natural e
social, redundando na sobreposição da alma sensitiva à alma racional — a parte
da alam encarregada dos juízos.
Embora galênica em seu cerne, a
teoria de Willis trazia várias novidades. Concebia-se que havia um princípio
unitário regulador do organismo (que a doença alterava): distinguia entre forma
anatômica e função fisiológica e que uma mesma função pode ser realizada por
distintos órgãos. Muitas destas noções já haviam sido postuladas por Harvey no
estudo da circulação. Além disto, como para Willis a origem de inúmeras
morbidades era nervosa, cujo fundo comum era alterações motoras e sensitivas, a
histeria tornava-se uma das patologias, juntamente com a apoplexia, mania,
delírios, etc.
É neste marco, onde se opõe vapores
e nervos, que se consideravam a maior parte das afecções pouco tempo mais tarde
incluídas no rol das doenças mentais. Não tinham, pois, existência distinta das
demais doenças em algo como uma medicina mental: sua racionalidade era a mesma
das demais doenças e, somente depois, com os fundadores, é que esta medicina
mental se formulará
Cullen inventa a nosologia e a neurose
Nesta pré-história da psiquiatria
há, ainda, outro episódio que merece menção: a invenção da nosologia e da
neurose.
Em 1777 o médico escocês William
Cullen publicou First Lines in the Practice of Physics, onde propunha o
conceito de neurose como agrupador de uma série de morbidades cujo fundo
comum era serem prenaturais, resultado de alterações no sistema nervoso
particularmente na motricidade e na sensibilidade, além da pirexia não
fazer parte dos sintomas primários. A intenção fundamental de Cullen era
circunscrever o cada vez maior campo das enfermidades nervosas, com sua
riqueza sintomatológica e pouca precisão. Pouco tempo antes, Cullen havia
publicado um livro chamado Nosologia, onde propugnava a utilização dos
procedimentos dos naturalistas na ordenação das enfermidades nervosas.
Amplamente utilizada nos países latinos, sobretudo graças a Pinel e Chiaruggi,
o termo nosologia caiu no ostracismo na Grã-Bretanha[54].
Se em fins do século XVII a medicina
já havia catalogado inúmeras espécies de doenças, reconhecendo em muitas
seu caráter local. Os trabalhos de Morgagni mostraram a existência de
patologias gerais, sem, contudo, dar conta daquelas que em sendo gerais
possuíam sintomas inagrupáveis e sem substrato orgânico apontável. Cullen
buscou resolver estas questões: a neurose não dependeria de nenhuma alteração
local, mas do sistema nervoso central, à sensibilidade e à motricidade.
Muito embora a revolução inglesa tenha aplacado as disputas religiosas,
nem por isso estas cessaram. Ainda no século XVII Shaftsbury condenava os cultos
chamativos e o comportamento entusiasmático
dos quakers. O comportamento entusiasmado era condenado, pois, naquele período
de Ilustração, o homem ilustrado era aquele que aderia a ordem social dada: o
comportamento entusiasta levava a fenômenos inusitados e, em último caso,
reviam as convenções sociais. O entusiasmo levava ao desenvolvimento de uma
imaginação passional e à excitação, que, segundo Malebranche, citado por Sauri,
era contagiosa e ameaçava todo o grupo. O entusiasmo e seus efeitos constituíam
o campo do preternatural, i. é, daquilo que está por si fora do habitat; com o
termo preternatural, o médico Ilustrado designava em suma o insólito que,
embora sua especificidade, não extravasavam os limites da natureza, o que
comportava também as enfermidades dos nervos. Rompendo os limites rígidos
oitocentistas entre público e privado, as crises histéricas ou as entusiásticas
desconcertavam. A sua ininteligibilidade fez com que Cullen classificasse as
doenças mentais nestes termos.
O empirismo de Hume e de Locke, ao salientar a origem sensível das
idéias, fez alimentar a busca pela origem sensível das loucuras e da relação
destas com o cérebro. No século XVIII as experiências de Haller, que estimulava
os músculos com eletricidade ou amônia, levaram-no a formular a tese segundo a
qual o sistema nervoso tinha uma propriedade especifica que era a
sensibilidade, a qual compartilhava com os órgãos que se relacionavam com ele.
Disto Fouquet concluía que todos os órgãos, à exceção das mucosas, que são imóveis
(por terem como base os nervos) ou são sensíveis ou podem se mover. Cullen se
apropriou tanto das idéias de Haller quando das de Fouquet, ligando a noção de
sensibilidade com a de irritabilidade, ambos relacionando-se com os
sentimentos.
Os trabalhos de Galileu e Newton fundaram um novo paradigma para tratar a
questão do movimento. Desde Aristóteles, o movimento era uma categoria que
dizia respeito a uma mudança substancial. Rompendo com este paradigma, o
pensamento contemporâneo considerava o movimento no interior de um dualismo
móvel-motor, colocando em pauta, pois, a questão da causa eficiente. Na
medicina isto se refletiu na iatromecânica, a qual já explicamos brevemente, e
nos estudos acerca das fibras musculares que, contraídas, levam ao movimento, que
também fizemos referência. Embora a influência destas idéias sobre Cullen, elas
já haviam caído em descrédito. Contudo, Cullen entendia as convulsões uterinas,
histéricas, hipocondríacas e intestinais como resultados de alterações nervosas
transtornantes da mobilidade corporal, seguindo, desde modo, as idéias de F.
Hoffmann (1680-1740). Este havia abandonado a teoria dos espíritos animais em
benefício da noção de um principio movens,
o éter, que não só garantia o tônus das fibras, como dava coerência e resistência
ao corpo humano. Hoffmann postulava a existência de um fluido nervoso, cuja
circulação garantia a contração e dilatação da duramater[55].
A atonia[56] e
hipertonia[57] das fibras
levavam a estados patológicos, pois perturbavam a circulação do fluido nervoso.
Estes postulados permitiram que Cullen empreendesse o desenho nosológico
mais preciso das enfermidades nervosas. Para elaborar uma nosologia, Cullen
descrevia como primeiro passo listar as notas tomadas, passando-se, pois, a
operar sobre abstrações, não mais sobre concretudes, que serão organizadas
segundo um código especifico estabelecido pelo nosólogo, segundo seus
referenciais (sintomas, momento da aparição, cursus morbis, etc.). Operando em
um espaço ideal, o nosólogo do Iluminismo desconsiderava as interações com a
realidade, deixando, pois, as causas e o sentido da enfermidade em segundo
plano. Esta agrupação é que permite que se adote o more botanico. Ainda que insuficiente, estes procedimentos
nosológicos serviram para dar alguma ordem ao confuso campo patológico de
então. Em relação à neurose, Cullen registrou o que ela era concluindo o que
deveria ser: a partir de um modelo abstrato, especificou as características da
neurose, esquecendo, pois, as manifestações clinicas concretas da morbidez.
O modelo do more botânico,
proposto por Lineu, prescrevia as classificações segundo semelhanças
sintomatológicas. Aplicado na medicina, isto levou a um agrupamento
sintomatológico, marcadamente empírico, das doenças, em agrupamentos abstratos
cada vez mais amplos: espécies, gêneros, ordens e classes. Dando primazia ao
Olhar, e buscando classificar o real em função deste, a nosologia intentava
estabelecer um espaço abstrato onde o que é desse condições de se estabelecer o
vir-a-ser da doença. Atuando no espaço ideal do quadro, onde características
eram distribuídas idealmente, confundiam os classificadores seus princípios
ordenadores com a própria realidade.
Se contribuíram efetivamente com a ordenação das afecções — e com a
formação da psiquiatria, pois — por outro lado, os nosólogos constituíram um
conhecimento abstrato, que deixava-se de se referir ao ordenado, referindo-se,
antes à própria classificação — o que Pinel e mesmo Lineu buscaram combater
preenchendo os espaços em branco do quadro nosológico com agrupamentos
heurísticos advindos de similaridades superficiais.
Vejamos a nosologia culleriana: ele considerava que neuroses, tétanos,
epilepsias e palpítações pertenciam a uma mesma agrupação, a dos espamos, sua
semelhança sintomática. As doenças nervosas com alterações motoras e sensitivas
foram agrupadas por ele em outra classe, chamada de neurose
Criando novas categorias, a nosologia necessitou de novos vocábulos para
dar conta delas. Assim, com o termo neurose,
Cullen pretendia dar realidade semântica e classificatória às enfermidades
nervosas. Bem se sabe que, no século das Luzes, o nome adquiria importância
nodal: ele garantia o bom entendimento e o exato ordenamento dos nomes era o
exato ordenamento das coisas — não fora Adão que dera o Nome sob inspiração
direta do Altíssimo? Dar o nome correto e classificar corretamente era
necessário para dar a cada fenômeno seu lugar correto e exato na ordem das
coisas e no ficheiro do cientista.
Para Cullen tratava-se, antes, não de uma neurose, mas, pois, de
neuroses, uma classe de doenças que cobriria todo um campo mórbido heterogêneo:
“afecções gerais do sistema nervoso, não acompanhadas de febre e atingindo de
forma privilegiada a sensibilidade e o movimento” (PEREIRA, 2005, p. 130). As
neuroses englobavam, assim, os comas (como a apoplexia), as adinamias (enfraquecimento dos
movimentos nas funções vitais), as afecções espamódicas sem febre (tétano,
epilepsia, asma, histeria) e as vesânias (mania, i. é, loucura; melancolia).
Embora Cullen tenha influenciado muitos, particularmente Charcot e Ballet[58],
aos poucos este sentido que Cullen dava à neurose perdeu força e já Pinel as
definia como doenças nervosas sem base orgânica O sentido contemporâneo,
contudo, somente advirá no final do século seguinte e começo do XX com Janet,
Breuer e Freud, sobretudo: morbidez mental que mantém o eu intacto.
7.1. Rumo à biopolítica: as três medicinas sociais da Ilustração e a
tecnologia do hospital
No final do século XVIII, nas articulações que armavam o século da burguesia,
surgiam novos projetos, instituições e linhas de demarcação que somente hoje,
com o distanciamento necessário, é possível ver demarcando-se no passado.
Dentre estes novos caminhos que se abriam, cumpre que ressaltemos, neste
curto ensaio, a emergência do que se convencionou chamar de medicina social,
que ocupa um papel duplo, sem dúvida, pois se pauta em uma nova posição do
hospital, que se tornava médico em fins do século XVIII — portanto, em uma
anatomopolítica—, e, ao mesmo tempo, com as questões que coloca em relação às
populações e ao seu modo de vida, é um dos carros-chefe da biopolítica. De
acordo com Foucault, os séculos XVIII e XIX desenvolveram três versões da
medicina social: a medicina de estado, a medicina urbana e a medicina do
trabalho. Vejamos cada uma delas:
A medicina de estado desenvolveu-se desenvolvida no que viria a ser a
Alemanha, na primeira metade do século XVIII juntamente ao desenvolvimento da
noção de Staadtswissenschaft, ciência do estado — conhecimento dos recursos e da população
de um espaço e do funcionamento do aparelho político, bem como dos
procedimentos por meio dos quais o estado garante seu funcionamento. Lembremos
a situação destes territórios no século XVIII, que, muito fragmentados em
pequenos reinos e cidades-livres, levava ao imperativo de que os pequenos
estados buscassem conhecer-se, saber como funcionavam. Tradicionalistas e
estagnados economicamente, à burguesia germânica restou aguardar até o século
XIX para fundar seu estado-nação, tendo que apoiar-se, pois, em um
bem-organizada e forte burocracia estatal . Por isso o primeiro estado moderno
europeu é a Prússia, malgrado ser uma das regiões mais pobres, menos
desenvolvidas e mais conflituosas da Europa.
Se desde o século XVI há uma preocupação com a saúde das populações
européias, trata-se de uma preocupação mercantilista: aumentar a produção da
população para fazer subir o fluxo da moeda e, assim, com o influxo de
riquezas, aumentar a potência do estado; i. é, fazer crescer a população para
fazer crescer a riqueza do estado. A Alemanha tem outro desenvolvimento: ali se
desenvolveu uma Medizinichepolizei, “política médica”, termo
cunhado em 1764 por W. T. Ray. Tratava-se de contabilizar os fenômenos mórbidos
da população, o que foi seguido pela normalização da prática e dos conteúdos
ensinados nas escolas de medicina; organizou-se toda uma administração da
prática e do saber médico, bem como das relações entre médicos e população,
além de tornarem-se os próprios médicos administradores da saúde.
Surgida antes mesmo da medicina cientifica, o objetivo da Medizinichepolizei
não é o corpo enquanto força de trabalho, mas enquanto força de estado, pois a
população é corpo. Portanto, uma medicina que já nasce estatizada e que servirá
de modelo para o desenvolvimento de toda medicina social nos séculos XVII-XIX.
A segunda grande medicina social que se estabelece na Europa é a urbana,
surgida na França, século XVIII. Até este século, uma cidade francesa era um
emaranhado de territórios governados por poderes civis, eclesiásticos e
monárquicos distintos. Em fins do século, urgia que a cidade se tornasse
unitária: sendo centro comercial e produtivo, a cidade não poderia perpetuar-se
fragmentada por inúmeras jurisdições. A emergência do mundo urbano também
simplificava as lutas políticas, antes dispersas entre disputas entre
corporações, ofícios, etc., e tipicamente campesinas; agora, mais e mais
caminhavam para se tornar lutas entre ricos e pobres e, com isto, a necessidade
de controlar as populações urbanas.
Juntamente ao crescimento da cidade, emerge um pânico político-sanitário:
medo do crescimento demográfico, das epidemias, dos esgotos, dos cemitérios,
etc. Existiam, então, dois grandes esquemas de organização médica das cidades:
o da lepra[59] (esquema
religioso de purificação: segregação do doente do espaço urbano em espaços fora
da cidade, como leprosários e manicômios) e o da peste[60]
(esquema militar de revista: individualização dos habitantes, vigilância
inspeção contínua com registro dos fatos). O modelo da peste, modelo da
quarentena, servirá de base ao desenvolvimento da medicina urbana e da higiene
pública.
Três objetivos desta medicina das cidades: 1. “analisar os lugares de
acúmulo e amontoamento de tudo que, no espaço urbano, pode provocar doenças,
lugares de formação e difusão de fenômenos epidêmicos ou endêmicos” (FOUCAULT,
2007c, p. 89); reestruturam-se os cemitérios e os matadouros, afastando-os da
cidade rumo às periferias. 2. Controle de circulação das coisas, sobretudo água
e o ar: no século XVIII tanto o ar quanto a água eram considerados elementos
patógenos graças à noção de miasma, o ar pútrido que cercaria os doentes e os
mortos; o ar deve circular, donde uma série de prescrições de reordenação do
espaço urbano; a água era vista como dissipadora do miasma: ela o levaria para
afora do espaço urbano, cumprindo que houvesse canais. 3. Por fim, o espaço
urbano deve ser organizado de modo a garantir a distribuição dos bens
necessários á vida comum: fontes de água, esgoto, etc.
A medicalização do espaço urbano contribui apara que a medicina passasse
a integrar o discurso cientifico ainda no mesmo século XVIII. Enquanto medicina
das condições de existência, do meio, passou-se progressivamente para uma
análise dos organismos que compõe o meio, donde se desenvolverá a noção de
salubridade — base da higiene pública e da medicina sanitária.
Por fim, a medicina social inglesa, medicina do trabalho, não pode ser
entendidade se não for situada no contexto que a nutre: o da revolução
industrial e do inchaço urbano. Até o segundo terço do século XIX, os pobres
não eram enxergados como risco sanitário na medida em que as mínimas tarefas de
limpeza e administração sanitária do espaço urbano eram feitas por eles:
recolher dejetos, transportar água, etc.
Contudo, o crescimento populacional e as perspectivas sediciosas que a
Revolução Francesa abrem para os pobres fazem mudar este cenário; além do que,
uma grande epidemia de cólera tem lugar em Paris em 1832, alterando o espaço
urbano em bairros ricos e pobres, dando ensejo para o que será a grande reforma
urbana de Hoffman na década de 1870.
A partir da lei dos pobres, a medicina social inglesa tomará corpo com o
desenvolvimento de uma assistência controlada que intentava agir tanto sobre a
saúde e a pobreza dos pobres, quanto proteger os ricos de fenômenos epidêmicos.
Este sistema será completado pelos de health service (vacinação
obrigatória, registro de epidemias atuais ou possíveis, obrigatoriedade em
declarar-se doente quando se estiver, etc.), que são administrados pelos health
officers — 1875. Se a lei dos pobres dirigia-se somente a estes, esta social
medicine aplica-se sobre toda a população inglesa. Esta medicalização
suscitou uma série de resistências urbanas, muitas das quais assumiram formas
religiosas que se mantém hodiernas.
A social medicine objetivava controlar o corpo das classes baixas
para torná-las mais aptas ao trabalho e ao mesmo tempo reduzir-lhes a vontade
sediciosa. Este sistema inglês ligava assistência médica aos pobres, controle
da saúde da força de trabalho e esquadrinhamento médico da sociedade, e fazia a
junção entre uma medicina administrativa, uma medicina assistencial e uma
medicina privada. Justamente pela sua riqueza operacional e sistemática, a
medicina inglesa foi à única a triunfar dentre estas três medicinas sociais.
O hospital
No mesmo turbilhão no qual estas três medicinas se encontram, a medicina
terminaria por formular a sua principal tecnologia política: o hospital,
entendido como instrumento e suporte da terapia.
O hospital que funciona na Europa desde a Idade Média não era uma
instituição médica e de prática médica — não era uma instituição hospitalar, no
sentido que damos hoje. Já vimos que até o século XVIII, o hospital é uma
instituição de assistência aos pobres e não aos doentes, mas é também uma
instituição de exclusão; é uma instituição de caridade destinada a garantir a
salvação da alma tanto do pobre quanto do pessoal que nele trabalha. A prática
médica, por seu turno, não tinha na instituição hospitalar seu lugar de
formação em si e, tampouco, a prática médica supunha a intervenção contínua,
própria a prática hospitalar; a intervenção médica dava-s em torno da “crise”:
momento em que saúde e doença se enfrentam no doente. O médico deveria observar
os sinais, elaborar o prognóstico, buscar ajudar a saúde na luta contra a
doença, ou seja, tratava-se de uma relação absolutamente individual entre
doente e médico. Em suma, as “séries hospital e medicina permaneceram,
portanto, independentes, até o final do século XVIII” ((FOUCAULT, 2007c, p.
103).
Ao longo do século XVIII inúmeros inquéritos sobre o hospital se
desenvolvem, com objetivos distintos, mas dentre os quais um se destaca:
estabelecer um programa de reforma e reconstrução dos hospitais, pois se
considerava que nenhuma teoria esgotava o tema e que somente um exame empírico
daria conta da questão — é o hospital deixando de ser simples fato
arquitetônico e se tornando fato hospitalar. Não se tratava da descrição de um
monumento, muito ao contrário, interroga-se sobre o número de doentes, a
relação doentes-leitos, a área do hospital, a estrutura das salas, as taxas de
cura e de mortalidade, as relações entre fenômenos patológicos e organização
espacial, o percurso dos materiais médico-hospitalares, a taxa de sucesso das
operações, etc.
Este processo duplo de medicalização do hospital e de hospitalização da
medicina deu-se, primeiramente, com a anulação dos efeitos nocivos,
patológicos, que o hospital acarretava. O modelo de partida da reorganização
hospitalar são os hospitais marítimos; por meio deles, fazia-se tráfico de
mercadoria entre a metrópole e a colônias, o que suscitou o protesto de
autoridades alfandegárias, terminando por gerar um regulamento de controle
desses hospitais. Os hospitais marítimos e militares tornam-se focos de reforma
porque a invenção do fuzil (final do século XVII) encarecera o custo de
formação de um soldado, de modo que eles agora não eram tão facilmente obtidos
ou dispensáveis; devia-se evitar a deserção dos soldados, devia-se diminuir sua
mortalidade por doenças no exército: com alto custo para sua formação, que
morressem na guerra, ao menos.
A reorganização dos hospitais
marítimos e militares foi feita a partir das tecnologias políticas
disciplinares. Se os mecanismos disciplinares são antigos no Ocidente
(mosteiros, empresas escravagistas, empresas coloniais, legião romana, etc.[61]),
os séculos XVII e XVIII os aperfeiçoaram enquanto mecanismos de gestão de
multiplicidades de homens visando majorar o efeito de seu trabalho. Uma série
de coisas emerge:
1. O exército era, até o século XVIII, um amontoado de homens que a
invenção do fuzil tratou de organizar espacialmente visando obter o máximo de
efeito nos soldado; do mesmo modo nas escolas os alunos amontoavam-se e eram
atendidos individualmente, pois o atendimento coletivo pressupõe distribuição
espacial, e a “disciplina é, antes de tudo, análise do espaço. É a
individualização pelo espaço, a inserção dos corpos em um espaço
individualizado, classificatório, combinatório” ((FOUCAULT, 2007c, p. 106).
2. o controle disciplinar é sobre o desenvolvimento da ação, não sobre
seus resultados; na oficina aparece a figura do contra-mestre, destinado a
observar como trabalho é feito, como pode ser melhorado, bem como o resultado
final; no exército surge o sub-oficial, destinado a dirigir os exercícios, as
manobras e sua decomposição.
3. a disciplina implica uma vigilância continua dos individuo; no
exército a hierarquia somada as revistas, paradas e inspeções destinam-se a
tal.
4. a disciplina põe em prática um registro contínuo das ações individuais
e uma transmissão vertical desses registros de modo que nada escape do saber e
o poder possa agir sobre o detalhe da ação individual; “é o poder de
individualização que tem o exame como instrumento fundamental. O exame é a
vigilância permanente, classificatória, que permite distribuir os individuo,
julgá-los, medi-los, localizá-los e, por conseguinte, utilizá-los ao máximo”
((FOUCAULT, 2007c, p. 107).
O hospital se medicaliza porque adota mecanismos disciplinares que serão
centralizados no médico; a medicina passava por mudanças importantes nesta
mesma época. O grande modelo de inteligibilidade da doença no século XVIII é a
botânica de Lineu com seu método do more
botanico: a doença deve ser entendida como um fenômeno natural, como uma
espécie com características observáveis e desenvolvimento; o individuo adoece
quando exposto a determinadas ações do meio; as ações da medicina devem se
dirigir mais ao meio e menos à doença: trata-se de uma medicina do inquérito em
substituição a uma medicina da crise. Disciplinarização do hospital e medicina
do meio marcam a emergência do hospital como instrumento terapêutico.
Este hospital-médico tem características próprias muito bem marcadas.
Pensado com instrumento terapêutico, o local de sua construção atende deve ser
pensado nestes termos. Se localizado na cidade deve ocupar um espaço tal que a
difusão dos miasmas, da água poluída, etc., não contamine o entorno. Do mesmo
modo, organização do espaço interno do hospital é concebida de forma a que a
própria arquitetura, ou antes, a própria disposição dos corpos no interior do
hospital seja, ela mesma, meio de cura: o leito deve ser individualizado de
acordo com o doente, a doença e seu grau de evolução.
Ocorrem mudanças no sistema de poder no interior do hospital, pois, até o
século XVIII, o médico estava subordinado ao pessoal religioso — que
administrava o hospital e cuidava dos doentes —, sendo sua atuação secundária
em relação aqueles. O hospital-médico, o hospital que deve curar, torna o
médico responsável pela organização hospitalar e pela administração econômica.
O médico torna-se presente no hospital, pois o ritmo de visitas passa a
aumentar a partir do século XVIII, de modo que em 1770, deve um médico residir
em cada hospital: é o surgimento do grande médico como médico de hospital, em
substituição ao médico privado, até então o grande médico; é o surgimento da
medicina dos residentes e do hospital com continuidade do corpo do médico.
No cerne deste processo de disciplinarização do espaço hospitalar,
organiza-se um sistema de registro permanente no hospital: identificação dos
doentes, registro de entradas e saídas, diagnóstico dos doentes que entram e
resultados quando saem, registro de retiradas dos medicamentos na farmácia. O
hospital torna-se local de registro, acúmulo e formação de saber e se formulam
exigências de que o corpo médico confronte seus resultados com suas teorias.
Assim, entre 1789-90 o hospital torna-se obrigatório para a formação de um médico,
sobretudo na França.
Enfim, o individuo passa a ser o alvo da intervenção médica, devendo ser
inscrito em um processo que vai do diagnóstico, passando pela terapêutica e
cujo ápice, cujo resultado deve ser a cura, o restabelecimento da saúde do
enfermo.
“O individuo e a população são dados
simultaneamente como objetos de saber e alvos de intervenção da medicina, graça
a tecnologia hospitalar. A redistribuição dessas duas medicinas será um
fenômeno próprio do século XIX. A medicina que se forma no século XVIII é tanto
uma medicina do individuo quanto da população” ((FOUCAULT, 2007c, p. 111)
7.2. Pinel, francês
Apontamos
como a noção de doença mental é recente; na Idade Clássica, a loucura era mais
uma dentre as doenças, integrada na racionalidade da medicina geral da época.
São os psiquiatras de fins do século XVIII que inventarão este conceito. O
regime de internamento dos loucos pautava-se em uma exclusão de cunho moral e
social, nunca médico, e que se fazia acompanhar de uma demonização da loucura. O
regime de internamento era brutal: os lugares eram insalubres e as condições
precárias: o louco era um monstro, uma aberração incurável ligada ao que há de
mais pecaminoso na terra, somente lhe restando esperar a expiação da morte.
Pinel teria descido as escadas da
masmorra do Hôpital de Bicêtre e libertado os loucos. Se este ato
ocorreu ou não, pouco nos importa[62]:
Pinel é considerado um dos fundadores da psiquiatria, ao lado de Tuke,
Chiaruggi, Wagnitz e Riel. Em fato trata-se de um abuso: o nome psiquiatria
é de origem alemã e, ao longo dos séculos XIX, três psiquiatrias com
procedimentos, conceitos e operacionalidades distintas disputarão este campo
novo: a francesa, a anglo-saxã e a germânica. Por exemplo, os franceses diziam médécin mentale, conquanto os germânicos
psychiatrie.
Ao
soltar os loucos de seus grilhões Pinel tratou de forjar outros: estava a
aberta a era da medicalização do comportamento. Nem Pinel nem nenhum destes psiquiatras
rompeu com o internamento como ele se dava, mas fizeram com que o internamento
girasse em torno do louco. No asilo-modelo de York, criado sob os auspícios dos
quakers ingleses, Tuke montou um aparato de quase-família, visando impor ao
louco uma vida moral que infantiliza e culpabiliza o louco, com castigos, privações
e humilhações de toda ordem. Se Pinel considerava que "os alienados, longe
de serem culpados a quem se deve punir, são doentes cujo doloroso estado merece
toda a consideração devida à humanidade que sofre e para quem se deve buscar
pelos meios mais simples restabelecer a razão desviada” (apud PEREIRA, p. 114),
em Bicêtre impôs uma lei de ferro.
O
que há de novo em Pinel é a tentativa de estudar sistemática e metodicamente a
loucura. Influenciado pela botânica e zoologia, o método de Pinel calcava-se na
observação dos pacientes, seguida pela classificação dos sintomas. Pinel
considerava que a alienação tinha um substrato essencialmente mental, embora
mantivesse relações dinâmicas com o organismo do alienado, quer dizer, ele
postula o caráter subjetivo da alienação e sabe distinguir o paciente de seus
sintomas, além de conceber uma terapêutica para a loucura e de pensar o asilo
enquanto instituição voltada para a cura.
Sob o pomposo nome de terapêutica moral, Pinel, como de resto
toda a psiquiatria emergente, vai se apropriar das técnicas médicas e
disciplinares já utilizadas — fundadas em uma fisiologia própria da Idade
Clássica — para colocá-las em funcionamento em um regime estritamente
disciplinar: duchas, cadeiras giratórias (para fazer movimentar os espíritos
animais), gaiolas, etc., que tinham uma conotação médica passam a ser
utilizadas como elemento punitivos em um regime moral dentro de um espaço de
exclusão. Não medicalização do asilo, mas utilização de técnicas médicas já
desatualizadas em um regime moral.
Lembremos que foi a revolução
francesa que fez mudar este quadro. Ora, mera coincidência, ou será que a
revolução que ergue a burguesia ao topo do planeta, já não havia começado, em
sussurros, a lentamente modificar as formas de a apropriação do corpo? Somente
outra pesquisa nos poderá responder.
8. Conclusões
Ao longo do texto, vimos,
primeiramente, algumas questões de métodos, notadamente, os problemas envoltos
na genealogia. Vimos a relação entre Foucault e os epistemológos franceses,
sobretudo Canguilhem, e como Foucault herda deles certas concepções
epistemológicas. Expusemos os métodos arqueológico e genealógico do filósofo
francês, mostrando os débitos deste em relação a Nietzsche, bem como defendemos
que a genealogia está ancorada em uma ontologia política do saber, estofo de
sua epistemologia política
Vimos,
depois, como Foucault ensaia uma genealogia da psiquiatria, em diversos textos,
envolvendo a determinação dos sujeitos criados, os loucos e os médicos, as
relações entre o saber psiquiátrico e poder político, na figura do médico que
comanda esta instituição de controle que é o hospital. Vimos também como o
internamento precede a medicalização da loucura, e como, juntamente com o
louco, mendigos, bruxas e sodomitas, dentre outros, foram também capturados na
máquina asilar.
Ao mesmo tempo, passamos em revista,
ainda que brevemente, a história da psiquiatria, expondo como os psiquiatras
fazem uma história tradicional de sua disciplina, que Foucault e Canguilhem, ao
que tudo indica, reprovariam. Introduzimos alguns elementos da psiquiatria
contemporânea, nos esforçando para mostrar como os psiquiatras operam, se não
atualmente, ao menos no último período.
E o que concluir? Devemos jogar fora
a psiquiatria e buscar outras alternativas para trabalhar com os loucos? O
diagnóstico que Foucault e a tradição da antipsiquiatria faz da medicina mental
é, no mínimo, alarmante, colocando em xeque, mesmo, suas bases epistemológicas
mais profundas. Ao mesmo tempo, conforme parcialmente discutido, a psiquiatria
contemporânea tornou-se mais sutil, e os mecanismos de sua atuação se
estilhaçaram. Pode-se dizer que Foucault mira uma sociedade disciplinar, quando
atualmente vivemos em uma sociedade de controle (DELEUZE, 1992).
Se a psiquiatria que Foucault mirou
não existe mais, tendo ocorrido verdadeira ruptura, tão a gosto de parte da
filosofia francesa mais contemporânea, a presença de manicômios ainda assombra
muitos lugares, e é o destino de milhares de pessoas no Brasil, em forte
sofrimento não só psíquico, como social. As críticas dos antipsiquiatras,
Foucault incluso, certamente contribuíram com essa mutação epistemológica e
terapêutica da psiquiatria, posto que a velha psiquiatria policial parece
incompatível com sociedades modernas e democráticas.
Dizemos parece, posto que o
perigo dos manicômios é constante. Em tempos de retrocesso em muitas áreas, com
setores abandonado de mala e cuia as conquistas do iluminismo e dos direitos
humanos, a maquinaria asilar pode bem retornar, com os usos políticos que dela
foram feitos, como se viu. É necessário manter vigilância contínua sobre este
ponto, como em outros. Afinal, se, como vimos, a história dos positivistas do
século XIX não existe, periga que velhos fantasmas voltem a nos assombrar.
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[1] Cf FERNANDES, M.I.A., SCARCELLI, I.R., COSTA, E.S. ;
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[2]BAYLE, A. L., Pesquisas sobre doenças mentais, Rev.
Latinoam. Psicopat. Fund., São Paulo, v. 12, n. 4, p. 752-758, dezembro 2009;
PEREIRA, M.E.C., Bayle e a descrição da
aracnoidite crônica na paralisia geral: sobre as origens da psiquiatria
biológica na França, Rev. Lat. Americana de Psic. Fund., SP, v. 12, nº4, p.
747-71;
[4]
Ibidem nota 4
[5]
CUNHA, M.C.P.; 1988, p. 100
[6]
Ibidem.
[7]
Cf. MADALENA, J.C.; História da Esquizofrenia, RJ : Imago, 1982
[8]
Cf. SABBATINI, R.M.E.,
História dos tratamentos de choque,
Campinas: UNICAMP, 1997
[10]
Terapia pelo esfriamento do corpo. Cf. SABBATINI, R.M.E, 1997, p. 7
[12]
(...) “as injeções, por portugueses que nunca jamais em tempo algum viram tubos
de injeções. O Dr. Franco da Rocha não vem ás enfermarias, está entregue o
hospício sobre a direção de boçais portugueses. A mim me mandaram dormir na
rotunda, lugar este que nem as cisternas da capital fedem tanto a urina quanto
este quarto” (CUNHA, M.C.P.; 1988, p. 98) e, também, como Lima Barreto descreve
uma notícia de jornal, onde havia se publicado um relato de um ex-interno do
Juquery: (...)“eu, que ai achei-me internado de março a setembro de 1903,
presenciei, por mais de uma vez, de que modo certos portugueses grosseiros,
boçais, propiciavam os medicamentos aos infelizes que, receosos de serem
envenenado, não queriam engolir os ditos remédios. Derrubavam o paciente,
punham um pé (uma pata) sobre o pescoço do mesmo, apertavam-lhe o nariz, etc.
Naquele tempo (e quiça agora) a maioria, na vossa presença [enquanto
jornalistas e pessoas externas] e na de outros médicos, a maioria daqueles
empregados mercenários mostrava-se humilde, comedida; quando se achavam a sós
com os infelizes reclusos, que triste ...reverso da medalha” (apud CUNHA,
M.C.P.; 1988, p. 91-2)
[13] DAUD JR, N.; Neoliberalismo, luta antimanicomial e pós-neoliberalismo
in: FERNANDES, M.I.A., SCARCELLI, I.R., COSTA, E.S. ; Fim de
século ; ainda manicômios ?, SP : IP-USP, 1999
[14]SALLEH, M.A.; PAPAKOSTAS, I.; ZERVAS, I.;
CHRISTODOULOU, G.; Eletroconvulsoterapia: critérios e recomendações da
Associação mundial de Psiquiatria, Rev. Psiq. Clin. 33 (5), p. 262-267, 2006
[15] WEISSMANN,
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[16] FREUD, S.; SP: A história do movimento
psicanalítico, SP: Abril Cultural, 1978
[17] Especialmente depois dos trabalhos de Wundt, mestre
de Krafft-Ebing. Wundt é considerado o fundador da medicina experimental i. é,
da psicologia considerada enquanto ciência, distinguindo-se, pois, da
filosofia. Cf. BOCK, A. M. et. al; Psicologias – introdução ao estudo da psicologia, SP: Saraiva, 1999, 13ª ed.
[18] PAIM, I.; Curso de psicopatologia, SP:
Grijalbo, 1977, 3ª Ed; PAOLIELLO, G., O problema do diagnóstico em
psicopatologia, Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., IV, 1, 86-93; FÉDIDA, P.; De
uma psicopatologia geral a uma psicopatologia fundamental. Nota sobre a noção
de paradigma, Rev. Latinoam. de Psicopatologia Fundamental v. 1, n. 3, setembro
de 1998; RODRIGUES, A.C.T.; Karl Jaspers
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[19] FÉDIDA, P.; De uma psicopatologia geral a uma
psicopatologia fundamental. Nota sobre a noção de paradigma, Rev. Latinoam.
de Psicopatologia Fundamental v. 1, n. 3, setembro de 1998
[20] CAMPAILLA, 1982, Cap. III, p.
5-15
[21] RODRIGUES, A.C.T.; Karl Jaspers e a abordagem fenomenológica em psicopatologia,
Rev Latinoam. Psicopat. Fund., VIII, 4,
754-768
[22] Cf. PAIM, 1977, p. 78-82
[23]
Ibidem, p. 82-83
[24]
De pródromo, ou seja, os sinais que indicam a irrupção futura da doença.
[25]
Parte mais exterior do cérebro. Cf. CROCE, CROCE JR, 1994, p. 64.
[26]“Cenestesia:
sentimento vago da existência sem o auxílio dos sentidos; sensibilidade”
(CROCE, CROCE JR, 1994, p. 46)
[27]Cf. MOREL, B.-A., Tratado das
degenerescências na espécie humana Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., São Paulo,
v. 11, n. 3, p. 497-501, setembro 2008; CAPONI, S.; Para uma genealogia de la
anormalidad: la teoria de la degeneración de Morel, Scientle Studiae, SP, v. 7, no. 3, pgs. 425-45, 2009; PEREIRA,
M.E.C., Morel e a questão da degenerescência, Rev. Latinoam. Psicopat. Fund.,
São Paulo, v. 11, n. 3, p. 490-496, setembro 2008
[28] Demência
precoce com tendência ao isolamento
[29] Demência
precoce com alternância entre motricidade e isolamento
[30] A filosofia contribuiu bastante para a psiquiatria,
especialmente para a corrente analítico-existencial,
cujos principais procedimentos passam pela investigação e compreensão da vida do
paciente (distinto de explicação), para mostrar onde o paciente falhou no
exercício de sua liberdade e fazendo com que ele experimente-a de maneira
radical. Já a teoria da comunicação,
baseada nos trabalhos de Bateson (1953), buscava explicar a esquizofrenia a
partir do estudo das formas de comunicação e relação afetiva nas famílias dos
enfermos, mostrando como paradoxos nestas podem levar ao desate de
comportamentos esquizofrênicos futuros. Para a psiquiatria que se apóia tanto
na teoria geral dos sistemas quanto
na cibernética, o organismo é um
sistema de processos em interação e não de funções somadas; defendem os adeptos
destas idéias que uma alteração na personalidade é total e não funcional, tese
completamente oposta a vários compêndios de psicopatologia, que estruturam-se
sob a égide função-afecção. A lingüística
seja aquela reinterpretada por Lacan a partir da psicanálise seja em si,
contribui para a psiquiatria na medida em que oferece elementos para a análise
da fala, inclusive a dos enfermos. Cf. GRANDINO, NOGUEIRA, 1985;
CAMPAILLA,1982.
[31] Dos quais
já tratamos mais acima.
[32] Szasz defende a inexistência da doença
mental, bem como de seu substrato orgânico, com raras exceções
laboratorialmente comprováveis.
[33] AMARANTE,
P. Uma aventura no manicômio: a
trajetória de Franco Basaglia in História,
Ciências, Saúde — Manguinhos, I(1), pp. 61-67, jul-out., 1994
[34] Conforme
relata FREUD, S.; A história do movimento psicanalítico, SP: Abril
Cultural, 1978, p. 44. “Nestes casos parecidos, é sempre a coisa genital,
sempre, sempre”. Freud teria se espantado ao ouvir isto da boca de Charcot.
[35]
Patologia pode tanto se referir a uma disciplina médica que estuda as afecções
quanto ser um sinônimo de fenômeno mórbido, seja psicológico seja fisiológico.
Quando utilizarmos o termo no primeiro sentido, ele virá em itálico.
[36]
JANET, P.; O automatismo psicológico. Ensaio de psicologia experimental
sobre as formas inferiores da atividade humana, Rev. Latinoam. Psicopat.
Fund., São Paulo, v. 11, n. 2, p. 310-314, junho 2008 e PEREIRA, M.E.C.; Pierre
Janet e os atos psíquicos inconscientes revelados pelo automatismo psíquico das
histéricas, Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., São Paulo, v. 11, n. 2, p.
301-309, junho 2008
[38] BINSWANGER, L.; Sobre a psicoterapia, Rev.
Latinoam. Psicop. Fund. IV, 1, 143-166 e PEREIRA, M.E.C.; Sobre os
fundamentos da psicoterapia de base analítico-existencial, segundo Ludwig
Binswanger, Rev. Latinoam. Psicop. Fund. IV, 1, 137-142
[39] JASPERS, K.; A abordagem fenomenológica em
psicopatologia, Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., VIII, 4, 769-787 e
RODRIGUES, A.C.T.; Karl Jaspers e a abordagem fenomenológica em
psicopatologia, Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., VIII, 4, 754-768
[40] A História da loucura
é um livro sui generis, seja em
relação aos escritos passados e futuros de Foucault, seja em relação ao que se
produzira até então acerca da loucura. Sem dúvida nela encontramos uma análise
que liga a formação do mundo psiquiátrico do século XIX com a sociedade de
então, e todas as forças em luta. Contudo, Foucault dá ênfase excessiva à
questão das mentalidades. Poderíamos chamar o livro de História das
mentalidades sobre a loucura na Idade Clássica, sem que, com isto, tivéssemos
que alterar uma única linha do livro de Foucault.
[42]
(...) “a lettre de cachet não era uma
lei ou decreto, mas uma ordem do rei que concernia a uma pessoa,
individualmente, obrigando-a a fazer alguma coisa. Podia obrigar alguém até
mesmo a casar-se por uma lettre de cachet.
Na maiori das vezes, porém, ela era um instrumento de punição” (FOUCAULT,
2005b, p. 95)
[44] Cf.
FOUCAULT, 2008
[45] Ministro de
Luis XIV e teórico do mercantilismo
[46] Foucault
elaborará o tema da Aliança sobretudo na História
da sexualidade I: a vontade de saber, RJ: Graal,
[47]
No curso de 1973-74, O poder psiquiátrico, Foucault elabora uma pequena história das
tecnologias políticas da verdade. A partir de uma exposição acerca da anamnese
e do interrogatório clínico, técnicas psiquiátricas, Foucault distingue duas
grandes técnicas de obtenção da verdade: verdade-acontecimento
e verdade-demonstração. A primeira é
muito antiga e parte de um entendimento da verdade como não-universal, e
dependente da ocasião para aparecer; disto, alguns operadores especiais que a
incitassem, a fizessem sair da toca. A segunda, que não nos interessa no
momento, parte de uma verdade universal, que necessita de alguns instrumentos,
da ratio correta para ser adquirida;
ela é como que um direito universal do sujeito, e teve nas técnicas de
inquérito seu grande trunfo, do qual resultou a ciência moderna.
A
verdade-acontecimento foi central para a medicina por muitos séculos.
Pautava-se então, na noção de crise como nodal, como o referencial
teórico-prático da operacionalidade médica. Ela era identificada como o momento
no qual a essência da doença se manifesta, cabendo, pois ao médico, mostrar sua
força contra a crise ao manipular, ao gerir as forças da natureza contra a
morbidez. A crise não pode ser gerada; o médico deve estar atento para saber
quando ela eclodirá para somente então, já preparado, intervir no curso dos
fatos.
[48] Já
explicaremos a quantas andava a medicina dos nervos e dos humores nestes tempos
de internamento.
[49] TUBINO, P.; Medicina
na Grécia antiga, UnB: 2009 e também PEREIRA,
M.E.C.; Cullen e a introdução do termo “neurose” na medicina, Rev.
Latinoam. Psicopat. Fund., São Paulo, v. 13, n. 1, p. 128-134, março 2010
[50] SAURI,
J.J.; A construção do conceito de
neurose (I). os vapores e os nervos, Rev
Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, VIII, nº, 73-85
[51]
Ibidem, p. 76 e TUBINO, ibidem
[52]
Casamentos ajeitados, geralmente mais por questões ou políticas, ou econômicas,
muitas vezes pelos dois.
[53]
FOUCAULT, 2007c, p. 273-276
[54] SAURI, J.J; A construção do conceito de neurose (II). Nosologia e neurose, Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., VIII, 2, 289-302
[55]
Membrana que envolve o cérebro. Cf CROCE, CROCE JR, 1994, p. 83
[56]
Falta de tensão das fibras. Cf CROCE, CROCE JR, 1994 p. 25
[57]
Excesso de tensão
[58] PEREIRA, M.E.C.; Cullen e a introdução do termo
“neurose” na medicina, Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., São Paulo, v. 13, n.
1, p. 128-134, março 2010
[59]
Ambos foram fartamente expostos por Foucault em inúmeras oportunidades.
Ressaltamos vp, avfj
[61]
Cf. FOUCAULT, O poder psiquiátrico, SP: Martins Fontes, 2006
[62] PEREIRA,
M.E.C.; Pinel – a mania, o tratamento moral e os inícios da psiquiatria
contemporânea, Rev Latinoa. de Psicop. Fund., VII, 3, 113-6
Apontamentos para a genealogia da psiquiatria
Sumário
1. Introdução
2. Primeiro capítulo:
Pequena notação de método: epistemologia política e genealogia
2. 1. Fontes
epistemológicas de Michel Foucault
2.2.
Ontologia do saber
Conceito de saber
A ordem do discurso
O regime de verdade
2.3. O método: a genealogia
3. Segundo capítulo: A
situação desta pesquisa: Observações metodológicas e analíticas
4. Terceiro capítulo: Para
compreender a psiquiatria
4.1. A
psiquiatria (para os psiquiatras)
Uma
medicina mental
A terapêutica
Psicofarmacologia
Os tratamentos de choque
As psicoterapias
4.2. O papel da Psicopatologia
Estudo de caso:
Psicopatologia do juízo
Conclusões
4.3.
A história da psiquiatria (para os psiquiatras)
5. Quarto capítulo: Fundamentos da crítica de Foucault
6. Quinto capítulo: A formação do mundo psiquiátrico
Proveniência do internamento
Emergência do internamento
Os desvios
religiosos e a medicina
7. Sexto capítulo: Medicina ou psiquiatria?
Cullen inventa a neurose e a
nosologia
7.1. Rumo à biopolítica: as três medicinas sociais
da Ilustração e a tecnologia do hospital
O
hospital
7.2. Pinel,
francês
8. Conclusões
Bibliografia
1.
Introdução
O século XIX
viu raiar uma série de disciplinas que se pretendiam científicas, dentre os
quais, pelas analogias possíveis e ligações diretas, salientamos duas: a
psiquiatria — medicina mental — e a psicanálise. Além disso, a emergência da
figura do doente mental, noção nodal às duas disciplinas, e suas conseqüências
sociais, institucionais e epistêmicas somente engrossam nossas inquietações.
Afinal de contas, por quais motivos o século de ouro da burguesia, o século do
triunfo do capitalismo de mercado, do estabelecimento desta noção confusa
embora sensível de modernidade; enfim, por que justamente o XIX inventou
esta figura do louco enquanto doente mental? Por que ali as disciplinas médicas
ou pretensamente médicas das afecções mentais surgiram, com toda sua
parafernália asilar, suas terapêuticas de choque e psicoterapias?
O
objetivo deste curto ensaio é analisar a proveniência e a emergência de uma
destas disciplinas, esta pérola ocidental cujo nome é psiquiatria, a partir dos estudos de
Michel Foucault sobre a temática. Em fato, o pensador francês elaborou uma
maneira peculiar de abordar a questão, apropriando-se de todo um instrumental
teórico nietzscheano para mostrar, como, no fim das contas, estas disciplinas —
medicina, psiquiatria, psicanálise — responderam a interesses bastante
concretos da sociedade capitalista industrial urbana e burguesa em formação.
Embora
nossa ênfase nas elaborações foucaultianas, nossa análise não incorre no erro
de esquecer o que o permite. Foucault, em fato, é incluído por muitos autores
no rol dos antipisiquiatras (GRANDINO, NOGUEIRA, 1985, p. 33-37), quer
dizer, aqueles autores que (...) “questionam a psiquiatria como instituição,
assim como o conceito de doença mental e os tratamentos psiquiátricos”
(GRANDINO, NOGUEIRA, 1985, p. 34). Dentre Szasz, Basaglia, Laing, Cooper e
Castel, a obra de Foucault merece destaque, pela sua inovação e consistência
teórica além de sua amplitude temática. Não lançamos mão, contudo, destas
obras. Malgrados as semelhanças aparentes, diferem muito entre si.
Ao
mesmo tempo, — para sermos fiéis ao método genealógico de Foucault — buscamos
as fontes diretas. Afinal, afora as críticas, como os próprios psiquiatras
dizem de sua ciência? E o que Freud, este divisor de águas, o que o pai
da psicanálise diz de seu invento? Navegando neste mar de conceitos e práticas
psquiátricas, médicas ou pseudomédicas; nesta casuística assombrosa — onde se
encontram o imbecil e o uranista, a histérica e o esquizofrênico —;
nesses métodos terapêuticos, como a estrapada ou a traumatoterapia;
nestas fundamentações psicopatológicas, onde o delírio distingue-se da
alucinação e a neurastenia da hebêfrenia; nas distintas tipologias,
levantamentos, anamneses e entrevistas morosas, com seus inúmeros formulários
destinados a estabelecer quem é o louco e qual sua loucura. Enfim,
buscando entender o cerne da psiquiatria singramos por todo um período até
pouco bem obscuro e tivemos contato com textos que, ditos médicos, assombram:
que cura podem propor, quais doenças e quais curas podem identificar? E, o mais
importante, quais práticas eles fundam, quais relações estabelecem — a quais
interesses respondem?
Insistimos na
questão. Ela é, diz Foucault, importante: somente perguntando-nos a origem do
presente poderemos retraçar os delicados meandros da histórias, fazendo vir á
tona as lutas, o interesses e os interessados, com suas táticas, recuos,
avanços e investidas. Foucault, com sua concepção belicista e radicalmente
vertiginosa da história (BRUNI, 1989) elabora sua analítica das relações entre
poder e saber situando a psiquiatria e a psicanálise no lugar que lhes é de
direito: o seu, o de seu aparecimento. Assim, vinca-se o passado e o presente,
dando a luz ao processo intenso e multifacetário de origem da psiquiatria.
Nessa confusão, onde ciência e poder se complementam, se demandam e se necessitam,
qual o preciso lugar da psiquiatria: onde devemos situá-la? como devemos
entendê-la? E, fundamentalmente, o que ela criou, de onde ela criou e de onde
ela veio? Enfim, trata-se, para nós, neste pequeno trabalho, estabelecer como
foi possível a psiquiatria, o que no impele a desvelar qual correlação de
forças a engendrou e a qual correlação ela veio responder.
No primeiro capítulo, empreendemos uma síntese do
método foucaultiano, distinguindo genealogia e arqueologia e algumas heranças
nietzscheanas de Foucault.; Também enveredamos no rumo de dar certa
sistematicidade às produções metodológicas de Foucault, objetivando aclarar
suas produções.
No segundo capítulo e breve
capítulo, situamos esta pesquisa face à nossa démarche, apontando
limites, futuros desdobramentos e caminhos passados e vindouros.
No terceiro, avaliamos criticamente
a psiquiatria contemporânea a partir de alguns textos médicos, dando especial
ênfase àquilo que se tornou a marca mais conhecida da psiquiatria, o tratamento
de choque; mas também analisamos a psicopatologia, a partir de um texto talvez
desatualizado, mas que situa esta disciplina na época em que Foucault escreveu
e pensou a medicina mental. Também elaboramos um inventario crítico da maneira
como os psiquiatras contam a história de sua própria disciplina, contrastando
com as posições epistemológicas de Foucault.
No quarto capítulo, traçamos breve
comentário acerca de um estudo epistemológico de Foucault sobre a psicologia,
no caso, o primeiro livro publicado de Foucault, depois revisto e alterado.
No quinto e maior capítulo, entramos
propriamente falando em nosso objeto, analisando a formação da psiquiatria, os
sujeitos envolvidos e a parafernália medical implicada. Para tanto, nos
baseamos tanto em textos de Foucault, quanto em textos de psiquiatras tratando
de sua própria disciplinas..
No sexto capítulo, recapitulamos
alguns elementos, mostrando a constituição da psiquiatria contemporânea, a
partir de autores como Cullen e Pinel, elaborando também breve conclusão.
2. Pequena notação de
método: epistemologia política e genealogia
2.1. Fontes
epistemológicas de Michel Foucault
Chama-se
epistemologia àquela disciplina filosófica que estuda e reflete acerca da
natureza, forma, características, limites e obstáculos do conhecimento, bem
como sobre a verdade; dado isto, a epistemologia pode ser tomada em duplo
sentido: teoria do conhecimento ou teoria da ciência (PENNA, 2000). Neste
último sentido, como é possível compreender o que é a ciência em sua singularidade
senão por meio de sua história e de sua sociologia?
Estamos a dizer, portanto, das
relações entre epistemologia e história das ciências, velha polêmica teórica. A
tradição epistemológica que baliza Foucault, que leva de Bachelard a
Canguilhem, passando por outros autores franceses (MACHADO, 1988), reflete
acerca disto em termos da contribuição de uma para outra e de outra para uma.
Detalhemos. Dado que muitos
historiadores da ciência fizeram seus trabalhos sem referir-se a qualquer
epistemologia, eles pensam que esta disciplina mais se aproveita do que provem
os trabalhos historiográficos. Canguilhem discorda: a epistemologia mais
contribui do que recebe. Uma história das ciências que não se vale da
epistemologia se reduz a mostrar as relações lógico-cronológicas de enunciados,
de problemas e de soluções; nada distinguiria, a partir deste ponto de vista, a
história da ciência da história de qualquer outro campo da cultura e o valor de
um historiador ou de seu trabalho historiográfico seria determinado pelo mero
acúmulo de saber, por sua erudição. A história de uma ciência seria o
inventário de tudo que foi produzido sobre um objeto, quer dizer, o historiador
deveria seguir uma linha móvel de progresso que deságua no objeto e na ciência
atual.
Contrário a esta posição,
Canguilhem cita Suzanne Bachelard: “Que a atividade do historiador seja
retrospectiva é um facto que lhe impõem limites, mas que lhe dá poderes. O
historiador constrói seu objecto num espaço-tempo ideal. Compete-lhe evitar que
este espaço tempo seja imaginário” (CANGUILHEM, 1977, p. 14). Portanto, o
passado não jaz dado: o historiador, na minúcia de seu saber e em seu bailar
teórico, cria a memória, altera o passado, torna ele verde ou cinza. Canguilhem
está a se opor à concepção metódico-positivista continuísta de história,
facilmente perceptível na máxima de Leopold von Ranke, segundo a qual o
historiador deve (e pode) apresentar as coisas tal qual elas realmente se
passaram (CANGUILHEM, 1977, p. 12).
Exemplificando, Canguilhem cita o
caso da botânica. No século XVIII, os botânicos baseavam-se na fisiologia
animal, dividindo esta área em fisiológos-químicos e fisiólogos-físicos. A
botânica atual, ao contrário, baseia-se na bio-química e na biofísica. Quer
dizer há uma descontinuidade radical entre uma e outra; há, em termos
bachelardianos, um corte epistemológico: duas racionalidades diferentes,
que balizam ciências diferentes, e cujos objetos são diferentes.
No jogo desta relação, três
personagens e suas diferentes relações com o saber: o cientista, aquele
que efetivamente gera ciência; o epistemólogo, o que constrói um
meta-saber, isto é, saber crítico do próprio saber; e o historiador das
ciências, que faz construir o passado, nos termos já por nós dito. Cabe ao
cientista conhecer o passado das investigações da mesma ordem que a sua, com um
preciso fim heurístico, dado ser o objetivo do cientista o progresso de sua
teoria; apesar disto, o próprio Canguilhem reconhece como são relativamente
raros os cientistas com conhecimento do passado de suas disciplinas, o que
demonstra como a história das ciências não é originária, mas complementar à
prática científica propriamente dita. Já quanto ao epistemólogo, seu problema é
abstrair o processo por detrás dos enunciados científicos que se pretendem
verdadeiros, visando encontrar nos atos do saber os meios que permitiram a este
maior eficácia; para tanto, o epistemológo deve instalar-se no interior dos
enunciados científicos, imitando a prática do cientista, quer dizer, sabendo
como cientista pode produzir o que produziu e porque o fez. Fica explícito,
assim, que como se trata da análise de um processo, a história da ciências é
central, fundante ao ofício do epistemólogo.
Vemos, portanto, que nesta
tradição filosófica — a mesma de Foucault — a história das ciências ocupa papel
fundamental em relação à epistemologia. O historiador das ciências trabalha com
o passado de uma determinada produção cultural cuja especificidade é buscar a
verdade. Passado: designação dos antecedentes das atuais condições de
exercício. Com isso, o historiador das ciências corre um risco, o de aplicar os
atuais modelos científicos ao passado; quer dizer, perguntar o passado porque
lhe falta a maturidade lógica alcançada pela ciência atual. Compete ao
epistemólogo impedir que o historiador das ciências proceda desta forma,
deixando claro que o que baliza a história da ciência é a descontinuidade; quer
dizer, cabe ao epistemólogo reativar o sentido da história de uma ciência:
ruptura epistemológicas entre normas científicas distintas. A partir disto, o
historiador das ciências, se valendo da epistemologia, não pode confundir “a
persistência dos termos com a identidade dos conceitos, a invocação dos fatos
de observação análoga com parentesco de método e de problematização” (CANGUILHEM,
1977, p. 20).
Portanto, Canguilhem, orientador
e fonte de Foucault, elabora, a partir de Bachelard, uma história
epistemológica, onde epistemologia alimenta a história e a história alimenta a
epistemologia, em análises balizadas nos conceitos de ruptura, corte
epistemológico, descontinuidade. Seu método se chama, então, da recorrência:
“jurisdição crítica sobre a anterioridade de um presente científico, que está
isento, precisamente porque científico, de ser ultrapassado ou retificado”
(CANGUILHEM, 1977, p. 20).
*
São estas as maiores influências
histórico-epistemológicas de Foucault. Já veremos como elas se refletem nas
análises do filósofo francês.
Compreenderemos como
epistemologia política toda aquela análise que situa esses ditos elementos
acerca do conhecimento em face da política, das relações de poder entre os
homens, das condições sociais de produção, circulação e armazenamento do saber.
Dado nosso recorte, e mais especificamente, por epistemologia política
entendemos as elaborações realizadas por Foucault, a partir de uma
interpretação tanto da filosofia de Nietzsche quanto da epistemologia francesa,
que redundaram em uma teoria política do saber e em um método de análise que
permite tomá-lo como forma de poder. Em
suma, o objetivo de tal teorização é mostrar que “por trás de todo saber, de
todo conhecimento, o que está em jogo é uma luta de poder. O poder político não
está ausente do saber, ele é tramado com o saber” (FOUCAULT, 2005b, p. 51).
Trata-se, assim, da constituição tanto de uma ontologia do saber quanto de um
método analítico — a genealogia — e de um modelo teórico do poder. Analisemos
cada uma destes elementos componentes.
2.2.
Ontologia do saber
Por
ontologia do saber compreenderemos: um conceito de saber; conceito de ordem do
discurso (por conseguinte, ordem do saber); e, conceito de regime de verdade.
Que desde já fique claro que conhecimento e saber são, para nós, sinônimos
neste texto.
Embora
esta distinção um tanto quanto rígida, estes três conceitos estão fortemente
imbricados: um supõe e baseia o outro, etc. Quer dizer, a separação que ora
fazemos tem como base tanto a necessidade de explicitar com máximo de rigor o
que caracteriza um e outro conceito, e, também, o fato de suas fontes serem
diferentes. Não há nenhum texto onde Foucault una esses conceitos, dando-lhes a
necessária correlação com fins analíticos. É exatamente isto que pretendemos
fazer neste tópico.
Conceito de saber
Para Aristóteles o
conhecimento é um impulso natural presente em todos os humanos. De onde que, se
conhecer é natural, por extensão também é natural o conhecimento, os objetos e
os sujeitos. Para estes, não há história, senão aquela que leva do mais simples
ao mais complexo, do menos lógico ao mais logicamente refinado. Foucault discorda.
Na série
de conferências editadas sob o nome A verdade e as formas jurídicas, M.
Foucault elabora uma teoria política do saber ou, o que ele chamou então de política
da verdade. Trata-se, para ele, de mostrar como o saber não é natural, como
os objetos, os campos de saber, os sujeitos de conhecimento e a verdade não
estão dados, mas são produzidos pelas práticas sociais, notadamente as práticas
jurídicas.
É a
partir da filosofia de Nietzsche que o epistemólogo de Poitiers buscará
elaborar tal teoria. Nietzsche, diz ele, “faz a análise histórica da própria
formação do sujeito, a análise histórica do nascimento de um certo tipo de
saber, sem nunca admitir a preexistência de um sujeito de conhecimento”
(FOUCAULT, 2005b, p. 13). De fato, para Nietzsche o conhecimento é uma
invenção, Erfindung, em alemão. Erfindung se contrapõe a Ursprung,
origem ou fundamento originário, termo este que terá bastante importância
também no método de Foucault.
Toda Erfindung
é uma ruptura cuja origem é baixa; quem faz solenes as origens são os
historiadores. Também é assim com o conhecimento. Se ele é uma invenção, ele
não é inerente ao homem: não se trata de um instinto ou de um desejo natural.
Para Nietzsche, diz Foucault, “o conhecimento é simplesmente o resultado do jogo,
do afrontamento, da junção, da luta, do compromisso entre os instintos”
(FOUCAULT, 2005b, p. 16). O conhecimento é um efeito de superfície da batalha
entre os instintos: ele é contra-instintivo, é contra-natural. Entre as coisas
e o conhecimento não há ligação necessária, assim como também não há nada que
ligue a priori natureza humana e conhecimento.
“É contra um mundo sem ordem, sem encadeamento, sem
formas, sem beleza, sem sabedoria, sem harmonia, sem lei, que o conhecimento
tem de lutar. É com ele que o conhecimento se relaciona. Não há nada no
conhecimento que o habilite, por um direito qualquer, a conhecer esse mundo.
Não é natural à natureza ser conhecida” (FOUCAULT, 2005b, p. 18)
A
relação entre conhecimento e natureza é “uma relação de luta, dominação,
subserviência, de compensação (...) de poder e de força, de violação (...) e
não percepção, reconhecimento, identificação delas ou com elas” (FOUCAULT,
2005b, p. 18).
Foucault,
asseverando Nietzsche, rompe com toda a tradição filosófica ocidental para a
qual haveria uma unidade, uma continuidade que levaria do conhecimento às
coisas e vice-versa; mas, se entre coisas e conhecimento há uma batalha, vemos
a dita unidade esfarelar-se no ar. Além disso, trata-se de dissolver outra
unidade, a do sujeito: o conhecimento e o instinto não são a marca da soberania
e da força unitária do sujeito; eles estão em guerra, é a violência da batalha
que caracteriza a relação de um com outro, e não a de uma calmaria do Mesmo que
se reencontra consigo.
Para explicar a origem
do conhecimento Nietzsche retoma Spinoza para marcar sua posição. Este último
pensava que para compreender (inteliggere) as coisas, é necessário que
se evite rir (ridere), deplorar (lugere) e odiá-las (detestari).
Nietzsche diz que não: o conhecimento seria resultado da guerra entre os
instintos, como que resultado parcial da luta entre eles, momento de trégua,
estabilização temporária da luta entre as três paixões. Compreender o
conhecimento implica parar de tê-lo como beatificado, puro; é por meio da
compreensão do jogo de interesses, das relações de força, de poder, de
dominação que podemos compreender o conhecimento. O conhecimento é fruto da
luta de três más relações que não respeitam, não aproximam, mas riem do objeto;
que não o acolhem, mas deploram, lamentam-no; que não o amam, mas o odeiam,
buscam destruí-lo.
O fato de advir da luta explica
algumas características do conhecimento. Primeiro, o fato de ele ser
generalizante: como ele é violência, ele esquematiza, solapa o que é diferença
nas coisas em benefício de si mesmo. Segundo, o fato de ele, paradoxalmente,
ser particular: como o conhecimento é maldade, ele se desenvolve como duelo,
relação de força aplicada sobre cada coisa particularmente. Terceiro, o fato do
conhecimento ser perspectivo: por perspectivo Foucault entende o fato do
conhecimento não possuir essência, unidade ou condições universais; como a luta
entre os três instintos não terminou, mas somente estabilizou-se
temporariamente, resultando no conhecimento, este é, portanto, rearranjo ou
trégua temporária advindo de relações precárias; ou seja, “o conhecimento é
sempre uma relação estratégica em que o homem se encontra situado (...) Pode-se
falar do caráter perspectivo do conhecimento porque há batalha e porque o conhecimento é efeito dessa
batalha” (FOUCAULT, 2005b, p. 25). Por fim, e como decorrência desta última
característica do conhecimento, o fato do interesse; bem sabemos que há toda
uma tradição filosófica que compreende o conhecimento, mais precisamente, o conhecimento
científico, como desinteressado, como a relação de candura que faz a verdade
brilhar em sua pureza criadora. Ora, se, para nós, o conhecimento é fruto de
relações estranhas, externas a si, ele é sempre interessado, pois fruto da luta
de outrem; conhecimento não exclui desejo: é fruto destes; o conhecimento não
desata as maldades do poder, mas muito ao contrário, não só as aplica, como ele
mesmo é, uma relação de poder contra as coisas; o conhecimento não é
independente, autônomo ou livre, mas dependente, subserviente e
interessado.
*
Se
quisermos aclarar os motivos que levam Foucault a tomar todo saber como poder
devemos ir mais longe e buscar as bases filosóficas do pensamento deste, ou
seja, recuperar Nietzsche. Trata-se de uma hipótese o que estamos a dizer.
Na Genealogia
da moral, Nietzsche distingue entre procedimento e sentido. A
propósito do castigo, diz ele que:
“Há que distinguir nele dois aspectos: o que nele é
relativamente duradouro, o costume, o ato, o ‘drama’, uma certa seqüência
rigorosa de procedimentos e o que é fluido, o sentido, o fim, a
expectativa ligada às realização desses procedimentos” (NIETZSCHE, 2007, p. 68,
grifos nossos)
Polemizando
com os psicólogos ingleses, Nietzsche busca mostrar como há uma diferença entre
a coisa material, queremos dizer, o procedimento, e o campo de
significações na qual as inserimos, o sentido. Por exemplo, o castigo
não foi feito para dar exemplo, ao contrário do que diz; é impossível dizer,
precisamente, porque ele surgiu já que há uma série de sentidos nos quais ele
foi inserido; o castigo foi, na verdade, “alternadamente submetido às
necessidades de se vingar, de excluir o agressor, de libertar a vítima, de
aterrorizar os outros” (FOUCAULT, 2007c, p. 22). O mesmo procedimento, castigar,
teve, portanto, pelo uma dezena de sentidos, que Nietzsche cita neste mesmo 13º
aforismo.
Analogamente,
o saber é o sentido que se dá às coisas do mundo. Só que esta relação que
designa, que interpreta, não é solta; dizer o sentido de algo significa
conformá-lo: se uma árvore é uma estrutura orgânica ou um a encarnação de um
deus, isto implica em mudança nas ações que se desenvolverão em relação a
ela. Nietzsche bem sabia disso, tanto é
que ele define como regra de método que “o conceito denotador de preeminência
política sempre resulta em um conceito de preeminência espiritual” (NIETZSCHE,
2007, p. 23); os que dominam politicamente dão o sentido as coisas.
Disto
Foucault extrai — é precisamente nossa hipótese — a base de sua epistemologia
política. O poder gera saber, ou seja, a dominação política gera sentido sobre
as coisas do mundo, sobre os procedimentos, visando se manter e fortalecer-se.
O saber gera poder, isto é, dizer o que algo é adequar-lhe a determinado estado
de coisas político, seja atual seja um projeto ou proposta.
A ordem do discurso
Em suma,
saber é poder: fruto de relações de luta, gerador de relações de poder,
instrumento de guerra, meio de dominação, etc.
Deve-se
notar, no entanto, que até agora consideramos o saber em si, se com isto
entendermos que não o situamos em suas condições de circulação e de produção,
mas somente naquilo que o caracteriza precisamente enquanto saber. É o que
faremos agora.
O ano de 1970 marca uma importante
inflexão teórica de Michel Foucault. É neste ano que, a propósito de sua aula
inaugural no Collège de France, ele tomará o discurso — que, lembremos,
é a parte material do saber, a escrita ou a fala — nas precisas condições que
acabamos de dizer. Façamos uma breve exposição da metodologia de M. Foucault
para que possamos compreender melhor o que há de novo nesta aula.
Até então, seu método, a arqueologia,
caracterizava-se pela análise do campo discursivo, isolado em si mesmo, ou,
antes, da análise da fronteira entre o discursivo e o não discursivo. Assim, o filósofo de Poitiers tomava como
possível um recorte analítico que se debruçasse sobre o discurso sem levar em
conta outros aspectos, como aqueles sociais, políticos, econômicos, etc, mas,
também, sem achatar o discurso sobre si mesmo: trata-se de analisar o limiar
entre discursivo e o não-discursivo. Deleuze: “Ele criou uma nova dimensão, a
que poderíamos dar o nome de dimensão diagonal” (apud DOSSE, 1994, p. 274)
Aproximando-se
dos historiadores da Terceira Geração dos Annales,
a chamada Nouvelle histoire (cf.
BURKE, 1997, p. 117), Foucault punha em prática uma história estrutural, de long durée, que busca a sistematicidade
das formações discursivas, em detrimentos de análises psicologizantes ou
individualizantes, que fariam uma história das obras, dos autores.
Problematizando o naturalizado, Foucault se propôs a fazer a história das
coisas inusitadas: a loucura, o olhar médico, o campo do saber imediatamente
antecedente ao surgimento das humanidades, etc.
O documento é, então, o centro da
problemática teórico-historiográfica foucaultiana, e não o devir, e, apesar de
tudo, nem mesmo a questão da estrutura propriamente falando, apesar da
aproximação Foucault-estruturalismo levado a cabo pela mídia do establishment intelectual francês; trata-se,
pois, de saber como levar a cabo a
“constituição de corpus coerentes e homogêneos de
documentos (...); o estabelecimento de um princípio de escolha (...); a
definição do nível de análise e dos elementos que lhe são pertinentes(...); a
delimitação dos conjuntos e subconjuntos que articulam o material estudado
(...); a determinação das relações que permitem caracterizar um conjunto”
(FOUCAULT, 2007a, p. 12).
O método de Foucault então posto em
prática, a arqueologia, se baliza nas supracitadas posições
histórico-filosóficas; podemos dizer, grosso modo, que trata-se de um método
estrutural de história do pensamento. Cada discurso é constituído por elementos
chamados enunciados – signos
relacionados a um conjunto de objetos, que prescrevem determinada posição aos
sujeitos e que podem ser repetidos em sua materialidade. A arqueologia busca
desvelar os enunciados considerados a partir de seus sistemas de formação, que definem um discurso. Em outros termos,
trata-se de analisar a lei de formação
de enunciados, buscando as formações
discursivas que constituem objetos, sujeitos, temas, etc., que permitiram a
articulação de diversos enunciados em um discurso ou conjunto de discursos.
Para o arqueólogo, não existe
necessidade no mundo, ou seja, tudo deve ser problematizado já que poderia ser
de outra forma. A história, ou elementos seus, tomados como continuidade ou evolução é o principal inimigo do arqueólogo e é justamente este
ponto que mais separa Foucault dos historiadores da Terceira Geração dos Annales; pelo continuísmo que era
próprio a estes historiadores, Foucault queria destruí-los, queria destruir a
forma hegemônica como então se praticava o ofício do historiador na França (cf.
DOSSE, 1994, p. 267-292).
Existem várias formas de
continuidade. Além daquelas propriamente históricas, como compreender a
história como continuidade, evolução, progresso, etc., existem outras não
imediatamente visíveis: o livro, o autor, a obra, etc.; são formas de continuidade, pois supõe unidades naturais, ou seja, desconsideram o próprio devir, em se focando na
permanência do Mesmo, do sujeito tomado como dado. Afora o fato de serem
conceitos operacionais continuístas, Foucault os considera, além disso,
unidades fracas para fundarem uma arqueologia. É no enunciado, tomado ele mesmo
como acontecimento, que uma
empreitada teórica de tipo arqueológica deve fundar-se. O enunciado não pode
ser descrito enquanto as formas de continuidade continuarem a ser tomadas como
originárias: a linguagem, os objetos, os temas, o estilo. A
unidade do discurso, a sistematicidade de diferentes enunciados, somente pode
ser buscada no enunciado considerado enquanto acontecimento – portanto, dotado
de um espaço e de uma geografia que lhe singularizam na história. A unidade do
discurso deve ser buscada nas formações
discursivas: as regularidades definíveis, a partir da correlação de
diferentes objetos e conceitos, em um mesmo funcionamento e ao mesmo regime de
transformações; e nas regras de formação:
condições às quais se submetem os elementos de uma formação discursiva, ou
seja, as condições de existência, coexistência, manutenção, transformação e
desaparecimento de uma formação discursiva. São estes os dois focos que
imprimem a unidade ao discurso.
*
É graças
a esse enfoque no enunciado tomado enquanto acontecimento que Foucault deve
isolar o saber do resto da sociedade, sem, contudo, considerá-lo de forma
ensimesmada, tal qual acima expusemos.
O que há de novidade na
aula inaugural, A ordem do discurso, são duas hipóteses. A primeira consta
logo nas primeiras páginas:
(...) suponho que em todas as sociedades a produção
do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e
redistribuída por certo número de procedimentos que têm por função conjurar
seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua
pesada e terrível materialidade” (FOUCAULT, 2005 p. 9).
A
segunda, um pouco mais adiante, considera que o discurso não é neutro, não é
desinteressado, mas está vinculado ao poder e ao desejo. O discurso não apenas
manifesta ou esconde desejo: é objeto de desejo; não apenas descreve ou traduz
as lutas e as dominações: é objeto de luta, luta-se para dominar o discurso.
*
Da
primeira hipótese, uma série de conclusões. Há uma ordem do discurso, um regime
discursivo que seleciona “quais discursos”: controle da produção, circulação e
aplicação do discurso. No campo discursivo há, portanto, procedimentos de
controle, os quais Foucault divide em internos e externos. Como estes últimos
darão ensejo para a teorização de um regime de verdade, abordemos, em primeiro
lugar, os procedimentos internos de controle.
Os
procedimentos internos de controle são exercidos pelos discursos sobre si
mesmos, funcionando, marcadamente, “a titulo de princípios de classificação, de
ordenação, de distribuição como se se tratasse, desta vez, de submeter outra
dimensão do discurso: a do acontecimento e do acaso” (FOUCAULT, 2005a, p. 21).
Foucault passa, então, a considerar diversos procedimentos, os quais citaremos
de maneira quase sumária, dividindo-os, contudo, em princípios de coerção
e de rarefação.
Procedimentos de coerção:
são os procedimentos de controle da aparição do discurso, quer dizer, que fixam
regras de surgimento e significação. O comentário: desnível entre os
discursos que são proferidos e desaparecem e aqueles que são permanentes, quer
dizer, que duram além de sua enunciação; estes dão ensejo a textos segundos,
discursos que se acumulam sobre outros discursos e cuja novidade “não está no
que é dito, mas no acontecimento de sua volta” (FOUCAULT, 2005a, p. 26),
portanto, limitar o acontecimento aleatório do discurso por meio da repetição
do mesmo. O autor: este entendido como principio de coerência,
significação e agrupamento do discurso; ainda que móvel ao longo da história,
nas sociedades contemporâneas o autor cumpre a precisa função de reduzir a
multiplicidade do discurso á forma identitária do eu. A disciplina:
trata-se de um corpo de proposições, regras, técnicas e métodos constitutivos
de uma sistematicidade anônima; esta relação de sistema permite que se agrupe
tudo que pode ser dito de verdadeiro ou aceito
sobre determinada coisa; a disciplina determina uma série de princípios
restritivos (objetos, técnicas, conceitos, instrumentos) que determinarão a
pertinência ou não de uma proposição a si; “a disciplina é um princípio de
controle da produção do discurso. Ela lhe fixa os limites pelo jogo de uma
identidade que tem a forma de uma reatualização permanente das regras”
(FOUCAULT, 2005a p. 36).
Procedimentos de rarefação dos sujeitos: são aqueles que
controlam não tanto as condições de aparecimento do discurso, mas, sim, de sua
circulação, de funcionamento dos discursos. Ritual: qualificação dos
sujeitos que falam, quer dizer, prescrição de posições, gestos, comportamentos
e fixação dos efeitos que cada discurso terá. Sociedades do discurso:
“cuja função é conservar ou produzir discursos, mas para fazê-los circular em
espaço fechado, distribuí-los somente segundo regras restritas, sem que seus
detentores sejam despossuídos por essa distribuição” (FOUCAULT, p. 39, 2005a). Rituais
da palavra: trata-se de sociedades do discurso difusas, mais amplas, cuja
função é também produzir discursos, mas de forma a não permitir a sua
permutabilidade: são funções, como o escritor e o sistema que o apóia, ou
formas prescritas ao discurso, como a do segredo técnico. Grupos
doutrinários: se eles assemelham-se à disciplina pelas condições que exige
(verdades comuns e regras de conformidade com os discursos válidos), a doutrina
questiona o sujeito que fala a partir do enunciado, excluindo todo conteúdo
inassimilável como heresia, justificando-se a partir da ortodoxia; o sujeito
que fala, carrega o sinal de uma pertença prévia, que a doutrina questiona
também. Apropriações sociais: trata-se da “maneira política de manter ou
de modificar a apropriação dos discursos com os saberes e os poderes que eles
trazem consigo” (FOUCAULT, 2005a, p. 44).
O regime de verdade
A primeira hipótese da Ordem do discurso é a de que existem
procedimentos externos de controle do discurso, os procedimentos de exclusão.
Aquele que Foucault aborda mais detalhadamente chama-se vontade de verdade,
mas há outros, como a interdição e a separação/rejeição. Interdição:
restrição de enunciação, quer dizer, “não se tem o direito de dizer tudo, que
não se pode falar de tudo, em qualquer circunstância, que qualquer um, enfim,
não pode falar de qualquer coisa” (FOUCAULT, 2005b, p. 9); três tipos
principais de interdição: tabu do objeto, ritual da circunstância e privilégio
ou exclusividade do sujeito que fala. Separação/rejeição: Foucault dá o
exemplo do louco, que nada mais é senão aquele cujo discurso não deve circular,
quer dizer, cuja materialidade de seu discurso deve, ao mesmo tempo ser
seccionada das demais, rejeitada em um aparato de saber, constituído de uma
rede de instituições, que escutam esse discurso, e lhe retira os poderes.
Mas é a vontade de verdade que mais nos importa. Ela rege nossa
vontade de saber desde o século VI a.C. Olhado por dentro, um discurso verdadeiro
ou falso não guarda semelhança com os demais procedimentos de exclusão, pois
estes devem ser arbitrários, dotados de aporte institucional; mas vista de
fora, a vontade de verdade se mostra como um procedimento de exclusão:
histórico, arbitrário e institucionalmente apoiado. Institucionalmente apoiado,
pois há os sistemas de livros, de edição, as bibliotecas laboratórios,
universidades, etc...; embora isto, o que reconduz a vontade de verdade é,
sobretudo, a maneira pela qual uma sociedade aplica o saber: formas de
valorização ou não, formas de distribuição de repartição, de atribuição.
Encarada por estas vias, a vontade de verdade mostra-se como sistema de
coerção: exerce, sobre os demais discursos, pressão e poder de coerção: os
discursos buscam autorizar-se pelo discurso da verdade. Há séculos que a
vontade de verdade só faz crescer; tanto é que outros procedimentos de exclusão
– interdição, sujeição e rejeição – se orientam no sentido da vontade de
verdade: esta os toma, os modifica, os reorienta, ao passo que ela mesma se
fortalece e se torna, mais e mais, incontornável.
Histórico, porque remete ao
surgimento da filosofia platônica, à separação entre poder e saber no Ocidente,
ao fim do sofista e ao surgimento da distinção verdadeiro / falso, que dará a
forma a mais total de nossa vontade de saber. É a partir da separação entre saber e poder e da distinção —
instituída pela filosofia platônica e pelo saber das testemunhas, próprio à
prática judiciária grega — entre verdadeiro e falso que nossa vontade de saber
tomará a forma que tem até hoje; forma geral, que funcionou historicamente como
procedimento de exclusão do discurso.
Passou por diversas mudanças durante os séculos que nos separam de
Platão, de Aristóteles, etc, mas não deixou, nunca, de funcionar como sistema
de exclusão, como atestam aqueles que ousaram opor-se a ela.
Por
que se fala tão pouco dessa vontade de verdade? Desde os gregos, na verdade,
desde Platão, o discurso verdadeiro não corresponde, não pode corresponder ao
desejo e ao poder; a verdade existe, no mundo das idéias, imutável, é este
mundo que é a corrupção das idéias; se a verdade não está em jogo, somente o
desejo e o poder estão. A verdade não pode reconhecer que uma vontade a guia,
portanto, mascara-a, e o faz de tal maneira, que a verdade aparece a nós como
rica, fecunda, doce, universal. Por isso não a vemos como sistema de exclusão,
tal como de fato ela se fez exercer.
A vontade de verdade, que faz girar, em torno de si, os
demais discursos, funciona como procedimento de exclusão. E isto porque, se em
todas as sociedades há um regime de verdade. Na nossa, ocidental, este toma
proporções imensas. Por regime de verdade devemos entender os discursos que
funcionam como verdade, regras de enunciação da verdade, técnicas de obtenção
da verdade, definição de um estatuto próprio daqueles que geram e definem a
verdade; portanto ligação circular entre verdade e poder: poder que produz
verdade e a sustenta, verdade que produz efeitos de poder. (cf.
FOUCAULT, 2007c, p. 14).
Esta concepção, que permite à Michel
Foucault conceituar a verdade de um ponto de vista estritamente discursivo,
toma esta como um “conjunto das regras segundo as quais se distingue o
verdadeiro do falso e se atribui ao verdadeiro efeitos específicos de poder” (FOUCAULT,
2007, p. 13) ou como um “conjunto de procedimentos regulados para a produção, a
lei, a repartição, a circulação e o funcionamento dos enunciados” (FOUCAULT,
2007 p. 14).
Um regime de verdade ou, o que interpretamos como
o mesmo, uma economia política da verdade indica as maneiras, os
procedimentos de troca, de mudança, de atribuição, de produção, de incitação,
de cessão, de constituição da verdade. Cinco características dessa economia em
nossas sociedades: o discurso científico e as instituições que o produzem
centralizam a verdade; esta é incitada constantemente pelos campos político e
econômico; há um grande consumo e uma grande difusão da verdade; há grandes
aparelhos de produção e difusão da verdade: universidades, exército, escritura,
mídia; por último, ela é objeto de debates políticos e confrontos sociais.
*
Portanto, “por trás de
todo saber, de todo conhecimento, o que está em jogo é uma luta de poder. O
poder político não está ausente do saber, ele é tramado com o saber” (FOUCAULT,
2005, p. 51). O discurso deve ser analisado em termos de estratégia, em termos
de guerra, de política, de interesse, como objetivo e meio de luta, mesmo
porque, na constituição mesma do conhecimento, e, por conseguinte, do discurso
está uma relação de força. Da mesma forma a verdade não existe fora das
relações de poder, pois ela mesma é uma relação de poder, fruto de relações de
poder, exercendo efeitos de poder. A verdade não só faz, integra as relações de
poder como, ela mesma, é uma relação de poder.
2.3. O método: a genealogia
A genealogia é um método
inspirado em Nietzsche. A obra de Nietzsche analisou elementos os mais variados
buscando estabelecer-lhes a genealogia, quer dizer, sua história não-
metafísica. Dentre estas obras talvez a mais famosa seja a Genealogia da moral, na qual o filósofo alemão empreende uma
pesquisa genealógica dos valores cristãos (como humildade, piedade, etc.)
mostrando buscar sua origem, ligada ao modo de vida dos escravos de Roma, e seu
desenvolvimento que somente pode ser pensado em relação ao poder que os
sacerdotes adquiriram desde então. Nietzsche foca-se no corpo, na vivência dos escravos, submetidos pelos
bárbaros germânicos, para mostrar como os valores não surgem fora do mundo, e
depois caem do céu à guisa de pingos de chuva; ao contrário, os valores vêm dar
sentido, vêm fundamentar determinados modos de vida. Portanto, colocar as
coisas no mundo dos homens, pensá-las em sua própria história, através da
análise documental que busque a vida, o corpo daqueles que viveram, e não as
letras mortas nos livros (cf. NIETZSCHE, 2007).
O genealogista não se contenta
com o azul dos sonhos metafísicos, com aquilo que se diz desde sempre dado; a
genealogia, diz Nietzsche prefere “o cinza, isto é, a coisa documentada, o
efetivamente constatável, o realmente havido” (NIETZSCHE, 2007, p. 13). A
genealogia é um método, portanto, que busca saber, na acepção dada pelo
filólogo-filósofo, o valor dos valores, o peso próprio, a real importância, a
origem e o contexto da origem dos valores; não qualquer saber: deve-se
demonstrar documentalmente, para não ficar na mera verborragia bíblica.
Todos estes elementos são
resgatados por Foucault em seu famoso texto, Nietzsche, a genealogia e a história. Em se tratando de um método
de análise histórica, a genealogia funda-se na análise de documentos, conforme
o dito, que situa as coisas na história de forma anti-metafísica. “A genealogia
não se opõe à história como a visão altiva e profunda do filósofo ao olhar de
toupeira do cientista; ela se opõe, ao contrário, ao desdobramento
meta-histórico das significações ideais e das indefinidas significações. Ela se
opõe à pesquisa de 'origem'” (FOUCAULT, 2007c, p. 16). Em alemão há, ao menos,
três palavras para origem: Ursprung, Entestehung e Herkunft.
Ursprung
é origem no sentido de essência metafísica, sendo que uma
pesquisa deste tipo busca o fundamento originário das coisas, anteriores ou
mesmo fora da história. É a esta “origem” que a genealogia se opõe.
Lendo
Nietzsche, Foucault interpreta que o genealogista não deve buscar a essência das coisas, porque nada tem
essência – o que é indicado por este nome foi construído pouco a pouco, por
acidentes externos as coisas; é que “o que se encontra no começo histórico das
coisas não é a identidade ainda preservada da origem – é a discórdia entre as
coisas, é o disparate” (FOUCAULT, 2007c, p. 18). Não existe uma verdade tal
querem os platônicos; não existe nenhum eidos.
O genealogista compreende que “a história com suas intensidades, seus
desfalecimentos, suas grandes agitações febris, com suas síncopes, é o próprio
corpo do devir. É preciso ser metafísico para lhe procurar uma alma na
idealidade longínqua da origem” (FOUCAULT, 2007c, p. 20), é preciso ser
metafísico para empreender uma pesquisa de Ursprung.
Por isso, o objeto da genealogia é indicado mais fidedignamente
pelas palavras alemãs Herkunft e Entstehung, que, ainda que
ordinariamente traduzidas por origem, tal como Ursprung, indicam, mais exatamente, outras coisas.
A
melhor tradução para Herkunft é “proveniência”, pertencimento a um grupo,
povo, clã ou tradição. Trata-se de fazer aparecer o acontecimento que permitiu
a formação de um conceito ou caráter; portanto, em dissociando o que hoje se
dá, pesquisar o que se perdeu. Sem nenhum traço evolucionista, a Herkunft quer “descobrir que na raiz
daquilo que nós conhecemos e daquilo que nós somos – não existem a verdade e o
ser, mas a exterioridade do acidente” (FOUCAULT, 2007c, p. 21). Pesquisa de
herança, das falhas, da heterogeneidade, da instabilidade, que dissocia o que é
dado como uno. Como é em um corpo que as marcas se inscrevem, que os
acontecimentos se fazem sentir, é justamente na articulação entre corpo e
história que a Herkunft se situará.
Quanto a Entstehung, a melhor tradução seria “emergência”: análise do ponto e da lei de surgimento de algo. “A
genealogia reestabelece os diversos sistemas de submissão: não a potência
antecipada de um sentido, mas o jogo casual das dominações (...) [e é por isso
que] a emergência se produz sempre em um determinado estado das forças”
(FOUCAULT, 2007c, p. 23). Portanto, a análise da Entestehung deve mostrar o combate entre as forças ou o meio pelos
quais elas buscam se perpetuar quando já decadentes. A Entstehung se dá na distância entre as forças em combate, pois não
existe emergência que não se dê no âmbito da luta entre dominadores e
dominados. Se a dominação é histórica, alterando-se na história, ela sempre
“impõe obrigações e direitos; ela constitui cuidadosos procedimentos. Ela
estabelece marcas, grava lembranças nas coisas e até nos corpos; ela se torna
responsável pelas dívidas” (FOUCAULT, 2007c, p. 25); a dominação estabelece
regras, que são a violência da guerra na qual tudo está imerso; é por meio de
regras que se violenta aqueles que violentam, e serão os mais astutos aqueles
que souberem usar as regras contra quem as inventou; neste sentido, a
interpretação das regras liga-se ao devir da humanidade: ele próprio nada mais
é senão uma série de interpretações. A genealogia deve fazer aparecer as sucessivas
interpretações que vincaram as coisas; deve mostrar os sentidos que se fizeram pesar sobre os diversos procedimentos, sobre os diversos corpos,
sobre as coisas todas do mundo, pois qualquer coisa pode ser tomada objeto da
genealogia: tudo tem uma história, que lhe é idiossincrática.
A genealogia é método histórico
anti-metafísico que visa mostrar a proveniência e a emergência das coisas,
através da dissociação das unidades naturalizadas. Contrastar as diferenças,
mostrar as forças em jogo em cada menor coisa, expulsar os interesses de suas
tocas, eis o que faz o genealogista. Quebrando as unidades, Foucault também
quebra o telos, as finalidades,
terminando por opor o homem, os homens, entre si, ou seja, vincando as
diferenças, salienta-se a historicidade das coisas – de todas as coisas, até
mesmo daquelas que se mostram as mais naturalizadas.
*
Neste ponto, devemos fazer uma
observação sobre o percurso teórico de M. Foucault. Até A ordem do discurso, 1970, a obra de Foucault é marcada pela análise
do campo discursivo, isolado em si mesmo, ou antes, da análise da fronteira
entre o discursivo e o não- discursivo; é que discurso é o nome dado ao saber no que há nele de mais físico: a
fala, a escrita; queremos dizer, assim, que o filósofo de Poitiers tomava como
possível um recorte analítico que se debruçasse sobre o discurso sem levar em
conta outros aspectos, como aqueles sociais, políticos, econômicos, etc, mas,
também, sem achatar o discurso sobre si mesmo; trata-se de analisar o limiar
entre discursivo e o não-discursivo.
É graças a esse
enfoque no enunciado tomado enquanto acontecimento que Foucault deve isolar o
saber do resto da sociedade, sem, contudo, considerá-lo de forma ensimesmada,
tal qual acima expusemos. A genealogia é, assim, um deslindar da arqueologia;
ao passo que o discurso continua sendo o foco, busca-se mostrar seu caráter
político. Ou seja, ligam-se os sistemas e as regras de formação às disputas de
poder entre os homens: às urgências históricas, as guerras, aos projetos políticos,
etc. O genealogista como que dá um passo além, em relação ao arqueólogo desde
nossa interpretação: se o arqueólogo considerava o discurso, limiar entre o
saber em forma e em ato, o genealogista aumenta esta fronteira: mostra como
todo fato discursivo, como todo fato epistêmico é, simultaneamente, fato
político.O genealogista aborda o fato discursivo como acontecimento, mas
acontecimento político, que vem responder às injunções do poder. É na
intersecção entre saber e poder, entre discurso e política (interesse, desejo,
cf. FOUCAULT, 2005a) que se deve buscar as verdadeiras regras de formação, o
real significado epistêmico das teses e seu real fito.
Neste sentido, tanto As palavras e as coisas, o grande livro
arqueológico de Foucault, quanto Vigiar e
punir, a grande obra da genealogia foucaultiana, ambas abordam o mesmo
objeto, a partir de vieses diferentes. Naquele, considera-se como foi possível
o objeto de saber homem, como as
ciências humanas foram possíveis; mas o foco são as articulações discursivas:
quais problemáticas propriamente epistemológicas, quais as mudanças na
estrutura mesma do saber – chamada por Foucault de epistemê – tornaram possível o homem enquanto objeto de algo como
uma série de ciências que nós chamamos Humanidades,
fazendo com que ele emergisse, ao mesmo tempo, como sujeito (cf. BRUNI,1989, p. 199-200).
Em Vigiar e Punir trata-se da mesma coisa em se tratando de outra. O
objetivo é, também, mostrar como foi possível que um setor das ciências se
focasse sobre esse objeto emergente, o homem.
Mas todas as diferenças são observadas. É partir da disciplina que Foucault
levará a cabo essa análise, mostrando como o homem tornou-se objeto e sujeito a
partir de uma série de mecanismos de poder postos em funcionamento pela máquina
emergente da sociedade industrial. Foi como espelho de um projeto de
domesticação que as ciências humanas foram tornadas possíveis.
No curso O poder
psiquiátrico, Foucault conta, entre as transformações advindas com a
industrialização, a formação de um tipo de relações de poder chamado poder disciplinar – esboço daquilo que
Foucault desenvolverá mais apuradamente em Vigiar
e Punir. A disciplina organiza
aparelhos de apropriação total do tempo, dos corpos e das condutas, de forma a
submeter os homens a mecanismos contínuos de vigilância e registro do
comportamento. Estabelece-se uma norma,
que deve ser posta em jogo por meio do exercício,
que cria, faz surgir, engendra um corpo ou comportamento. Quando constatado
elementos desviantes em relação ao normal,
faz-se rodar medidas corretivas, medidas de punição. O objetivo da disciplina
é, em último caso, anular-se a si mesma, já que ela busca criar um corpo, quer dizer, dispensar os elementos disciplinadores.
A sociedade industrial fez surgir uma rede de aparatos disciplinares que se
completam entre si. Os mecanismos da disciplina são intercambiáveis e
articuláveis, já que as relações que uns e outros exercem ao invés de se
excluírem se complementam em sua diferença.
O indivíduo não é originário: ele
emerge como realidade no final do século XVIII, como conseqüência do
desenvolvimento do capitalismo e dos mecanismos disciplinares. Por meio destes,
procedeu-se a acumulação de homens, correlata historicamente necessária à
acumulação de capital: distribui-se a multiplicidade da força de trabalho, se
lhe torna utilizável na multiplicidade dos homens, aperfeiçoando-a. Por isso a
disciplina emerge exatamente no momento da constituição da sociedade
industrial. Quando de então, o indivíduo era tematizado sobre duas formas
predominantes, ou indivíduo jurídico ou indivíduo histórico. É da junção entre
estas tematizações e dos aparatos disciplinares que emergirá as ciências
humanas.
É que os mecanismos disciplinares
tornam cada corpo, considerado separadamente, um sujeito, pois é por meio da
atomização somática que a vigilância, o registro, a punição, a dicotomia
normal-anormal opera. Poder disciplinar: “uma série constituída pela
função-sujeito, a singularidade somática, o olhar constante, a escrita [dos
comportamentos] o mecanismo de punição infinitesimal, a projeção da psique e,
finalmente, a divisão normal-anormal” (FOUCAULT, 2006, p. 69). Em seu
exercício, a disciplina cria uma individualidade, uma psique. São estes
elementos conjugados que tornaram possível historicamente a constituição de
algo como uma ciência do homem.
A ciência clássica realizava
classificações diante da multiplicidade do mundo empírico – já se tratava de
expressão da verdade-demonstração. A acumulação de homens desenvolveu outra
forma de operação, também fundada na verdade-demonstração, que é a tática:
distribuição de singularidades de modo a maximizar a eficácia produtiva de
singularidades; novamente, é da tática, e das questões que ela suscita que
emergem as ciências humanas.
*
Fizemos breve exposição do método
arqueológico que pode ser resumido, em poucas linhas, como um método de
pesquisa de história do pensamento, que busca desvelar e descrever as formações
discursivas, constitutivas de discursos, grupos articulados de enunciados, que são,
por sua vez, acontecimentos, ou seja, são singulares — tem seu tempo e seu
espaço.
A genealogia acrescenta elementos
às análises arqueológicas, em articulando saber (discursivo) com o político,
tornando o saber resultado-objeto das guerras sociais, que envolvem a tudo e a
todos. Assim, ainda que se trate de um mesmo projeto, de análise
histórico-epistêmica do saber, a genealogia inova ao mostrar como o saber
responde à urgências históricas, à interesses determinados; a genealogia mostra
como as relações de poder engendram saber, discurso, massa documental, seja em
decorrência de seu próprio exercício, seja como condição de sua existência.
Em suma, a genealogia é um método
de análise histórica de um conceito, de um corpo ou de um caráter, que busca
mostrar a proveniência e a emergência destes no âmbito da luta entre
dominadores e dominados, articulando a constituição de formas de saber com o
exercício do poder. Vigiar e Punir,
por exemplo, é a análise da proveniência da disciplina e da emergência de suas
formas contemporâneas em escolas, prisões, asilos, exército, etc., que levou a
constituição de uma série de ciências conhecidas como Humanidades. Como a genealogia sempre supõe a luta entre
dominadores e dominados, cumpre dissolver as unidades (esculpidas pacientemente
pelos dominadores) para mostrar a baixeza (“o que há de humano”) da
proveniência e da emergência – aquilo que foi intencionalmente apagado seja do
campo do poder seja do saber.
3. A situação desta pesquisa: Observações metodológicas e
analíticas Observações metodológicas e analíticas
Nosso
objetivo inicial com este projeto era cobrir o período que iria desde o
principio da modernidade — quando seus principais elementos são dados — até
quando os primeiros discípulos de Freud começam a traçar seus próprios
caminhos, um tanto quanto distintos de seu mestre vienense. Pretendíamos
aplicar a mesma genealogia, utilizando a obra de Foucault como linha mestre e
fonte última, mas, ao mesmo tempo, incluir novos elementos, articulando, pois,
uma genealogia plena das ciências da vida e da saúde.
Teríamos,
pois, quatro períodos a cobrir, quer dizer, quadro séries distintas no quadro
estes estudos. A primeira cobriria um período pré-psiquiátrico da loucura,
desde o fim da Idade Média até o gesto fantasioso onde Pinel teria rompido as
cadeias dos loucos de Bicêtre. A segunda série deveria cobrir o período francês
deste novo sentido aplicado a loucura, desde o tratamento moral até,
aproximadamente, os dois trabalhos que apontam para o fim desta era: Charcot e
Morel. O terceiro deveria cobrir a saída de cena da médécin mentale, com sua metodologia confusa, para a aparição das
duas grandes figuras da psichiatrie
alemã, a primeira maior que a segunda: E. Kraepelin e R. Krafft-Ebing. Por fim,
deveríamos englobar esta psicopatologia nova, surgida da intersecção dos
trabalhos de Charcot, e seu sussurro sexual da origem das afecções ,e com a
preocupação de origem de Kraepelin: Sigmund Freud. Fechando nossa pesquisa,
acompanharíamos seu trajeto até algumas escolas dissidentes, como Reich, Jung e
Fromm. Com isto, teríamos empreendido uma série dentro de um quadro geral, mais
amplo, da biopolítica.
Contudo,
o caráter de nossa metodologia tornava impossível esta pesquisa. Em fato, uma
pesquisa genealógica implica uma dupla analítica que, na caneta do pesquisador,
reencontram-se: uma de caráter epistemológico, no campo do sentido; outra de
caráter político-histórico-social, pesquisa de procedimento. Portanto,
tivemos de reorientar nossos estudos, e isto, pois, por motivos:
1.
metodológico; pois a genealogia nos
requereria uma bibliografia consideravelmente mais ampla e que desse conta de
um amplo espectro;
2.
epistemológico; já que, para
empreender uma epistemologia política faz-se necessário um amplo conhecimento
do campo que ora queda como objeto da série;
3.
sociológico; que envolveria o rigoroso conhecimento das sociedades francesa e
alemã do período, dificultado pelo fato das agitações, revoluções e dos
fervilhamentos pelos quais passavam estas sociedades no período. Em suma, uma
sincronia diacrônica poderosa.
4.
histórico: teríamos de colocar estas distintas perspectivas dentro de um
rigoroso marco histórico, que, apesar das distintas músicas pelas quais bailam
as teorias e as práticas, conseguisse lhes achar o compositor comum. Quer
dizer, uma diacronia precisa que fizesse vir a tona o dispositivo ou, antes, a
série de dispositivos envolvidos.
Estes
pontos implicariam uma análise bibliográfica de muito vulto afim de empreender
uma pesquisa plena. Assim, tivemos de cortar partes, realocar documentos, abrir
a gaveta para que outros esperassem o momento certo de adentrar esta marcha
teórica. Nosso período diminuiu em dois, deixando Freud e os seus para uma
pesquisa futura, ao mesmo tempo em que muitos textos, fundamentais para uma
analítica completa, não puderam entrar nesta genealogia. Também sentimos a mais
plena necessidade de incluir um texto explicativo sobre a psiquiatria e o que
os próprios psiquiatras dizem de si. Com ele, impediremos que outros passem
pelas dificuldades que passamos, e, ao mesmo tempo, permitiríamos que, enquanto
falamos de psiquiatria se saiba em fato o que queremos dizer.
Assim,
o que é este trabalho? Diante de nossa explicação, muitos pensarão que se trata
de um monstro horrível e que, talvez, na hora da leitura encontrarão passagens
e, quem sabe, até mesmo capítulos inteiros, onde a perna que se deixou de fazer
fará falta, ou onde a cabeça prematura confundirá o azul com o vermelho,
contrastando e fazendo vir a tona o contrário do que deveria ser.
Não
está assim. Este trabalho buscou estabelecer notas para a genealogia da
psiquiatria e da psicanálise. Bem dito: elaboramos algo cujo melhor nome não
pode ser outro senão notas. Notas para a genealogia de um grupo de ciências ou,
antes, como preferimos, notas para a epistemologia política das ciências da
vida e da saúde. São elas que seguem.
4. Para compreender a
psiquiatria
4.1. A psiquiatria (para os
psiquiatras)
Os psiquiatras consideram que a doença mental é um fato do mundo: ela não
varia de acordo com as sociedades, tampouco as distintas culturas influenciam o
modo como ela há de se dar. Não: lidando com o fato complexo da doença mental —
substrato comum de todas as escolas psiquiátricas —, decorrem também teorias
complexas e heterogêneas, fruto de tendências e autores distintos. Todas
postulam, contudo, que há doença
mental, que ela, sob as camadas meramente lingüísticas do nome, permanece
igual, indistinta desde que existe, desde que raiou sobre o mundo o animal que
faz promessas.
Pretende-se
uma ciência ou um discurso cientifico (intersecção de saberes científicos de
origens diversas) unificada por seu objeto, a doença mental. Assim, a
psiquiatria elabora teorias a fim de organizar, com fins epistêmicos e médicos,
a complexidade do real, na verdade, de uma realidade, o doente mental, que a
psiquiatria instrumentaliza por meio de conceitos visando elaborar uma
terapêutica — pois a psiquiatria é um ramo da medicina.
A psiquiatria não interpreta a
doença mental enquanto fato místico ou religioso. Ela é um discurso científico
sobre fatos mentais patológicos. Costuma-se confundir o anormal com o
patológico: o anormal refere-se ao desviante em relação a uma regra, enquanto
que o patológico refere-se a uma patologia. O anormal pode ser estabelecido a
partir de métodos quantitativos de ocorrência de determinados fenômenos; o
patológico diz respeito a emergência de uma nova racionalidade, diz respeito a
um desvio na vida do individuo — portanto, uma patologia, ou, em nosso estudo
de caso, uma psicopatologia, estabelece esta divisões e delineia
o que distingue o louco do são. O patológico é, enfim, qualitativo.
Leriche (1878-1955): “[a saúde é] ‘a vida no silêncio dos órgãos’
enquanto o patológico implica sentimento concreto de sofrimento e impotência”
(apud GRANDINO; NOGUEIRA, 1985, p.
11). O sofrimento, contudo, não define
a patologia, pois existem patologias assintomáticas, outras que não provocam
nenhum sofrimento e algumas que o provocam. A doença é, pois, entendida de
maneira geral como esta alteração de racionalidade, como um rearranjo dos
elementos da psique que, dependendo de suas características, levarão ao
desenvolvimento de distintas patologias.
As doenças são idéias desenvolvidas
pelos médicos para compreender e tratar processos patológicos; ou seja,
trata-se de conceitos operacionais. A causa, a etiologia de uma doença, é composta de inúmeros fatores, e o que
determina algo como um nome é a repetição das formas de seu aparecimento, portanto,
uma constância. Nas doenças mentais, ao contrário das orgânicas, as formas de
aparecimento não são tão claras; as doenças mentais são produzidas por
condições de vida particulares, embora sua sintomatologia seja estereotipada. Diagnóstico é o nome de um agrupamento
de sintomas; um conjunto de diagnósticos tem por nome nosografia, e seu estudo de modo, digamos epistêmico, tem como
epíteto a alcunha de nosologia. A
busca pela cura da doença, com todos os processos que implica, é chamada de terapêutica.
A terapêutica
Inúmeros recursos terapêuticos foram desenvolvidos na história da
psiquiatria. Por exemplo, os hospitais psiquiátricos. Atualmente, eles não são
como os asilos dos séculos precedentes, mas clínicas comuns. Indica-se a
hospitalização somente em casos agudos; a internação deve ser breve, pois o
hospital não é, atualmente, depósito de gente. Hoje em dia a internação deixou
de ser compulsória tornando-se, pois, voluntária — esta era uma das
reivindicações daquele movimento que se convencionou chamar de antipsiquiatria. Com o tempo, entre o
não internamento e o internamento desenvolveu-se uma série de recursos
intermediários que o hospital pode oferecer: pensão protegida, quando os pacientes residem próximos ao hospital;
hospital-dia, o paciente passa o dia
em tratamento e retorna à noite para casa; hospital-noite¸
o próprio hospital é o dormitório; e ambulatório
psiquiátrico, consultas periódicas de
reavaliação.
Na atualidade, os principais ramos
da terapêutica são: a psicofarmacologia, os tratamentos de choque e as
psicoterapias.
Psicofarmacologia
Por volta da década de 50 desenvolve-se a psicofarmacologia, nome do ramo da farmacologia que estuda as
drogas que atuam no sistema nervoso central, modificando as funções mentais por
meio de substâncias nomeadas de psicotrópicos:
os barbitúricos foram sintetizados em
1913 e ametilanfetamina em 1938;
contudo, embora seu uso terapêutico, somente com a clopromazina, na segunda metade do século XX, as substâncias
psicotrópicas ganharam importância psiquiátrica.
Dentre inúmeras classificações, a de J. C. Madalena (apud GRANDINO;
NOGUEIRA, 1985), para o qual existem seis grupos de psicotrópicos:
1. Ataráxicos, que atuam sobre manifestações psicóticas em geral; seu
principal grupo é o dos neurolépticos (efeitos: indiferença, controle das
agitações e excitações, ação subcortical, influência nos delírios e
alucinações), recomendados em casos de agitação motora, delírios, alucinações,
manias, manutenção de períodos assintomáticos e contra a insociabilidade.
2. Tranquilizantes: atuam sobre
a ansiedade,comum em estados neuróticos; a principal família é dos
benzodiapezínicos (efeitos: queda da tensão e da ansiedade; sonolência; ação
depressora sobre o sistema límbico; ausência de ação nos fenômenos psicóticos).
3. Antidepressivos: para a
psiquiatria depressão “é um estado
patológico caracterizado por inibição das funções psíquicas e restrição do
campo existencial” (GRANDINO, NOGUEIRA, 1985, p. 43); os antidepressivos
combatem este estado; dividem-se em dois tipos: timerépticos (ação
antidepressiva unida a ação desinibidora) e os timolépticos (regulam o humor);
são estimulantes, anti-hipnóticos e invertem o humor depressivo; sua atuação é
eficaz somente em casos de depressão endógena,i.é,sem fatores externos com doenças.
4. Hipnossedativos: induzem ao
sono; podem ser hipnóticos ou euípnicos; dentre os primeiros, os barbitúricos,
que inibem o sistema nervoso central; dentre os últimos, derivados de
benzodiazepnícos, miorrelaxantes; atualmente prefere-se os euípnicos, pelo
número menor de efeitos colaterais, menor ação sobre sistemas vitais, e menor
índice de dependência.
5. Anticonvulsivos: muito heteróclitos quimicamente para serem
descritos, sua ação fundamental é controlar as manifestações paroxísticas da
epilepsia, sendo a mais notável a convulsão tônico-clônica.
6. Psicodislépticos: alteram a
percepção em favor de um estado de “estar acordado”; seus efeitos são múltiplos
e, devido a isto, seu uso terapêutico é escasso, restrito, sobretudo, à
diminuição de algumas aminas biogênicas (como serotonina e dopamina).
Os psiquiatras avaliam, ao menos nas fontes que nos consultamos, que os
psicotrópicos melhoraram a ação psiquiátrica, possibilitando o atendimento
ambulatorial e o controle de inúmeros sintomas. Eles permitiram, também, uma
melhor compreensão dos fundamentos biológicos das doenças, e a emergência de
novas preocupações como a relação corpo-mente.
A psicofarmacologia marca a abertura de um novo período da história da
psiquiatria, onde aquela de cunho anglo-saxã desbancará a psiquiatria alemã,
dominante desde os trabalhos de Kraepelin e Krafft-Ebing. A partir da
utilização da clorprocacina no tratamento da esquizofrenia (1952), dos
derivados iminodibencilo como arma contra os sintomas depressivos (1950), os
barbitúricos — até então vivamente recomendados — caem por terra e abre-se a
porteira: toda uma nova série de substâncias são ministradas aos loucos, como a
reserpina e as butirofenonas (neurolépticas) e os tioxantenos. Em breve
inúmeros antipsicóticos terão sido desenvolvidos e hoje muitos psiquiatras
questionam os efeitos da farmacologia na psiquiatria, especialmente o aumento
do leque de comportamentos patologizáveis e patogênicos; questiona-se mesmo se,
com isto, o sonho moreliano de algo como uma sociatria, medicina do corpo social (cf. CAPONI, 2009, p. 425-6, e
também, CAMPAILLA, G., 1982, p. 343-368), não estaria se tornando mais e mais
realidade.
A utilização dos fármacos está ligada não somente a uma nova sociedade na
qual uma vida acelerada requer tratamentos acelerados, e onde mecanismos
brutais de normalização, postos em jogo por inúmeras instituições, discursos e
práticas, pressionam o individuo a um controle interno rigoroso — Foucault nos
descreve este mecanismo muito bem em Vigiar
e Punir e em O poder psiquiátrico.
Os psicofármacos são recomendados porque, do ponto de vista psiquiátrico,
funcionam. Os fármacos fazem cessar o sintoma. Tarda, um (ou uma?) psiquiatra,
cita algumas vantagens: não sedam necessariamente o paciente para serem efetivos,
acabam ou atenuam os sintomas, alguns (como os antipsicóticos) não levam a
dependência e a tolerância desenvolve-se somente com efeitos secundários, além
de haver baixa letalidade em sua utilização (ENGUIX, s/d, pp. 1320-1353).
Para uma compreensão epistemológico-politica da psicofarmacologia,
contudo, não devem nos enganar: o fim da sociedade de massas fordistas tem,
como uma de suas marcas, a emergência de mecanismos de controle muito mais
sutis. Contra aquela psiquiatria dos asilos enormes, contra a polícia
psiquiátrica, e todas as conseqüências — e resistências — políticas que dele
advinham, os novos métodos sutis de psiquiatrização da conduta e, mais
importante, a auto-psiquiatrização do próprio comportamento. Assim, esvazia-se
a crítica antimanicomial, ao menos se tomada nos termos de luta contra a
instituição, o que não parece ser o caso do movimento antimanicomial
contemporâneo[1]. Mas, se o
manicômio diluiu-se em mecanismos de subjetivação — muito distinto do cinza dos
manicômios, com seus pisos de um verde que enlouquecem qualquer um e tetos
altos que isolam no isolamento—, bem, esta luta torná-se um tanto mais difícil.
Os tratamentos de choque
É muito difundida a imagem segundo a
qual teria sido o regime de Mussolini que inventou o tratamento de choque, o
que é somente meia-verdade. O tratamento de choque deve ser inscrito naqueles
grandes debates, muito antigos na psiquiatria (desde as teses de Bayle, ao
menos[2]),
acerca da etiologia da patologia — se biológica ou psicológica, de onde decorreria,
por uma lógica frouxa, que a terapêutica deve ser ora biológica ora
psicológica, respectivamente[3]
Os
tratamentos de choque contam-se dentre aqueles biológicos: assumindo uma doença
sediada no cérebro, também os tratamentos devem aplicar-se aqui. Nos grandes
debates localizacionistas, Bayle sem dúvida ocupa um papel fundamental. Ao
descrever a aracnoidite crônica[4]
como vetor para a paralisia geral, ele iniciaria toda uma série de pesquisas
que iriam se interrelacionando até que Noguchi e Moore descrevessem, em 1913, a
origem sifilítica da paralisia geral, agora denominada demência sifilítica — e
cuja história passa pela descoberta do Treponema
pallidum como vetor da sífilis, em 1905, por Schaudinn; pela prescrição de
métodos piréticos contra a sífilis, por K. Landsteiner; e pela invenção do
método do soro fisiológico como instrumento de diagnóstico da doença, elaborado
por Wasserman em 1908.
Desde há muito, desde Hipócrates, os
tratamentos piréticos eram indicados, juntamente com outros procedimentos de
choque — como convulsões e traumatismos cranianos — para tratar a loucura: não
nos esqueçamos dos banhos alternados, das duchas circulares, das cestas de
vime, das camisas-de-força, da estrapada, etc. Ao mesmo tempo, muitos
psiquiatras defendiam, com base em estatísticas clínicas, que havia uma
incompatibilidade entre muitas doenças mentais e as convulsões, conforme
veremos.
A partir deste solo epistemológico
fecundo, J. Wagner Jauregg iniciará a moderna malarioterapia[5],
contaminação intencional dos doidos com malária a fim de provocar-lhes febres,
que tinham um valor terapêutico positivo. Se há muito já eram prescritos os
tratamentos piréticos, a diferença consiste em que, durante o ano de 1917, este
jovem médico vienense inoculou malária extraída de soldados da Grande Guerra no
corpo de alguns loucos, diagnosticados como dementes sifilíticos, doença
bastante comum naquele período.
Jaregg abria, pois uma série histórica que desembocará diretamente no
eletrochoque. Sua malarioterapia, amplamente difundida no mundo (utilizada no
Brasil, inclusive[6]), com seus
resultados terapêuticos tidos como positivos, malgrado fossem apenas de caráter
sintomatológico (como se postulará mais tarde), colocam a psiquiatria biológica
na vanguarda dos tratamentos, em detrimento, pois, da psicoterapêutica,
freudiana ou não.
Deste modo é que Sakel encontrará terreno livre para tratar uma mulher
viciada em morfina com insulina, em 1927, obtendo resultados animadores. A técnica de Sakel utilizava as recentes
descobertas (1921) acerca da insulina (seu isolamento; a descoberta de suas
funções no organismo) com o objetivo de provocar hipoglicemia em seus
pacientes, levando-os, pois, ao coma, a febre e as convulsões, estas últimas
descritas como recursos terapêuticos, tal qual vimos. Aplicando seu método na
esquizofrenia, Sakel o descobriu brutalmente eficaz no controle dos doidos, o
que popularizou sua técnica quase que imediatamente, no mundo todo. Não se pode
perder de vista que a esquizofrenia era, então, um dos carros-chefe da
problemática psiquiátrica, tendo assumido este papel desde os trabalhos de
Kraepelin[7].
Na direção rumo ao eletrochoque,
outro psiquiatra contribuiu bastante; trata-se de L. von Meduna, húngaro —
curiosamente, a Hungria vivia uma forte ditadura protofascista no período —
que, por meio de estudos estatísticos postulou que a ocorrência de epilepsia
impossibilitava a ocorrência de esquizofrenia. Assim, Meduna passa a elaborar
testes clínicos visando encontrar uma substância que levasse a convulsões, concebidas
em um sentido, dizia, terapêutico. Neste caminho, Meduna testou inúmeras
substâncias, como a cânfora (1934), estricnina, tebaína, pilocarpina e
pentilenotetrazol (metrazol ou cardiazol), por meio de injeções
intramusculares, por vezes associadas ao uso de insulina.
Meduna conseguiu o que queria quando
procedeu por meio de injeções intravenosas de metrazol, que levavam a
convulsões rápidas e violentas. Comunicando seus achados em 1937, a comunidade
psiquiátrica se dividiu entre o choque insulínico e o choque por metrasol: o
primeiro mais caro, trabalhoso (9h de internação!!!) e com poucos efeitos
colaterais, era, contudo, mais controlável que o choque por metrasol (47% de
casos de fraturas espinhais! Tamanha a violência das contrações)[8].
E. Bennet, 1940, buscou contornar este problema combinando metrazol com curare
(paralisante que bloqueia a ação da acetilcolina) e, depois, com escopolamina e
curare, visando sedar os pacientes.
O metrazol acabou se mostrando mais eficiente que a insulina somente em casos
de psicoses afetivas — o eletrochoque mostrou-se o mais adequado para os casos
de esquizofrenia. Seu desenvolvimento está ligado ao trabalho de Cerletti, que
havia se convencido que, malgrado sua utilidade terapêutica, o metrazol tinha
muitos inconvenientes, como a incapacidade de controlar as convulsões e o medo
que os pacientes tinham dele. Sendo especialista em epilepsia, já havia
utilizado eletrochoques em animais para provocar crises epilépticas. Ajudado
por L. Bini e L. B. Kalinowski terminou por desenvolver um novo invento para
utilizar o eletrochoque em humanos — havia nascido esta técnica que tanto
sucesso fez nos asilos.
O método de Cerletti-Bini, como ficou conhecido, produzia amnésia
retrógrada (o que levava os pacientes a não temerem a terapia) e permita um
controle e segurança maior, apresentando baixas taxas de mortalidade. Aos
poucos se passou a utilizar, conjuntamente com ele, o curare e a escopolamina,
substituindo, assim, as terapêuticas pautadas na insulina ou no metrazol. O
método Celetti-Bini também se mostrou eficaz, especialmente no tratamento de
distúrbios afetivos, o que o levou a hegemonia dos tratamentos de choque, mesmo
diante de outros novos, como indução pirética por microondas, anóxia[9]
cerebral induzida pela inalação de oxigênio-hidrogênio e crioterapia[10].
Progressivamente vozes se insurgem contra o eletrochoque. Seu uso era
compulsório, independentemente da vontade dos loucos, além do que, se a própria
criação do método sob um regime fascista já levaria os mais desconfiados a
criticas, a prática psiquiátrica e os relatos dos pacientes davam conta de sua
utilização estritamente disciplinar, ao contrário do que afirmava publicamente
nossos dottores[11].
Afinal, quantas enfermarias não foram tomadas pelos boçais[12]?
Se é verdade que as criticas, sobretudo dos movimentos por direitos
humanos e antimanicomiais[13],
fizeram recuar a utilização do eletrochoque, ainda há quem a recomende.
Rebatizada de eletroconvulsoterapia (ECT), diz-se dela como uma terapêutica
efetiva para algumas afecções graves, como: depressão, catatonia, mania,
esquizofrenia. A própria associação mundial de psiquiatria faz jus a sua
história e a faz vivas loas ao método[14],
descrito como eficaz e, mesmo como mais eficiente em alguns casos!
Para concluir esta breve exposição sobre a
terapêutica de choque, devemos ser justos com o produto nacional, com a mais
pura flor tupiniquim da medicina psiquiátrica:
“Pacheco
e Silva [sucessor de Francisco Franco da Rocha como diretor do Juquery], por
exemplo, refere-se orgulhosamente a uma descoberta cientifica de Franco da
Rocha, quando uma paciente ‘melancólica ansiosa’, ao irritar suas companheiras
de pavilhão, sofreu uma violenta paulada na boca do estômago, acordando
‘curada’ do coma decorrente da pancada: estavam lançadas as bases da futura traumaterapia, tornando Franco da Rocha
— segundo as palavras de seu sucessor— um ‘precursor das modernas terapias de
choque’” (CUNHA, 1988, p. 98)
As psicoterapias
Por fim, devido aos trabalhos
ligados ao mesmerismo, ao bradismo, à hipnose[15],
ao método catártico — sintetizados
por Freud na talking cure[16]
— veio ao mundo a psicoterapia. Esta consiste em terapêuticas que se desenrolam
somente por meios psíquicos; ela distingue-se dos métodos farmacopsicológicos,
pois o efeito destes é fundamentalmente oriundo de ação metabólica de seus
componentes químicos. A psicoterapia é um conjunto de métodos de saber
acessíveis por diversos meios; dentre elas conta-se a terapia comportamental de
B. F. Skinner, o psicodrama,de J. L. Moreno; as terapias bioenergéticas,
inspiradas em Reich, dentre outras.
Dentre todas as psicoterapias, a
psicanálise é a mais difundida e estudada. Após superar a utilização da hipnose
como método — desenvolvida por J. Breuer sob o nome de método catártico —, a
psicanálise teve um desenvolvimento teórico-metodológico que permitiu sua
autonomia frente à psiquiatria. O analista não descreve remédios: ele somente
propõe-se a ouvir e intervir ocasionalmente. Este método simples faz vir à tona
conteúdos inconscientes, primeiramente disfarçados, esperando para serem
decifrados. Aos poucos, conforme o paciente faz emergir o censurado, a verdade
tende a se sobrepor sobre os elementos de repressão.
*
Vejamos como se dá a prática psiquiátrica. O estudo de um conjunto de
sintomas determinado serve de guia para a elaboração do diagnóstico, variável
conforme o estágio de conhecimento em que se encontra o médico. Médicos
diferentes podem fazer análises distintas dos sintomas, elaborando diagnósticos
distintos, embora ambos visem à objetividade. É o diagnóstico que permite se
descubra a natureza da doença e os meios mais eficientes de tratá-la.
Em relação à cronificação da doença,
hoje a psiquiatria postula que a internação prolongada somente contribui para
este fato. Por isso, ao contrário do que ocorria á cinqüenta anos, mudou-se o
caráter da intervenção: desapareceu o antigo asilo, “depósito de gente”, em
benefício do hospital psiquiátrico. Hoje a internação persiste somente para
casos graves de crise, agitação ou depressão com risco de suicídio; quer dizer,
o papel fundamental do hospital reside nas situações de emergência
psiquiátrica, tornando a internação e o hospital como estratégias possíveis
dentre outras, como aquelas ambulatoriais.
Vários elementos contribuem para as
limitações práticas da psiquiatria, sendo o mais óbvio aqueles econômicos, que
restringem a atuação hospitalar (mais cara) em beneficio da ambulatorial, bem
como o acesso a remédios e outros bens. Outro elemento é quando a psiquiatria é
chamada para resolver casos que não são de sua alçada (médica), especialmente
aqueles sócio-econômicos, como internações famélicas. Não se descarte também, a
utilização política da psiquiatria, da qual o estalinismo e o fascismo, mas
também o capitalismo liberal ou não, mostraram tão bem; e, ainda, os interesses
econômicos envolvidos na indústria da loucura, que terminam por levar a
prescrição de estes ou aqueles tratamentos em detrimento, sempre, do louco.
4.2. O papel
da Psicopatologia
Sem dúvida, nesta analítica que fazemos dos fundamentos da psiquiatria,
seria uma traição não nos determos naquilo que lhe serve de fundamento: a
psicopatologia. Assim como todo discurso que busca tornar-se ciência também a
psiquiatria buscou mimetizar outras ciências na busca do estabelecimento de seus
princípios positivos, que fundamentassem suas operações, na qual a medicina
aparecia como alvo predileto.
Por volta do fim do século XVIII,
com a Inquisição arrefecida em mundo em entrando no turbilhão industrial,
desenvolve-se na França uma nova medicina, pautada em outra racionalidade
médica. “Muito cedo os historiadores
vincularam o novo espírito médico à descoberta da anatomia patológica”
(FOUCAULT, 2008, p. 136). Sob o impulso de X. Bichat um campo analítico novo se
dava a conhecer e isto se refletia nas formas como se praticava a medicina e no
seu entendimento no conjunto da sociedade.
A psiquiatra, como se sabe, surge na
mesma época e rapidamente uma inquietação epistêmica passa a preocupar seus
aderentes. Conforme a psiquiatria buscava se tornar ciência, seguia o caminho
rumo a algo como física médica da alma, e, assim, pareceu aos dottores que, se a fisiologia estava
para a medicina como a psicologia deveria estar para a psiquiatria[17],
do mesmo modo, haveria de existir a contraparte espiritual da anatomopatologia.
Somente com Jaspers, na sua monumental Allgemeine
Psychopatologie, esta ciência almejada se tornará independente, pautada na
fenomenologia germânica de então, o que não significa que ela não estivesse
presente na derrière dos alienistas.
Certamente, tratava-se de outra coisa, e somente a fenomenologia poderia dar a
ela o caráter contemporâneo — pois a psicopatologia é, antes de tudo, uma
grafia semiológica do fato mórbido-mental, com uma casuística, que devem pautar
a prática terapêutica psiquiátrica.
Esta disciplina, ao menos nas fontes por nós consultadas[18],
é extremamente dispare, como todo o restante da psiquiatria, com autores
distintos defendendo posições, por vezes, irreconciliáveis. Neste ponto, há de
se notar que um dos manuais que consultamos K. Jaspers, considerado por alguns
como aquele que colocou a questão da
psicopatologia[19], é citado
como tendo apenas propugnador de uma metodologia antropológico-analítica e a
psicopatologia como desvalorizadora da experiência do Outro-paciente em
benefício do Eu-médico[20].
Se para uns é assim, para outros,
não. “Existiria uma abordagem especializada do humano que, sem ser nem uma
psicologia nem psiquiatria, tenha os meios metodológicos de observar e
descrever os distúrbios psíquicos e compreender seu acontecimento fenomenal
singular no cerne da generalidade das experiências?” (FÉDIDA, 1998, p. 108).
Esta questão, posta por Jaspers, seria para Pierre Fédida o ato de fundação de
psicopatologia geral. Senão isto, no
mínimo Jaspers merece um papel destacado na história da disciplina, pelo
momento em que escrever sua obra e pelo caráter que ele teve[21].
É fato que reinava, então, no campo
da psiquiatria e também no da psicopatologia uma confusão generalizada. A
psicanálise estava se tornando conhecida e os debates entre organicistas e
psicologistas se acentuavam. Além disso, as próprias ciências humanas debatiam
vivamente qual método tomar, qual caminho seguir. A obra de Jaspers não
poderia, pois, passar despercebida. Fruto de grandiosa observação empírica
proporcionada pela clínica em Heildelberg, Jaspers sistematiza estes
conhecimentos ao mesmo tem em que elabora furiosa critica metodológica. No
curso de dois anos, publicará duas obras que darão uma reviravolta nesta área.
A psicopatologia já não podia mais
ser nem uma psicologia do patológico nem uma psicologia patológica. Quer dizer,
nem, de um lado, se ater a uma psicologia objetiva — de cunho naturalista — que
desprezaria seu objeto próprio, a psique; e, de outro, não tinha como se manter
uma psicologia meramente subjetiva se quisesse manter pretensões cientificas —
como criticar os dados psicológicos alheios pautados somente na empatia (por
ele compreendida como a representação para si da experiência alheia)?
Assim, a solução de Jaspers passava por uma critica metodológica. A
tarefa da psicologia subjetiva seria, justamente, distinguir, descrever e
nomear os fenômenos subjetivos a fim de que pudessem ser criticáveis: esta é a
própria fenomenologia para Jaspers, ou psicopatologia descritiva. Nesta tarefa
descritiva, Jaspers definia alguns parâmetros objetivos, visando diminuir as
limitações do método, embora os limites continuassem a existir — justamente por
isto, não negava outras formas de abordagem do afigurado, dos fenômenos
psíquicos do paciente. Jaspers dava assim uma ancoragem empírica e criticável à
psicopatologia, pois as descrições deveriam ser feitas em uma linguagem comum,
em um referencial simbólico único, ou seja, intersubjetivo.
Esta é a primeira parte da proposta
jasperiana: a compreensão empática. O método de Jaspers pode parecer
reducionista, isto é, tomar o subjetivo somente por suas manifestações
internas; em fato, para Jaspers, este método deve ser como que o anteparo que
permitirá uma psicopatologia, ao apontar os fenômenos de seu campo claramente.
Tratava-se de apreendê-los por meio de uma compreensibilidade estática — para
Jaspers, sinônimo de fenomenologia. Após este seria possível uma psicopatologia
propriamente falando, que estabelecesse uma compreensibilidade genética dos
fenômenos ao estabelecer conexões compreensíveis entre eles.
A
fenomenologia de Jaspers parte de uma psicologia descritiva que deve
fundamentar o acesso do subjetivo, de modo, pois, a conciliar uma psicologia
objetiva com outra descritiva — assim, garante-se a cientificidade da
disciplina, ao mesmo tempo em que não se dissolve o objeto que lhe é próprio, o
campo subjetivo de experiências.
Desse modo, o objeto da psicopatologia é o estudo descritivo dos
fenômenos mentais tomados como anormais a partir da experiência dos doentes.
Embora etimologicamente o termo signifique “doença do espírito”, não existem, a
rigor, doenças psíquicas, pois toda doença é do corpo; aquelas psíquicas serão
doenças se e somente se estiverem condicionadas a alterações patológicas do
corpo.
Para Jaspers, o objetivo da
psicopatologia é estudar a vida psíquica anormal independentemente da clínica,
ou seja, ser uma descrição da experiência do enfermo, tomada como adaptação á
enfermidade. A psicopatologia deve fornecer as bases para a atuação dos
psiquiatras, dando-lhes o instrumento para que a psiquiatria elabore o
“diagnóstico, o tratamento e a profilaxia das doenças mentais” (PAIM, 1977, p.
12).
O fato dos psiquiatras buscarem a
fenomenologia como método proveio das dificuldades causadas pela interpretação
então majoritária do delírio e da alucinação como erros. Somente a compreensão
de que o enfermo vive em um mundo diferente, levada a cabo por Jaspers,
sobretudo, fez com que os psicopatólogos buscassem, primeiro, compreender o
fenômeno mórbido, e depois explicá-lo. Quer dizer, estudar a vivência objetiva
subjetiva do enfermo para dar-lhe uma explicação objetiva pautada nas
descrições observadas da vivência.
Assim, a metodologia fenomenológica
— malgrado parta de um arremedo da noção de solidariedade orgânica, algo como
uma unidade dinâmica do psiquismo, donde uma indissolubilidade do fenômeno da
consciência — divide o aparelho psíquico em inúmeras funções, mais ou menos
arbitrárias, e, após, procede pela descrição dos fenômenos mais básicos, de
suas características psicopatológicas determinadas em função da alteração das
funções psíquicas elementares; disto decorre uma analítica do valor semiológico
dos fenômenos, com uma fisiopatologia quando possível. A doença queda definida,
mesmo que de maneira tácita, como uma alteração funcional.
Em português claro: trata-se de uma
análise psicológica das funções, das quais se determina uma operacionalidade
psíquica normal ou saudável. A partir deste, descrevem-se
as alterações na racionalidade deste funcionamento, fenômenos que somente podem
ter, assim, um caráter patológico. Quando estes fenômenos determinam alterações
de cunho bio-quimíco, descreve-se sua fisio-patologia. E, após, arrola-se a
ligação destes fenômenos com as distintas afecções, tomadas como espécies, em
uma casuística da morbidez: como se, à visão de listras, concluíssemos que
somente pode se tratar ou de um tigre ou de uma zebra.
Estudo de caso: a psicopatologia do juízo
Em seu Curso de psicopatologia, I. Paim divide o conjunto do psiquismo
humano em algumas funções: percepção, representação, conceitos, juízos,
raciocínio, memória, atenção, orientação, afetividade, atividade voluntária,
linguagem e consciência. Esta última é como que o fio condutor de todas as
demais ciências, unificando-lhes. Diante de cada uma das funções, faz as
determinações necessárias e procede como descrevemos.
Vejamos um exemplo:
AS ALTERAÇÕES
NOS JUÍZOS:
Para elaborar a psicopatologia dos juízos, Paim parte da abordagem lógica
— aristotélica, devemos dizer — do juízo, entendido em seu aspecto formal
enquanto afirmação ou negação de uma relação entre dois conceitos, sendo sua
peculiaridade o fato de asseverar, de enunciar. Sujeito: de quem se afirma. Predicado:
aquilo que se afirma do sujeito. Os termos,
expressão lógica de conceitos, são ligados por meio de um termo cópula que estabelece, pois, a relação
entre sujeito e predicado. A forma do
juízo na linguagem é a proposição,
enquanto que a palavra é a expressão
dos conceitos. Hegel, segundo Paim, apontaria que a principal contradição do
juízo é fato de nele o singular ter de ser geral ou reduzível à generalidade;
esta contradição mostra o caráter dialético do juízo, nele unidos o
contraditório e o diferente por meio de um ato noético vinculador. Um juízo
expressa a verdade ou o erro conforme sua correspondência na prática, sendo
este seu único critério de verdade: consonância com a realidade.
Na psicopatologia dos juízos, Paim
inclui os delírios, tratado de praxe como formas de alteração do conteúdo do
pensamento. Para ele, nos casos de delírios esquizofrênicos os juízos se formam
sem ter uma pedra de toque empírica, isto é, sem balizamento na realidade
referindo-se a sujeitos ou predicados inexistentes; contudo, afora isto, o pensamento
funciona de maneira normal. Por isso ele considera delírio como integrante da
patologia dos juízos.
Além disso, por muito tempo os
delírios eram nomeados, de forma equivocada, sempre segundo Paim, de idéias
delirantes e, deste modo concebido pelos clássicos, eram definidos como um erro
incapaz de ser corrigido — concepção impossível de ser sustentada hoje em dia.
Salientamos que para nós o delírio é uma alteração na formação dos juízos, não
das idéias, dos conceitos ou das representações, que Paim considera como
funções de outra ordem. Um delírio é uma alteração profunda da consciência, que
leva ao proferimento de juízos falsos; se desenvolve em condições patológicas
pré-existentes.
CLASSIFICAÇÃO
DOS DELÍRIOS
De acordo com Paim, Jaspers
considerava o delírio como um estado no qual os juízos são enunciados com
certeza inabalável, mesmo pela experiência ou pela lógica muito embora seu
conteúdo e modo de formação sejam falsos. Quando sua causa é compreensível,
chamam-se idéias deliróides; quando
as causas são primárias, incompreensíveis, chamamos idéias delirantes verdadeiras. K. Schneider conta três modalidades
de delírio:
1. Percepção delirante: atribuição
aleatória e arbitrária de uma significação anormal a uma percepção normal; a
significação exótica é experimentada como imposição exterior, mas que permite
acesso a uma realidade superior incompreensível para outrem. A percepção é
alterada dada a vivência delirante, que resulta em perturbação do pensamento,
de modo que o objeto percebido adquire significações inusitadas e insólitas, em
geral autorreferentes. Trata-se, pois, de transtorno no ato de integração
significativa, deformação que ao invés das intenções estarem nos sujeitos, elas
tornam-se parte dos próprios objetos: as significações dadas por estes passam a
subjugar toda a existência da pessoa.
As percepções delirantes geralmente indicam psicose esquizofrênica. Há
três posições: para alguns, elas instauram uma nova vivência; para outros são
alterações do juízo (Jaspers) e para outros ainda são alterações do pensamento
(K. Scheneider). Há ainda outras concepções: para C. Del Pino, sendo a percepção delirante a atribuição de
significações caprichosas a fenômenos, ela é, então, patologia da significação;
na pegada da analítica existencial, Kunz defende que a chave primária da
percepção delirante é a completa transformação do ser-no-mundo[22].
2. Ocorrência delirante: trata-se
de um fenômeno onde a crença delirante é puramente subjetiva e a significação
anormal é indistinguível do enfermo. De difícil diagnóstico, tem pouca
importância nestes termos embora revele a natureza da psicose do enfermo. Seu
conteúdo em geral refere-se à política, religião ou qualidade especial,
colocando o paciente em uma posição distinta das demais, como rei ou imperador.
Weitbrecht[23] alerta que
a ocorrência delirante nunca tem lugar isoladamente,o que marca-lhe posição no
diagnóstico; além disso, sempre acompanham psicoses endógenas e somáticas.
3. Reação deliróide: O estado
de ânimo do enfermo é a raiz que dá sentido às alterações de significação e de
referência. A partir de sentimentos de angústia e desconfiança, bem como de
distimia, desenvolvem-se reações deliróides, cujo tema geralmente é secundário,
embora valiosos para a Psicopatologia Forense.
TIPOS DE DELÍRIO
GENUÍNO
Delírio
de perseguição: Seu início é bastante variável conforme a casuística,
embora sempre marcado pelo sentimento de certeza absoluta. Seu início pode ser
súbito, originado em um ato considerado singular, ou, quando não, desenvolve-se
a partir de um estado de inquietação interna; nomeado humor delirante, ele é marcado por desconfiança excessiva de todos
e um comportamento demasiadamente crítico e áspero, donde brotarão os delírios
como certezas irremovíveis. Quando completamente maturado, todos poderão fazer
parte da conspiração, inclusive o médico.
Delírio de revelação: todos os
fatos externos, inclusive os menores, passam a ter relação com a pessoa do
doente. O conteúdo do delírio geralmente negativo e tem relação com a vivência
psíquica do enfermo antes da emergência da afecção.
Delírio de influência: o
paciente sente influenciado por ondas, telepatia, radiações, choques, etc., que
advêm de máquinas ou aparatos inventados por seus inimigos para controlá-lo ou
machucá-lo. Em alguns casos, assume a forma do envenenamento, percebido nos alimentos, o que pode levar a sua
recusa. Geralmente este delírio é prodrômico[24]
de alteração grave da personalidade.
Delírio de ciúme: Manifesta-se
em esquizofrênicos paranóides geralmente com grande valor do ponto de vista
médico. Se manifesta-se sob a forma conjugal, todos passam a fazer parte de uma
conspiração onde o cônjuge o trai com diversas pessoas;e m casos extremos
pode-se desenvolver rumo a um delírio de envenenamento; em outros, termina em
homicídio ou uxoricídio (assassinato da mulher pelo marido).
Delírio de grandeza: Pode
assumir várias formas de acordo com o contexto sócio-histórico do paciente,
como riqueza, poder, eróticos, fisiológicos, etc. Quando ambicioso, o delírio assume a forma de exagero da própria
personalidade com respectivos exageros comportamentais. Quando de invenção, o delírio faz o doente crer
que descobriu maravilhas científicas de ordens distintas — é forma rara de
delírio. Se de reforma, o delírio
constitui variação daquele de grande, tomando conotações sócio-políticas;
distingue-se militantes normais daqueles delirantes por três características,
quais sejam: crença na originalidade, ilogismo, ausência de senso para
propagá-las. A forma erótica manifesta-se
sob forma de paixão — sexual ou platônica — normalmente por celebridades.
FISIOPATOLOGIA
DOS DELÍRIOS
Paim refere-se à Pavlov para considerar que a retenção dos
processos excitatórios no córtex cerebral[25]
desencadeia o desenvolvimento dos delírios pela diminuição da capacidade crítica
no enfermo. Essa retenção pode advir tanto do meio como de estados patológicos
cenestésicos[26]
VALOR
SEMIOLÓGICO
Em relação ao valor semiológico,
Paim defende que o mais importante nos fenômenos de delírio é o fato de
servirem como índice de uma agressão profunda na personalidade, geralmente
processos de alterações esquizofrênicos, senis ou advindos de intoxicações. As
psicoses sintomáticas, maníaco-depressivas e psicopáticas são terreno fértil
exclusivo para as idéias deliróides.
Com isto, exposta a psicologia do
delírio, suas alterações patológica, sua fisiopatologia e seu valor
semiológico, mostramos o proceder elementar da psicopatologia. Poderíamos
mostrar de todas as funções — mas de nada nos serviriam para entender não cada
menor parte, mas a racionalidade por meio da qual opera a psiquiatria.
Conclusões parciais
Esta síntese da psiquiatria e de
seus métodos há de nos servir para nossa exposição histórica. A elaboramos a
partir de textos médico-psiquiátricos a fim de permitir que, conforme nosso
olhar deslize pelo jaleco dos dottores,
tenhamos claro a história que os marca, o pensamento que o define e a prática
que empreendem
A psiquiatria, em termos gerais,
ciência que leva os traços marca da sociedade que a criou, não pode escapar
desta. Veremos que em sua busca por se tornar ciência médica, tomou o caminho
mais curto, a reta. Se reconhecia a proposição de Euclides, contudo lhe faltava
as ferramentas próprias para cultivar o terreno que se propunha e, ao mesmo
tempo, de acordo com as teses de Foucault, que já veremos, incorria em um erro
epistêmico fundamental.
Assim, tal
qual a medicina obtinha da fisiologia o substrato próprio para a ação do
médico, também a psiquiatria quis que a psicologia, tornada ciência a partir
dos trabalhos de Wundt — germânico,
lembrem-se —, lhe proporcionasse a fisiologia da alma — com instrumentos que a
psicologia nunca contou. Assim como Bichat deu as bases da anatomopatologia,
também a psiquiatria quis uma psicopatologia, um manual das morbidades mentais
que servissem como a bússola para a aplicação de sua terapêutica de
efetividade, eficácia e procedências duvidosas.
Esta
trajetória, que em nada deve à Comte, é trajetória de um corpo de discursos em
busca de sua cientificidade, assim como os cristãos fundaram a teologia para
refutar sua falta de fé. Ou, senão, e talvez também, de uma pseudo-ciência
buscando a capa do saber cientifico para fundamentar seus próprios desígnios,
justificar suas relações de poder — base de todo saber, conforme vimos.
Sem perceber,
o que lhes era impossível, sem saber sua própria história e seus próprios
fundamentos; sem dar em si das relações de poder que lhes permitiam, a
psiquiatria passou por todo seu período de ouro atrás de um substrato tão firme
que lhes colocasse no primeiro plano da saúde pública e parte integrante da
higiene pública. Se é fato que a “a psiquiatria manobrou para ser reconhecida
como parte da higiene pública” (FOUCAULT, 2007c, p. 255), não é menos concreto
que somente pôde ser o que pretendia quando reconheceu seus fundamentos
históricos, quer dizer, sua dupla base moral e política: é Morel[27],
na fronteira entre a médécin mentale
francesa e a psychiatrie alemã, que
permitirá isto, animando novas questões e dando o leit motif de Hoffmann e Pereira Passos.
Pretendemos,
pois, a partir desta breve exposição sobre os rudimentos da psiquiatria de
hoje, mostrar as condições de surgimento desta — antes da aparição da própria
noção de psiquiatria e de doença mental —, seu desenvolvimento em seus maiores
autores e praticadores, sobretudo até que um jovem neurologista de Viena
propusesse um modo de superar as problemáticas postas rumo a uma nova ciência,
uma nova psicopatologia...
4.3. A história da psiquiatria (para os
psiquiatras)
“O alienado mais violento e mais temível se tornou, por vias
suaves e conciliatórias, o homem mais dócil e digno de interesse por uma sensibilidade
tocante.”
Philippe Pinel
Tratado médico-filosófico
sobre a alienação mental
Se F. Nietzsche tivesse tido a
oportunidade de ler a forma como os psiquiatras fazem a história de sua própria
disciplina, sem dúvida não saberia distingui-los dos ingleses, estes que gostam
da suave história azul do Mesmo, da semente plantada na aurora dos dias que se
desenvolveu até o estalar de nossas horas.
Para os psiquiatras (cf ALEXANDER,
SELESNICK, 1966; GRANDINO, NOGUEIRA, 1985; CAMPAILLA, 1982; PAIM, 1977) sua
ciência possui um objeto positivo. A loucura é um fato do mundo e acompanha o
homem desde que este surgiu no planeta. A doença mental e os loucos, os
enfermos, os alienados, enfim, estavam ali expostos ao nível cultural e
cientifico das distintas civilizações, e, assim, tinham o tratamento adequado à
evolução do saber em sua época. Dependendo dos dias de seu nascimento, o louco
poderia ser desde uma divindade a objeto de profunda repulsa; podia ser tratado
com as honras do Cristo redivivo que retorna ao mundo da carne ou exposto às
sevícias mais horripilantes para nossa sensibilidade contemporânea.
Os doentes mentais, dizem os psiquiatras, tiveram de aguardar a
psiquiatria surgir, quer dizer, a ciência avançar em seus conhecimentos
objetivos sobre as coisas para, só então, serem compreendidos e poderem
vislumbrar as possibilidades do cessar de seu sofrimento através de
diagnósticos e terapêuticas.
Este positivismo, esta teleologia historiográfica dos psiquiatras alcança
tamanha proporção que, segundo eles,
“Três
tendências básicas no pensamento psiquiátrico podem ser traçadas até os tempos
mais antigos: a tentativa de explicar as doenças da mente em termos físicos,
isto é, o método orgânico; a tentativa de encontrar explicação psicológica para
as enfermidades mentais; e a tentativa de lidar com acontecimentos
inexplicáveis por meio de magia” (ALEXANDER, SELESNICK, 1966, p. 28)
Os mais astutos facilmente poderão
deduzir o restante: a abordagem mágica seria como que a pré-história da
psiquiatria, ainda imberbe e insuficiente em termos de recursos descritivos,
analíticos e conceituais adequados para dar conta da complexidade do fato
mórbido-mental. Pautados no embotamento de pensamento que lhes é próprio, os
primitivos buscariam respostas divinas ou anímicas para compreender a doença
mental, e, naturalmente, também os processos de cura seriam pautadas no mesmo
primitivismo de cunho tribal, com métodos de sugestão utilizados sobremaneira
pelos feiticeiros, oráculos e afins.
Aos poucos, contudo,
teria o homem através de uma fina observação do meio, passado a compreender a
regularidade dos fenômenos naturais e, assim, descrevê-los em termos racionais,
embora pré-científicos: o corpo emergia como uma realidade físico-química para
os gregos, helenos e romanos. Este desenvolvimento foi atrasado pelas trevas
medievais e a ressurreição das já ultrapassadas “tendências demonológicas e
religioso-mágicas” (ALEXANDER, SELESNICK, 1966, p. 32), somente combatidas no
Renascimento, onde se principia a última fase deste processo suave que
desemboca na moderna ciência e na moderna medicina, a de X. Bichat, C. Bernard
e A. Fleming. A psiquiatria, enquanto especialidade médica, obviamente fez
parte desde processo de amadurecimento, desde o xamã de aldeia aos modernos dottores
com todo seu aparato técnico. Quer dizer, o método racionalista-moderno, físico
enfim, de descrição e compreensão do mundo seria plenamente utilizável em
psiquiatria, sendo o método orgânico sua forma psiquiátrica contemporânea.
Do mesmo modo, o método
psicológico de diagnóstico e terapêutica também já estava embrionário desde os
despertares da civilização. Se os primeiros homens descreviam as formas de
sofrimento mental em termos de espírito maus que atormentavam o pobre enfermo,
teve-se de esperar até Hipócrates — do qual falaremos um tanto — para que a
epilepsia perdesse seu caráter divino e se tornasse mais uma moléstia, embora
de cunho orgânico. Somente Cícero, na Antiguidade, teria reconhecido seu
caráter psicológico, tendo ele, inclusive lançado os alicerces da psicoterapia!
Neste redemoinho de precursores, Sto Agostinho torna-se o maior psicólogo até
Freud, Montaigne, Maquiavel, Boccacio e Rabelais aparecem como os descritores
da psique enquanto realidade do homem. Todos eles, psicólogos; todos
eles, predecessores da psiquiatria moderna.
*
Embora o termo doença mental seja contemporâneo, sempre se reconheceram,
dizem os psiquiatras, este mesmo fenômeno, o do distúrbio mental. Malgrado as
distintas interpretações do fenômeno, o reconhecimento das perturbações mentais
é universal, constando desde em civilizações paleolíticas até os incas,
passando pelos egípicios, chineses, judeus. Hipócrates (460-375 a.C.) criou uma
classificação dos distúrbios mentais; no sec. I, o romano Celso faz constar em
sua enciclopédia médica os distúrbios mentais. Durante a Id. Média,
distinguiu-se entre loucura natural e loucura fruto do pecado. No Renascimento,
alguns elogiavam e outros tratavam a loucura como bruxaria.
Juntamente à desdivinização do homem
empreendida pelos naturalistas no séc. XVIII, situando o homem junto aos demais
animais, passa-se a pensar seu comportamento não em termos divinos, donde o conceito
de doença mental pode ser expresso como patologia da liberdade. O francês Pinel
destaca-se neste contexto, ao libertar os loucos das masmorras, providenciando,
por um lado, higiene, alimentação e desenvolvimento das qualidades morais; por
outro, vale-se dos métodos naturalistas de classificação para elaborar uma
nosografia das doenças mentais, divididas em conjuntos de sintomas. Com Pinel,
teria iniciado a humanização do tratamento da loucura.
Contudo, a nosografia pineliana era
confusa e ineficaz. A partir de estudos biológicos operou-se, contudo, uma nova
abordagem dos fenômenos patológicos. Em 1822, Bayle individualizou a paralisia
geral ao mostrar que as origem era devida a inflamação da aracnóide,uma das
glândulas que revestem o cérebro. Em 1879 Fournier liga a paralisa geral
progressiva com a sífilis.
A partir disto, os psiquiatras passaram a buscar as causas específicas de
outras doenças. Emil Kraepelin (1856-1926) elaborou durante 20 anos a base da
nosografia psiquiátrica a partir do conceito de unidade nosológica, ao qual se vincula uma doença com causas,
sintomatologia, desenvolvimento e anatomopatologia equivalente. Kraepelin
agrupou a psicose maníaco-depressiva, a demência precoce (e suas três formas
clínicas: paranóide, hebefrênica[28]
e catatônica[29]) e
esclareceu o campo teórico-prático de atuação do psiquiatra, definindo seu
objeto, marcando a importância das classificações para uma disciplina
científica e permitindo à união do saber clínico com o de demais áreas e
disciplinas. Tratado de psiquiatria,
1909, E. Kraepelin: “A psiquiatria é o estudo das doenças mentais e seu
tratamento (...) [ela é] o conhecimento científico da natureza das doenças
mentais” (apud GRANDINO, NOGUEIRA, 1985, p. 66). Kraepelin leva as últimas
conseqüências a posição biologista, que busca o fundamento biológico da doença,
e analisá-la de maneira causal. Sem dúvida, pois, podemos chamar sua
psiquiatria de positivista.
Dentre
os fatores que fizeram fracassar a classificação de Kraepelin conta-se a
crítica de Jaspers a ele. Na Psicopatologia
geral (1913), K.Jaspers aponta que a noção de unidade nosológica demanda um
amplo leque de conhecimentos então indisponíveis. Em 1907, Bonhoeffer mostrou
como Kraepelin errou ao catalogar duas doenças com causas distintas, que concordavam
em todo o restante. Bleuler, em 1911, se propõe a rever o conceito de demência
precoce utilizado por Kraepelin; para ele a alteração mental não é
quantitativa, mas qualitativa, com um reordenamento das funções; ressaltou as
diferenças de evolução entre distintos doentes; além disso,privilegiou, no
diagnostico,a sintomatologia ao invés de critérios clinicoevolutivos.
Além destes, as propostas de Freud e
do existencialismo[30]
fizeram tremer o conceito de unidade nosológica. A teoria da psicose unitária
(há uma doença mental com inúmeras formas de apresentação), as propostas de
Hoche (a noção de síndrome, com origem especificada pelos sintomas mutáveis) e
os que continuaram classificando, deram a tônica da psiquiatria no período.
Contudo, pode-se dizer que a
psiquiatria organizou-se, depois, em torno da noção de síndrome e de seus
grupos: exógenas, originárias de
lesões demonstráveis, doenças somáticas e intoxicações; endógenas, cujo diagnóstico é puramente psicopatológico,
baseando-se tanto nos sintomas como na reação do pacientes, conta-se a
esquizofrenia e a psicose maníaco depressiva aqui; e psicogênicas¸ grupo grande, que inclui todas as patologias
dependentes de vivências e somente compreensíveis a partir da forma como o
sujeito organiza sua própria vida.
Há dois tipos de tratamento das
doenças mentais: os psicoterapêuticos (talking
cure, etc.) e os biológicos; estes buscam corrigir problemas metabólicos e
neurofisiológicos por meio de remédios, tratamento de choque, etc. Freud é um
dos fundadores da psicoterapia, através da psicanálise, principal corrente
desta modalidade. Ligada diretamente ao tratamento das histéricas, Freud as
estudara juntamente com Charcot. Aprendeu os benefícios e os malefícios da
hipnose como técnica terapêutica, logo substituída pelo método da associação
livre; este permite a vinda à tona de atos psíquicos reprimidos, revelando,
pois, a existência do inconsciente, mérito da psicologia freudiana; estes atos
terminam por retornar sob a forma de sonhos, sintomas e atos falhos. Outro
pilar da teoria freudiana é a da sexualidade, sob suas diversas formas.
Jung
e L. Binswanger, próximos a Freud, deram outro rumo as suas teorias, com
Binswanger aproximando-a do existencialismo de Heidegger. Outros buscaram as
causas orgânicas das moléstias bem como tratamentos: o choque insulínico de
Sakel, o eletrochoque de Cerletti e Bini, ambos visando reequilibrar o
funcionamento do organismo por meio do choque[31].
Além disso, os farmacopsicotrópicos também passaram a ser utilizados (P. Chapontier,
1950, clorpromazina, anestésico): remédios que atuam na bioquímica cerebral.
Na década de 1960, quando a
psiquiatria de fato encorpa-se enquanto disciplina médico-científica não
especulativa surgem as críticas mais severas.
Em 1961 são lançados História da
loucura e O mito da doença mental[32],
de Foucault e Szasz, que questionam a psiquiatria e o conceito de doença
mental. Laing, Cooper, Basaglia, Castel, dentre outros, também partem para o
ataque. Laing e Cooper defendiam a inexistência da esquizofrenia, sobretudo
considerando-a uma viagem interior à uma realidade mais ampla; o tratamento é
visto como tortura a serviço da ordem burguesa. Basaglia[33]
propõe a união entre doentes mentais e grupos revolucionários, devendo a
terapêutica ser realizada pela comunidade. Alguns dentre eles tentaram por em
prática suas teorias, a maior parte, contudo, fracassando.
*
Algumas notas historiográficas antes de debatermos as contestações
propriamente psicológicas de Foucault a estas teses comuns na psiquiatria. A forma
como os historiadores da ciência tradicionais tocam seu trabalho foi inúmeras
vezes comentada por Foucault. Não há de se estranhar, portanto, que nossa
orientação na elaboração deste trabalho seja eqüidistante da de nossos
historiadores da psiquiatria, sejam os descritos acima, sejam todos aqueles os
quais lançaremos mãos neste texto.
Também não deve causar espanto que
os psiquiatras busquem em grandes pensadores do Ocidente o tenro broto de sua
disciplina. Quando expõe os motivos pelos quais quis estudar a psiquiatria,
parece-nos que o próprio Foucault aponta uma das causas desta identificação tão
bem apreciada pelos psiquiatras: não será porque (...) “o perfil epistemológico
da psiquiatria é pouco definido, e porque a prática psiquiátrica está ligada a
uma série de instituições, de exigências econômicas imediatas e de urgências
políticas de regulamentações sociais?” (FOUCAULT, 2007c, p. 1). Quer dizer, uma ciência tão frágil e tão
contestável diante da analítica histórica tem de se agarrar em algo um tanto
mais fixo para se manter científica.
Já expusemos as teses historiográficas de Foucault, e que
cotejadas com o modo como os psiquiatras escrevem seu destino progresso, não
deixa dúvidas do caráter da disciplina.
Portanto, antes de sermos contra ou a favor da psiquiatria, somos
contrários aos métodos que nossas fontes utilizam para traçar a história de sua
própria disciplina. Afinal, como considerar que se trata da mesma ciência
quando seu objeto é distinto, pois as formas de apreendê-lo, quer dizer,
conceituá-lo, opõe-se tanto? A título de exemplo, basta citarmos que para
Hipócrates (460-377 a.C.) a histeria era causada pelo desprendimento do útero
da bacia; em compensações, já no séc. XIX, Charcot dirá que “dans ces cas
pareils, c’est toujours la chose génitale, toujours, toujours”[34].Trata-se,
pois, de uma mesma medicina, que amadurece com o tempo, ou de medicinas
distintas, uma sucessão de racionalidades estranhas entre si, com formas
epistêmicas completamente opostas de apreender as coisas?
5. Fundamentos da crítica de Foucault
Doença Mental e psicologia ocupa um papel importante em nossa
reflexão. Obra de um Foucault ainda influenciado pelo marxismo e pela analítica
existencial de cunho fenomenológico-heideggeriano de L. Binswanger, e sem método
próprio; neste texto encontramos uma problematização profunda das patologias
mental e orgânica[35]
e a saída diagonal de Foucault ao problema.
Na análise foucaultiana, o pensamento psicológico do século de XIX
pautara-se na identificação do que é a doença mental e de qual sua
relação com a patologia orgânica.
Para Foucault, a patologia mental foi então abordada com os mesmos métodos e
critérios daqueles das doenças orgânicas, quer dizer, a psiquiatria e
psicologias do século XX agiam como se houvesse uma metapatologia, uma doença
existente enquanto ser abstrato, que se manifesta em patologias mentais e
orgânicas
Assim, as duas patologias
moveram-se no sentido de fundamentar uma essência da doença: estabelecer uma
etiologia a partir da sintomatologia obtida na observação clínicas; estas duas
devem fundamentar uma nosografia que, por sua vez, dê os subsídios para o
estabelecimento da terapêutica. Ou seja, a doença série uma espécie, algo que
existe organicamente e independentemente dos critérios de avaliação, cabendo ao
psiquiatria, tanto quanto ao médico — sendo a medicina e a psiquiatria as duas
faces do mesmo Janus —, sua descrição tal qual o faria um historiador natural
ou um biólogo. Podemos dizer, sem dúvida, que se tratava de aplicar o more botanico inventado pelos
naturalistas das Luzes ao campo da doença mental.
Foucault nos descreve, contudo, outro momento da
psiquiatria: a doença passa a ser entendida como desorganização em uma
maturação do individuo; como se a personalidade desenvolve-se rumo a uma
finalização totalizante e a doença fosse a grande interrupção, a pedra que
cerra o caminho do desenvolvimento, forçando a abertura de um novo caminho,
aquele da morbidez. Assim, desenvolve a clássica distinção entre neurose e
psicose. Sendo a doença desorganização de uma personalidade dada, há de se
fazer uma distinção qualitativa do grau de alteração da personalidade; serão
neuroses todas aquelas patologias que alterarem uma faculdade do aparelho
psíquico, mantendo as demais intactas; ao mesmo tempo, serão consideradas
psicoses as doenças mentais que mudarem o conjunto da personalidade tornada
mórbida.
*
Malgrado esta diferença entre os dois procedimentos
psicopatológicos presentes no século XIX — uma psicopatologia unificadora e uma
psicopatologia da personalidade — , a psicologia de então tinha como base que a
doença desagrega as funções mentais e “suprime as funções complexas, estáveis e
voluntárias, exaltando as funções simples, instáveis e automáticas” (FOUCAULT,
1975, p. 25) como se doença desencadeasse um estado de retorno ao passado
individual, fazendo com que determinadas faculdades se percam ou se
desorganizem e que funções inteiras da psique se transformem. Mesmo
Freud tomava que a neurose é uma forma de regressão a um nível de estruturação
libidinal ultrapassado.
A análise de Foucault segue adiante, interpelando a
psicologias evolucionistas de Janet[36]
e de J. H. Jackson[37]
e questionando-as por meio da psicopatologia fenomenológica de Biswanger[38]
e de Jaspers[39]. A partir
destes dois autores — particularmente Binswanger, leitor atento de Heidegger —
Foucault elaborará uma tese bastante interessante para nós: para que assome
como possibilidade algo como uma medicina mental — se ela for possível — ela
deve se pautar em uma compreensão histórica das relações entre homem louco e
homem normal. Para nós isto equivale a dizer que a base da psicopatologia, ou, melhor, da psiquiatria, não pode ser reduzida a
uma dicotomia ou psicológica ou orgânica, tal como querem nossos
historiadores da psiquiatria. Para nós, a tese de Foucault neste texto, e que
ele desenvolverá em História da Loucura,
e em toda sua obra, conforme veremos, toma que a base da psiquiatria é
histórica e variável de acordo com distintas culturas.
A partir disto, nosso objetivo neste trabalho é acompanhar:
1º a formação das bases para uma apropriação médica da loucura; e 2º os
desenvolvimentos da medicina mental e da psiquiatria — que são distintas, ao
menos no século XIX, já veremos porque — no século retrasado.
Para tanto, lançaremos mão da obra magna de Foucault
sobre o tema, a História da loucura,
especialmente para o primeiro objetivo; mas também, vez ou outra, de seus
principais textos genealógicos sobre o tema, quais sejam Poder Psiquiátrico e Os
anormais. Ao mesmo tempo, contudo, tentamos ser rigorosamente fieis ao
próprio pensamento de Foucault; afinal, como os psiquiatras pensavam sua
ciência e como ainda hoje fazem esta história de si mesmos e de seu saber? Ou
seja, lançamos mão da leitura de textos psiquiátricos e de historiadores da psiquiatria,
na tentativa de entender melhor esta disciplina e suas escaramuças
metodológicas e teóricas.
6. A formação do mundo psiquiátrico
Proveniência do internamento
Na História da Loucura na Idade Clássica[40]
Foucault trata de nos descrever como a loucura, que até então tinha uma vida
ativa e livre no imaginário e cotidiano da Europa, foi, aos poucos, apreendida
por uma consciência médica até redundar na formação da médécin mentale inaugurada por Pinel.
Na Alta Idade Média organizou-se na Europa toda uma rede de leprosários,
destinados a receber, enquanto espaços de exclusão, a encarnação do mal, os
lázaros do continente. Quando Luis VIII regulamenta os leprosários no século
XIII, eles já são mais de 2000 em toda a França. Contudo, a partir do século XV
os leprosários esvaziam-se — com o fim das Cruzadas, rareiam as fontes de
contágio —, embora a função que ocupavam permanecerá, mas agora assumida por
outras figuras.
As maladrièries passam a
receber pobres, desnutridos, mendigos e soldados estropiados. Se desde o século
XVI a monarquia busca reorganizar as maladrièries,
em 1672 e em 1693-5, o rei terminará por unificar todos os estabelecimentos
hospitalares (maladrièries,
instituições assistenciais e hospitais) sob um só regulamento e controle.
Em dois séculos, pois, a até então central lepra regredirá, bem como os
leprosários em toda a Europa. Vários motivos e nenhum é médico. Contudo, a
função do leproso continua: sinal da fúria e da salvação de deus, o leproso é o
instrumento divino na luta pela purgação dos pecados, em um movimento que
unifica exclusão social nos leprosários e reintegração espiritual com os
desígnios da divindidade. Em um primeiro momento, serão as doenças venéreas que
ameaçaram ocupar o lugar da lepra, mas o baixo número de infectados e a
existência de terapêuticas — a utilização do azougue, por exemplo — farão com que seja a loucura que ocupe este
espaço. O louco, contudo, não era figura nova, estando presente desde antes da
Idade Média como figura central.
Na Renascença havia a figura da Nave dos Loucos, Narrenschaft. Se,
por um lado é uma figura artística, por outro é real: navios que carregavam os
loucos de uma cidade a outra, malgrado as leis locais e os distintos
procedimentos já existentes, bem como a existência de espaços reservados aos
loucos nos hospitais. Se é verdade que a Nave expulsa os loucos, livrando a
cidade de mantê-los ou de lidar com eles; ao mesmo tempo, a Narrenschaft
tem forte caráter simbólico. Estar na Nave significa que o louco é prisioneiro
de seu destino; se é a água que trará e levará os loucos para os distintos
lugares de peregrinação e contraperegrinação, ao mesmo tempo, a água purifica. O louco é aquele que está
preso na liberdade de vagar, prisioneiro da viagem. Enfim, o louco é, na Idade
Médica, "posto no interior do exterior" (FOUCAULT, 1972, p. 22)
Ao final da Idade Média, o louco tornar-se uma figura maior e ambígua:
"ameaça e derrisão, vertiginosa desrazão do mundo, e mince ridícula dos homens" (FOUCAULT, 1972, p. 24). Se na
crítica o louco é denunciado, na arte ele detém a verdade. A loucura é o vício
do qual ninguém escapa. Dubiedade que não deixa dúvidas: é o tempo de Erasmo,
mas também de Bosch.
A loucura ocupa, nesse sentido, o papel outrora ocupado pela morte na
mentalidade medieval da Europa: peso de vida embora destino do homem. É a
loucura que ocupará o lugar ambíguo da morte, ou seja, do vazio existencial. O
louco é aquele que não se preocupa com a morte, desarmando-a: a invasão da
loucura é outro sinal do fim das eras.
O aparecimento da loucura no final da renascença marca o fim das formas
góticas de simbolismo. As coisas, sobrecarregadas de sentimento perdem a sua
unidade e sua imediaticidade, escancarando o vazio entre o saber e a forma. A
loucura, em imagens e sentidos, vem ocupar este vácuo: o louco vaga entre o
animal e a coisa, o sonho e o pesadelo. O mundo sobrecarregado de sentidos faz
com que o saber pare de ensinar, dando lugar à fascinação, ao imaginário, ao
sonho e à loucura, que são mais atraentes que o mundo duro da carne.
Com a Renascença a animalidade, até então presa no simbolismo cristão do Nome dado por Adão, transborda,
fascinando justamente por escapar ao homem, sendo, pois, símbolo da loucura.
Este saber esotérico é próprio do louco que, com sua ingenuidade vence, para
Dürer[41],
tanto deus como o diabo. No louco, o homem vê seu destino nas profundezas do
inferno.
Na literatura filosófica e moral, há outro espaço da loucura. Na Idade
Média, a loucura é um vício, uma das doze dualidades da alma humana, oposta à
prudência. Na Renascença, a loucura é o próprio vício, tendo inúmeras
expressões, todas elas ligadas a fraqueza, a soberba e a ignorância humana.
"A loucura não tem somente caso com a verdade e o mundo que tem com o
homem e verdade dele mesmo, que ele sabe perceber” (FOUCAULT, 1972, p. 36). A
loucura diz de uma conduta, ou seja, é moral. Como o vício é a irregularidade
da conduta, a loucura é pecado
Dupla experiência da loucura: uma trágica, que a experimenta com um
fascínio cósmico; outra, crítica que a observa como vício moral. Se é verdade
que houve trocas entre estas duas posições, com o tempo elas dividirão a
experiência até então unitária da loucura. O humanismo, ao situar a loucura
como moral, diz que ela dirige a conduta dos homens: a loucura se opõe à
verdade e ao essencial. Ao final da Renascença, ao final do século XVI,
contudo, haverá somente uma experiência da loucura: como vicio, erro que
sucumbe no confronto com a verdade.
A consciência crítica da loucura passa medi-la em relação à
razão. A loucura é identificada com a imediaticidade e aparência das coisas, em
contraposição a sua essência; a ordem dos homens, imperfeita e efêmera, contra
a essencialidade de deus e da verdade eterna das coisas: ‘medida à verdade das
essências e de deus, toda ordem humana não é senão loucura" (FOUCAULT,
1972, p. 42).
A razão do homem é louca
perto daquela divina, mas esta não abandona o homem: está nele, e deus se
comunica com os homens desta forma; ou seja, a loucura não tem existência
positiva, mas relacional à razão de deus.
Reinscrita como figura da razão, a loucura logo se vê capturada. Ela
torna-se ensejo da afirmação da razão. Não sendo mais trágica, a loucura
torna-se alvo da crítica: ela é o erro e a ilusão: "ela [a loucura] toma o
falso pelo verdadeiro; a morte pela vida; o homem pela mulher, o amoroso por
L'Erynnye e a vítima por Minos" (FOUCAULT, 1972, p. 51); assim, a loucura
revela a verdade, pois ela é sempre ilusão.
Como a Idade Clássica prende a loucura na razão, também a Nave tomará
outra forma: a do Hospital dos Loucos. Lá, a desordem tomará ordem. Novas
exigências formulam-se e os loucos as saberão na pele.
Se a Renascença controlou a loucura pela repressão, a Idade Clássica a
controlará pelo mutismo. Para Montaigne a loucura é sempre a dúvida que paira
sobre qualquer um, Para Descartes, a loucura é a impossibilidade de pensamento;
duvidar da própria sanidade é índice de racionalidade, i. é, a certeza da
existência de si, o cogito implica não-loucura.
Emergência do internamento
Extravasando o campo teorético, a Idade Clássica cria casas de
internamento para os desrazoáveis: na França, o instrumento das lettres de
cachet[42];
na Inglaterra, as workhouses; na região que se tornaria a Alemanha, as Zuchthäusen.
Quando a psiquiatria se formar, o louco já estará internado, pois foi por meio
do internamento que a Idade Clássica experimentou a loucura, fazendo com que
esta desaparecesse da cultura européia.
Em 1656 o Rei Sol, Luis XIV, cria o Hôpital Général, em Paris,
como parte de uma reforma de diversas instituições. Apesar do nome, o Hôpital
não é uma instituição médica; administrado por um gérant, é de sua
competência assistir os pobres, inválidos, mendigos, doentes e alienados de
Paris.
“Soberania quase
absoluta, jurisdição sem apelação, direito de execução contra o qual nada pode
prevalecer — o Hôpital Général é um
estranho poder que o rei estabelece entre s polícia e a justiça, nos limites da
lei: a terceira ordem de repressão” (FOUCAULT, 1972, p. 61).
O que há de médico no Hôpital é a visita de um profissional destes
não mais que duas vezes por semana; de resto, não se trata de uma instituição
médica, mas de uma instância da ordem absolutista francesa.
Ligadas ao estabelecimento do poder real, em 1676, outro decreto real
dispõe a criação de um Hôpital em cada cidade do reino; em 1789 existem
32 cidades com estas instituições em toda França. Também a Igreja encabeçava
este movimento com instituições próprias, reformando-as e adaptando-as às novas
necessidades da ordem Bourbon. No próprio Hôpital há um duplo caráter
variante entre o laico e o confessional. Se os bispos participam da
administração, são les principaux citoyens que exercem o papel
fundamental. Se a vida dos internos tem um caráter monástico, ao mesmo tempo as
lettres de cachê[43]
— operação do poder monástico —
são um dos instrumentos fundamentais do internamento. Mescla-se o duplo caráter
da caridade eclesiástica com os pobres com o impulso burguês de pôr este mundo
do desregramento, da miséria, nos limites da ordem mercantil-urbana emergente.
Serão nos edifícios dos antigos leprosários que se colocarão estas novas
instituições da ordem.
Este movimento é europeu. Na Inglaterra elisabetana criam-se as houses
of correction, 1575, em cada condado; adiante, dada a falência inicial,
prescreve-se o trabalho dos internos como forma de custear a manutenção da
instituição. Já em 1697 é a vez da emergência das worhouses, a primeira
em Bristol, mas logo estendida a todo o país. Na futura Alemanha, Hamburgo cria
em 1620 a primeira Zuchthäusern, casas de reprodução ou prisões. Enfim
em toda a Europa, seja anglo-saxã, latina ou germânica surgem prisões,
hospitais, casas de força, etc, que em poucos anos formarão uma rede de
instituições onde jovens, condenados, miseráveis e insensatos grassaram como
população própria. Enfim, por trás do internamento destas figuras distintas
encontra-se a emergência de outra percepção da miséria, de resposta aos
problemas econômicos do desemprego e da ociosidade aliadas a uma nova ética do
trabalho.
Para os
Reformadores protestantes, a riqueza e a pobreza são sinais de deus, sendo a
primeira sinal de eleição divina e a segunda castigo. Isto esvazia a caridade
medieval católica: é a fé que aproxima de deus, não suas obras, pois as obras
devem ser produtos da fé não o contrário. Por isso é o Estado que deve assumir
este papel, não associações civis, donde a laicização da caridade, movimento
característico da Idade Clássica. Se antes a loucura tinha um caráter ambíguo,
entre o sagrado e o profano, agora, sob a égide protestante, ela se torna fonte
da desordem social, assim como a miséria torna-se castigo divino e
desregramento moral.
No seio do catolicismo, dá-se a laicização por outros meios; no Concílio
de Trento — realizado de 1545 a 1563 — as idéias do
humanista de origem ibérica J. L. Vives influenciam os rumos da Contra-Reforma;
este Concílio defende a designação de magistrados com a tarefa de arrolar os
pobres da cidade, investigando suas vidas e moral, para enquadrar-lhes e
internar os mais obstinados em casas de trabalho. Embora muitos tenham
resistido a estas idéias, aos poucos o catolicismo aproxima-se delas, muitas já
em voga nos países protestantes: os pobres deixam de ser enviados de deus para
estimular o exercício da caridade e da piedade tornando-se o rebotalho
espiritual da sociedade, devendo se lhes dispensar compaixão somente por suas
misérias corporais.
Dividindo os pobres em dois tipos bons e maus — quer dizer, submissos ou
não ao internamento e à assistência, influenciados por deus ou pelo demônio,
não merecedores do castigo ou merecedores — a Igreja entra nesse movimento de
desmistificação da miséria, no qual o pobre é previamente valorado enquanto
sujeito moral e a pobreza tornada objeto que cumpre ao estado organizar. Esta
assunção da pobreza não mais como objeto de uma experiência mística e sim como
experiência social passível de medidas de saneamento social, colocará os pobres
ao lado do louco e dos desempregados, nestes espaços de exclusão que a Idade
Clássica criou.
O internamento é uma medida de polícia[44]
no sentido Clássico: medidas que ligam o trabalho às necessidades daqueles que
não trabalham. Antes de qualquer imperativo médico ou filantrópico é o
imperativo do trabalho que torna o internamento necessário. Isto explica porque
o decreto de 1656 toma a mendicância e a ociosidade como fonte de desordens.
Em 1559, 30% da população de 100.000 habitantes de Paris é mendicante.
Desde o século 16, a administração da cidade tentava enquadrar esta massa
urbana: em 1532 um edito do Parlamento citadino obriga os mendigos a
trabalharem limpando os esgotos da cidade; em 1534, outro edito sanciona que os
pobres (camponeses, sem terra, desertores, desempregados, doentes, etc.)
abandonem a cidade; um decreto de 1606, completando o de 1534, legisla que os
pobres devem ser marcados e ter a cabeça raspada antes de serem expulsos, sendo
impedidos de retornar por arqueiros.
Neste contexto de guerras religiosas, de um mercantilismo emergente e de
impossibilidade de organização do movimento operário; de luta entre Igreja e
Parlamento, o Hôpital — criação parlamentar — vem banir a exclusão
simples, em troca da criação de uma rede de internamento, que postula
obrigações aos internos. Em quatro anos, serão 11000 os internos do Hôpital
Général de Paris. Nos interstícios do século XVII, o Hôpital se
encarrega dos primeiros efeitos da crise econômica originada do arrocho
salarial, inflação e descenso da economia espanhola, então a mais importante da
Europa. Se nestes períodos de crise, o Hôpital assegura a ordem
internando desempregados e vagabundos, nos tempos de crescimento seu papel é
oferecer trabalho, garantindo a prosperidade.
“A alternância é clara: mão-de-obra barata, em tempos de pleno emprego e
de salários altos; e, em períodos de desemprego, reabsorção dos ociosos e
proteção social contra a agitação e os motins” (FOUCAULT, 1972, p. 79).
Pelas condições de trabalho e produção, os internos recebem menos que os
não-internos, o que leva, progressivamente, a uma concorrência muito aguda com
as manufaturas. Diante do perigo da concorrência, aos poucos o trabalho é
extinto nas instituições de internamento. Enfim, a significação que Colbert[45]
quis dar ao internamento — econômica, laborial e de controle — falhou em seus
termos econômicos, embora tenha conseguido evitar os levantes sociais da massa
urbana miserável da época. No fim do século XIX o fechamento das casas de
internamento na Europa deixará patente o fracasso destas enquanto resposta aos
problemas da nascente sociedade industrial.
Contudo, o internamento possui um sentido ético também. Se na Idade Média
o pior pecado é a soberba e na Renascença, a avareza; na Idade Clássica é a
preguiça que vem assumir este papel: ela é esperar a generosidade da natureza
mesmo após a queda de Adão. Nos interstícios entre trabalho e sua significação
ética, o louco sofre a condenação moral enquanto ocioso, que redunda em seu
internamento prático no mundo burguês da produção então em formação.
Na realidade este sentido ético do Hôpital é o mais fundamental. A
pobreza é fruto não da escassez, mas do desregramento moral, da falta de modos
e da preguiça. Compete ao Hôpital tornar toda essa massa urbana
moralmente libertina em força útil à sociedade. O trabalho aproxima-se da
ascese, e as casas de internamento sintetizam o imperativo moral do trabalho
com a lei civil que regulamenta as relações sociais. O sonho da cidade burguesa
se estabelece: o estado produzindo verdade, administrando-a e fazendo-a majorar
suas forças; seja na Europa protestante ou na católica, o objetivo é evitar o
pecado e buscar a beatitude ética para manter a ordem moral da sociedade. Nos
primórdio de nossa experiência da loucura, a Idade Clássica; a loucura como
impossibilidade do trabalho e da integração social; e o internamento, mudando
seu sentido em relação à Idade Média, torna-se instrumento econômico e social
de manutenção da ordem ético-política-econômica do mundo mercantilista e absolutista.
*
O início do século XX viu o desenvolvimento de uma corrente
historiográfica da psiquiatria situar o internamento como o ápice de uma
finalidade social, tal seja, a da sociedade eliminar de si os elementos
nocivos. Supondo uma loucura que foi sempre a mesma, tomam que no momento do
internamento, momento do mercantilismo, o que ocorria era que a ciência médica
positiva trazia à tona a verdade da loucura, perdida de si mesma; por baixo da
sensibilidade social, que percebia o louco como associaux, a consciência médica fez brilhar a realidade da loucura
ela mesma..
Falta-lhes história: o internamento
não foi dirigido aos loucos e sequer visa eliminar os associaux. O reconhecimento do louco como Outro foi criado, e é
esta criação que permitiu interná-lo. A loucura não deitou imóvel na história;
uma série de operações a fez deixar de ser familiar e a tornou passível de
banimento. A experiência que o homem da Idade Clássica teve da loucura foi a
que possibilitou a mesma experiência que temos dela hoje: nós do lado de fora,
o louco no hospício.
Dentre os passíveis de serem internados, não só os loucos, mas os
mendigos, os miseráveis, os desempregados, os velhos, os incorrigíveis. Esta
unidade, estranha para nós, é a base de nossa experiência da loucura; e é por
isso que é a experiência que a Idade Clássica teve da loucura que deve ser
interrogada, não a psiquiatria — mais recente que o próprio internamento. O
internamento criou todo um novo campo de experiências, um novo mundo ético e
novas formas de integração social. Se o fim do século XVIII conseguirá enxergar
um parentesco entre os magos, os alquimistas, os profanadores e os loucos, foi
a Idade Clássica que o possibilitou.
Os doentes venéreos, por exemplo. Antes do Renascimento, eram somente um
grupo dentre os vários doentes, e, assim, deles se exigia o mesmo: uma
confissão, e, após, seriam tratados. Com o advento do Ressurgimento, eis que os
venéreos tornam-se alvo da punição divina destinada aos libidinosos. Expulsos
do Hôtel Dieu, será no Hôpital Général que encontrarão abrigo.
Ou seja, a doença deixa de ter um caráter apocalíptico para tornar-se índice de
culpabilidade por um pecado. No caso dos venéreos, a terapêutica envolvia
sangrias, purgações, banhos, confissões e fricções com hidrargírio; terminava
com uma longa sangria, para que os humores mórbidos vazassem. Fica claro como
medicina e moral se complementavam, como uma trabalhava para a outra, e como
ambas se intercalavam nesta estranha terapêutica, que não teme, de forma
alguma, ser dolorosa e marcar a carne.
Ocupando o mesmo espaço por mais de cem anos, veremos esta terapêutica
ser aplicada também aos loucos: a Idade Clássica havia constituído os
parentescos entre desrazão e pecado, e o louco também deveria ser purgado. O
racionalismo, pois, sobrepunha cura e castigo: a repressão na terra era como
que o prelúdio da ira divina do pós-vida. Curar o corpo e purificar a alma; já
os gregos o faziam, mas somente o século XVII, somente a razão cristã dará a
esta união entre moral e medicina tome a forma da repressão, cujo ápice será,
sem dúvida, o tratamento moral de Pinel, de Esquirol e de Leuret.
Vejamos o caso da sodomia. Até o século XVIII o tratamento a se dispensar
ao louco é o ignis et incendium: o
sodomita, o mago e o herege tem a mesma sorte. A Idade Clássica terminará mesmo
com toda uma literatura erudita libertina, que havia passado incólume pela
Renascença. Se o platonismo dividia o amor, tomado como uma forma de saber, em
diversos tipos, a Idade Clássica dividi-lo-á em dois tipos, o amor de razão e o
de desrazão, este último sendo aquele do sodomita. Eis aqui a origem da ligação
entre loucura e sexo. Da mesma forma as prostitutas e la débauche são experimentadas, e o destino é o mesmo, as casa de
força.
Em uma época onde a ética sexual é submetida a moral familiar, a polícia
pode prender muitos desrazoáveis da genitália sem processos, a fim de
salvaguardar a moral pública. A moral
burguesa fará cair o amor cortês: o sagrado é a aliança[46],
não os sentimentos. É no interior do casamento que deve dar-se o amor; fora
dele, prolifera a loucura, a desrazão amorosa e sexual. A ordem familiar é
implacável na luta contra a desrazão sexual; e, aqui neste tempo, os conflitos
entre família e individuo são questões públicas. Somente com Breteuil (ministro),
1784, é que se principiará o movimento de torná-las questões privadas. Para o
classicismo todas as irregularidades do sexo têm como denominador comum a
loucura; sendo culpada por todas estas desrazões, esta culpabilidade servirá
como substrato para o desenvolvimento da psicopatologia.
Também os sacrílegos, blasfemadores e profanadores têm sua vaga reservada
nas casa de internamento, bem como suas punições descritas nos códices
penais-corporais, como era a prática da época; por exemplo, cortar fora as
línguas daqueles que mal-diziam o deus e o divino. Toda uma série de outros
comportamentos, até então encarados a partir de um viés religioso, perderão a
ligação com o divino; continuarão a ser condenados, mas de um ponto de vista
moral: suicidas, magos, alquimistas, bruxos. Cumpre que sejam condenados,
cumpre castigá-los, mas por suas infrações morais, por representarem um perigo
para a ordem social.
Todas estas práticas representavam, na sensibilidade clássica, ilusões. E
forçar à verdade é o primeiro sentido do internamento. Se compete ao estado
velar pelas crenças e pela verdade, é porque esta faz parte da ordem. Dentro da
maison d’internement é impossível
fugir da verdade.
“Estranha área
de aplicação, portanto, das medidas de internamento. Venéreos, débauches, dissipadores, homossexuais,
blasfemadores, alquimistas, libertinos: toda uma população de estranhas matizes
se encontra de um golpe, na segunda metade do século XVII, rejeitada, doutro
lado de uma linha de divisão, e reclusa nos asilos” (FOUCAULT, 1972, p. 116).
Os desvios religiosos e a medicina
Em La vida de los hombres infames,
Foucault nos descreve outro momento, senão chave, ao menos interessante na
história da formação da psiquiatria e do internamento: o caso dos desvios
religiosos. No século XVI o diabo ainda habitava o mundo e, vez ou outra,
assumia o controle dos incautos, tornando-se senhor do corpo e da alma de
alguns. Neste contexto, a bruxaria ocupa um papel fundamental na mentalidade e
na articulação desta com as relações de poder.
A medicina pode ser analisada a partir de seu funcionamento social: o
papel e posição do médico, a forma da sua prática e os objetos de seu campo de
ação (os objetos medicalizáveis). Não existe algo como uma medicina universal:
as distintas culturas definem formas próprias, o campo dos sofrimentos e dos
desvios, e lhes medicaliza sim ou não — isto partindo do pressuposto de que
medicalizam algo. A medicina do século XIX buscou estabelecer uma divisão
universal entre o normal e o patológico. A medicina atual deu-se conta da
relatividade do normal e o do patológico: variações dentro do saber médico, o
sistema de valores de uma sociedade, a forma de vida da população, sua relação
com a morte, as formas de trabalho, etc.
Assim é que a medicina do limiar entre o Renascimento e a Idade Clássica,
orientada por toda uma lógica própria de diagnósticos e terapêuticas — o regime
da crise[47] — tinha
como um de seus principais objetos de estudo a questão da bruxaria e dos
sacrilégios. Molitor (sec. XV), Erastus e Weyer (sec. XVI) defendiam que as
bruxas não tinham poderes reais, e que se deveria confiar em deus; contudo,
defendiam punições capitais para as acusadas de feitiçaria, não pelos poderes
que afirmam ter, mas pela aliança que fizeram com o diabo. Nem estes médicos de
então, nem Sprenger, Scribonius ou Bodino questionam a existência do demônio:
as polêmicas envolvem suas formas de ação.
Outros debates se desenrolavam então:
1. Acerca do diabo: este é um anjo, malgrado tudo, tendo, pois somente
ascendência sobre os espíritos, nunca sobre os corpos, submetidos a soberania
de deus; assim Erastus conclui que o diabo tem pouco poder sobre os corpos e as
coisas, embora seja muito poderoso em relação as almas.
2. Assim, o diabo tende a agir sobre os espíritos mais frágeis de vontade
e menos piedosos: as mulheres (que é inconstante, impaciente, melancólico e
malicioso: Meyer apud FOUCAULT, 1996, p. 14), os melancólicos (Crisóstomo: o
diabo submete a todos que domina por meio da irritação ou da tristeza) e os
insensatos (que, tendo o pensamento ofuscado pela ação dos humores, tem maior
possibilidade de serem corrompidos pelo diabo). O diabo, pois, sem poder
alterar a ordem do mundo, submetida a deus, consegue se aproveitar dos defeitos
que a ordem provoca nas almas.
3. O diabo atua por meio do engano, sobretudo; não podendo atuar nas
próprias coisas, atua na forma como as imagens se transmitem à alma: os sonhos
pertencem ao diabo, este agindo nas fronteiras entre o mundo e o homem.
4. Se o diabo pode intervir no corpo, ele o faz por toda uma intrincada
rede de ligações, de cumplicidades e coisas em comum; se a imaginação é a
faculdade localizada precisamente na fronteira entre o corpo e a alma,
juntamente com os sentidos, os nervos e os humores, é certo que o diabo tem
ascensão sobre eles. Assim, o diabo sabe operar e colocar em sintonia as
distintas faculdades do corpo e do espírito para ludibriar e fazer real suas
ilusões.
5. O maior logro de Satã é conseguir enganar mesmo os crentes, mesmo
aqueles que, no ato que denunciam as bruxas, afirmam tê-las vista no sabbat, são ainda servos do Belzebu, por
sua descrença e por trazer as maquinações do Caído para o seio da igreja
(Weyer). Outros diziam o contrário, inclusive acusando Weyer de bruxo:
Scrigonius afirma que o Satã sabia como seria ridicularizado se sua influência
se reduzisse a sonhos e fantasmas; assim, o máximo da ilusão é acreditar que os
poderes das bruxas são somente ilusão. Em último caso, Satã coloca aos homens
em um círculo: quem condena Satã reafirma seus poderes, e quem o nega faz o
mesmo.
O diabo permanece em uma ausência perpétua: age por meio de imagens
falsas que são fantasias, pois. O demoníaco está, assim, próximo e distante; os
médicos lhe reduzem a ação às coisas animadas, à alma, à imaginação, na
fronteira entre mundo e interior; estes médicos do séc. XVI, reduzindo assim a
ação do diabo ao corpo, fronteira entre mundo interior e exterior, abriam
caminho para a redução naturalista dos séculos posteriores. Situado aí, Satã se
converte no porteiro do acesso à verdade: próximo do erro, mesmo quando se
denuncia a ação do diabo, ainda não se sabe se ela, a verdade, já não está no
próprio ato que a denúncia. Enfim, estas discussões sobre o diabo podem ser
reduzidas aos debates entre verdade e erro, ser e não ser, aparência e verdade.
A partir destas discussões para-religiosas elaborou-se algo como uma
medicalização que buscava demonstrar a existência a partir de uma análise da
ação demoníaca sobre as almas e corpos, sem nenhuma explicação que chamaríamos
psicológica ou, mesmo, qualquer noção, ainda que embrionária, de uma divisão
médico de tipo normal-patológico: sua referência é ilusão e erro.
*
A medicina do século XVI não se
desenvolve a partir do estabelecimento do normal ou do patológico, mas do que
afeta ao corpo, à alma e à imaginação, em sua fronteira; não há enfermidade,
mas, antes, uma artimanha do diabo para submeter os outros a seu logro. Por
isso todos que se equivocam terminaram por ocupar o mesmo lugar de exclusão.
Se em relação a questão da bruxaria e da possessão, a medicina, em sua
abordagem clássica, tomava estes fenômenos como patologias que não haviam sido
reconhecidas como tais: histéricas, paranóicas, psicóticos alucinatórios, etc;
o que importa, contudo, é como foi possível que a bruxa e o possuído,
perfeitamente integrados mesmo em sua exclusão, como eles puderam ser
medicalizados?
O juiz, o cura, o rei, o médico e a população. Todos concatenados para
perseguir os possuídos e os feiticeiros, adeptos de Satanás. No século XVIII,
contudo, dominará a medicina dos humores[48],
onde estes excluídos se perderão, conquanto no século XIX reencontrarão seu
lugar sob o nome de histéricas.
No século XVI já o médico contava entre os que levavam adiante a luta
contra a possessão. Atritando com a igreja, os médicos acreditavam que, em
fato, o diabo conduzia as bruxas ao sabbat,
e atuava sobre os corpos, sobre os humores e as mentes, para ganhar-lhes a seu
culto. Assim é que J. Meyer defende que a enfermidade advêm da ação do diabo. A
Igreja era conta, no que os juízes lha apoiavam com reticências.
Já no século XVII ocorrem mudanças. Os casos de bruxaria que tiveram
destaque no período não são, como se pensa comumente, frutos da ação da Igreja
e da Inquisição no contexto da Contrarreforma. Os processos revelam que neles
sempre havia um conflito entre o parlamento e a igreja.
Em 1598 o tribunal de Angers condenou um jovem, Roulet, por haver se
transformado em lobo e comido várias crianças, o que o jovem concordava e
assumia a culpa; o tribunal de Paris apelou e o jovem foi considerado louco e
conduzido a um hospital e condenado a conhecer deus. Outro caso parecido
ocorreu em Bordeaux, poucos anos depois: um jovem afirmava haver comido várias
crianças sob o estado de lobo; o tribunal lhe condenou a passar o resto da vida
em um convento, por ter obviamente menos razão que uma criança de oito anos e
desconhecer a deus devido à pobreza.
Estas decisões opunham-se a jurisprudência e as recomendações de Bodino e
de Meyer; estes defendiam que os casos de licantropia deveriam ser tratados
como corrupção da imaginação, e que a ação do diabo resumia-se a corrompê-la e
colocar lobos reais no caminho das vitimas. Não era esse o interesse dos
tribunais: lhes importava pouco os fatos ocorridos ou a possessão demoníaca,
mas, sim, a imputabilidade do autor por irresponsabilidade — imbecilidade ou
demência —, seguindo, pois, uma a tradição romana. Esta situação se inverteu
rápido: a Igreja passou a ser mais critica em relação aos casos suspeitos de
bruxaria, estabelecendo, no Sínodo de Reims, inúmeras precauções a se tomar
antes de exorcizar os suspeitos; neste sentido, intervieram no caso de Marta
Brossier, 1583, proibindo que qualquer sacerdote a exorcizasse. Os parlamentos,
por seu turno, queriam ser severos na aplicação das leis.
Esta oposição entre o ceticismo eclesiástico e a obstinação dos tribunais
se agrava: no séc XVII a maior parte das condenações por bruxaria são contra
padres, o que era muito incomum até então.
Isto indica os poderes ambíguos que o sacerdote adquiria, no final do
Renascimento, na mentalidade popular. Se, como afirmava De Lancre, do tribunal
de Bordeaux, os mais sábios são mais perigosos, o sacerdote ocupava, pois, uma
dupla posição: sendo o mais sagrado, deveria estar o mais longe dos atos de
bruxaria. A burguesia tinha claro que o sacerdote não pode ser perdoado de
forma alguma dos casos de bruxaria: era o sacerdócio tendo de se submeter ao
bem da sociedade, quer dizer, à razão de estado; tendo este aval, os tribunais
buscaram purificar a igreja dos elementos bruxos, ao mesmo tempo que combatiam
as influências do sacerdote sobre o povo.
Foi dúbia a atitude da igreja. Sua fração espiritual (que combatia a
interferência religiosa em assuntos temporais) apoiava as ações para combater a
fração secular da igreja, justamente a maior vítima da depuração penal. A
fração temporal da Igreja era muito cética quanto os casos de bruxaria e de
possessão: muitos defendiam que não se tratava senão de casos de melancolia,
ligada, assim, a bílis negra.
“Enfim, foram
as autoridades eclesiásticas que
pediram as Faculdades de Medicina consultas e informes periciais (...) [já que]
as autoridades eclesiásticas da igreja manifestavam um a grande desconfiança
malgrado o zelo mostrado pelo clero regular e que, em numerosas circunstâncias,
os bispos apelaram aos médicos para evitar a ingerência conjunta dos tribunais
e das ordens religiosas” (FOUCAULT, 1996, p. 27)
Nesse conflito entre a Igreja
secular de um lado, e os tribunais e as ordens religiosas de outro, venceu a
Igreja com o apoio do poder real. Se no começo do século XVII ainda o poder
real mantinha alguns casos de bruxaria, estes foram diminuídas no correr dos
anos, ao ponto de, já na metade do século, 1670, o rei mandar intervir em condenações
de bruxos à fogueira pelo tribunal de Rouen, que havia se mantido fora desse
processo. Os juízes de Rouen defendem sua posição; a Igreja intervém e não
trata de religião: seus argumentos são civis e devem ser inscritos no contexto
da razão de estado.
Em 26 de abril de 1672, o conselho de estado manda soltar todos os
acusados de bruxaria na Normandia e ordena que tal seja a jurisdição a ser
seguida por todos os tribunais de França. De agora em diante, bruxos,
sortílegos, magos e afins tem um destino: o internamento no Hôpital Général.
Não importa tanto mais sua responsabilidade acerca dos crimes eventualmente
conhecidos. “A bruxaria é já considerada unicamente em relação com a ordem do
estado moderno: a eficácia da operação é negada, mas não a intenção que
implica, nem tampouco a desordem que suscita. O âmbito de sua realidade
transferiu-se a um mundo moral e social” (ibidem, p. 29-30).
A última fase deste processo envolve
as lutas religiosas em França. Com efeito, já em fins do século XVII, os protestantes
e os jansenitas, oprimidos pela monarquia católica, começam a pregar a partir
de um forte sentimento religioso profético, com milagres e êxtases religiosos.
A Igreja e o estado, para combatê-los, intervém nos tribunais: traça-se um
paralelo entre fanatismo e loucura; difunde-se que os ditos milagres são
naturais, não divinos. Enfim, as oposições religiosas conheceram o
internamento.
A igreja buscava a medicalização destes fenômenos religiosos dos
protestantes para mostrar que não eram milagrosos, mas frutos de mentes
insensatas. Brueys, em sua Histoire de Le fanatisme dans notre temps
diz que
"se não se
conhece ‘a máquina do corpo humano’, se podem confundir os fenômenos de
fanatismo com as ‘coisas sobrenaturais’... ‘bem é verdade que estes fenômenos
são geralmente apenas uma verdadeira enfermidade’” (apud FOUCAULT, 1996, p. 31).
Aqui enfermidade tem outro sentido aqui: é maldade, mentira e
superstição.
*
Nem ciência nem o direito dão coerência a esta população, a população dos
internatos de então. Somente a forma como são percebidos, isto é, enquanto
desrazoáveis. Se a Idade Média e o Renascimento pressentiam o louco como
perigo, a Idade Clássica o localizará. Aos poucos, o louco passará a ser medido
em relação à norma social; até então, particularmente no campo da arte, o louco
também era isolado, mas de maneira abstrata. Tornado concreto, chegara o
momento de alienar os alienado, de isolá-los.
Todo o campo de objetividade epistêmica que se insinuará mais e mais
sobre o louco somente será possível depois deste movimento que o isolou a
partir de uma oposição ética, de uma divisão entre razão e loucura; eis aqui a
base de nossa moderna experiência da loucura.
7. Medicina ou Psiquiatria?
Antes de Pinel, de Tuke e de Chiaruggi, tidos como os fundadores da
psiquiatria, já existia, pois, o internamento, conforme vimos. O louco, tornado
parte de uma população urbana muito mais ampla, já tinha seu lugar reservado
nos estabelecimentos de força. Vimos também que inúmeras problemáticas, que a
medicina de hoje, no mínimo, tomaria como ridículas, ocupavam um papel
importante nos debates científicos de então: o caráter da bruxaria, a posição
do Caído na ordem das coisas e sua influência nos insensatos, as profilaxias,
os rituais a empreender, etc.
Com as teses de Newton e a difusão do pensamento de Galileu, uma série de
correntes de pensamento viram-se subitamente alçadas a um primeiro plano na
Europa. A Iatroquímica, por exemplo, que defendia um diagnóstico e uma
terapêutica pautados no controle de substâncias. Identificava-se a origem das doenças ainda por meio das velhas
teorias dos humores, de origem galenico-hipocrática, quando não por outros
tipos de substâncias, como ácidos e bases. Do mesmo modo, a iatromecânica, da
qual trataremos mais a frente, tomava que as fibras, e não os humores, eram os
principais elementos do corpo e que a alteração de seu estado de tensão, como
seu afrouxamento conduziriam á aparição das doenças mentais[49].
Apesar disto, era ainda a teoria dos humores muito utilizada em medicina.
Formulada por Hipócrates, defendia uma tese segundo a qual haveria quatro
humores no corpo humano, correspondentes a sua parte líquida, sendo eles, o
sangue, a bile amarela, a bile negra e o flegma. A saúde ou a doença
dependeriam do correto equilíbrio entre os humores; por meio da noção de crise,
o médico deveria intervir no momento certo, no oligokairos, para restabelecer o equilíbrio, por meio de duchas,
purgativos, lavagens, sucções e sangrias — já tratamos de tudo isto.
As escolas vitalistas, especialmente a de Montpelier, que formou
inclusive Pinel, pipocavam e, neste sentido, não havia absolutamente algo como
uma medicina mental ou, mesmo, o conceito de doença mental. A medicina de então
atuava sobre dois outros campos: o das doenças vaporosas e das doenças
nervosas.
Para o contexto da Ilustração, o comportamento correto era aquele que se
adaptava às normas vigentes; além do que, havia a noção do déspota esclarecido,
aquele que capaz de formular leis protetoras do corpo social. As filosofias da
época, malgrado suas belas teorias, tinham uma inaplicação evidente. Naquele
momento mesmo o campo médico valia-se de analogias de cunho mecânico, sendo o
intento do médico conhecer as causas naturais da doença, à moda newtoniana. O
campo científico-filosófico cindia-se dentro de uma oposição de método: de um
lado, o homem racional buscava estabelecer o quadro hierárquico e natural,
sobremaneira influenciados pelas experiências de Newton; de outro, buscava-se
também explicar a ordem da natureza, salientando-se a sensibilidade como porta
para o mundo interno. Para ambos, tratava-se de ordenar os conhecimentos, de
forma hierárquica e distributiva — é o século de Lineu e de seu more botanico. Colocar as coisas em relação à era o procedimento básico e
que fez carreira na medicina, particularmente em relação ao campo das doenças
nervosas, tendo como resultado último a constituição da nosologia.
Neste período pré-psiquiátrico, duas medicinas se opõem: a medicina dos
vapores e a medicina dos nervos. A primeira era muito antiga e remetia a Galeno
enquanto que a segunda desenvolve-se na pegada da obra de Newton.
Desde Galeno, o grande médico do Lácio ao lado de Celsus, supunha-se que
fermentações uterinas levariam a histeria, e mesmo o nome histeria é útero em grego
(hysteron). Já na Idade Média
desenvolveu-se uma terapêutica pautada em inalações fétidas e fumigações
vaginais com odores agradáveis, que intentavam devolver ao útero seu valor
natural e dissipar o efeito de coisas em decomposição como sangue menstrual e
sêmen. Mesmo críticos como J. Fernel (1497-1558) acreditavam que os vapores
pútridos uterinos alteravam o funcionamento normal dos órgãos e que, uma vez,
no cérebro causariam loucura e furor. Em 1702, J. Purcell relacionou as doenças
vaporosas com questões passionais. Em 1756, P. Hunauld defendia que a doença
vaporosa era acompanha de uma série de caprichos e de comportamento estranhos[50].
Se o século das Luzes acreditava que tudo poderia ser explicado pela
razão, várias crenças inexplicadas ainda viviam, Por exemplo, de que a mulher é
um homem incompleto ou que ela é destinada a maternidade, postulados de Galeno[51].
Na Inglaterra e na Escócia as damas da alta estirpe aos poucos buscaram médicos
que, paulatinamente, passaram a se preocupar com elas. W. Smillie e W. Hunter
desenvolveram técnicas ginecológicas, por exemplo, aperfeiçoando o fórceps. Não
imperava o amor nos matrimônios, em beneficio da mariage de raison[52]
e muitas técnicas Era por sua fertilidade que se avaliava a mulher, reduzida a
vida privada. As mulheres ocupavam um papel especial e a medicina tinha sob
elas um olhar agudo, particularmente a medicina dos vapores.
“‘Vocês são
apenas o seu sexo’ dizia-se a elas [as mulheres]. E este sexo, acrescentam os
médicos, é frágil, quase sempre doente e sempre indutor da doença. E este
movimento muito antigo se acelerou no século XVIII, chegando a patologização da
mulher: o corpo da mulher torna-se objeto médico por excelência” (FOUCAULT,
2007c, p. 234)
Toda uma problemática greco-latina esquecida acerca da reprodução do
aleitamento, dos casamentos, da reprodução e da contracepção surge ou ressurge
no século XVIII. A tradição médica reforçava questões como a de que era vetado
às lactantes terem novos filhos, fazendo proliferar as amas de leite, o que,
contudo conduzia a uma alta taxa de mortalidade infantil, pois as mulheres
tinham filhos atrás de filhos. Há toda uma campanha do mundo médico visando
encorajar o processo de ablactação que culmina na criação da mamadeira em 1786[53].
A problemática dos vapores, e amiúde
o das doenças nervosas, não pode, de forma alguma ser desligada deste processo,
pois as afecções desta estirpe atingiriam sobremaneira as damas — eram
moléstias uterinas, sobretudo. Seus sintomas — como coréias, irritabilidade,
mania, sonolência—, no entanto, poderiam ir além do útero. O movimento dos
vapores no corpo, com a suavidade e volatilidade que lhes é característica,
tornava todos os órgãos como potencialmente infectáveis Se atacassem o cérebro,
por exemplo, poderiam gerar furor; se
restritos ao útero, não era raro que gerassem furor genital, com as condutas sexuais antissociais que produzia.
Há de se notar também que, este processo de colocação em cena, por meios
médicos, de questões referentes não somente aos comportamentos sexuais stricto senso, mas, relativas a questões
demográficas, de natalidade, sem dúvida faz parte do movimento de formação da
biopolítica. Mas tarde integrados, ao menos em parte à psiquiatria, estas
questões tornar-se-ão centrais na integração entre medicina mental,
anátomopolítica e biopolítica, ou, para ser mais claro, atuarão como
fios-condutores de uma ampla medicalização da vida, com a disciplinarização
necessária e a forja de dispositivos de controle.
No século das Luzes “a sensibilidade feminina, seu poder cativante e
sedutor é perigosa para o homem, mas também o é quando aparecem vapores, pois
as expõem a burla social ou submete-as aos caprichos mais estranhos” (SAURI,
2005, p. 77).
Doutro lado desta medicina está a medicina ilustrada. Th. Willis (1621-73)
tem especial importância, pois aplicou com extremo rigor o modelo
galiléico-newtoniano à medicina. É tido como o inventor do “sistema nervoso”
pois postulou que a medula, o cérebro e os nervos tinham relações
sistêmico-funcionais. O funcionamento deste sistema dava-se graças à ação dos espiritus animales — formados pelo
sangue arterial destilado no cérebro — sendo móveis e atuantes nas sensações e
movimentos. A alma sensível acoplava-se à alma racional, transcendente e
material. Embora estas teorias fossem antigas, Wilis buscava uma explicação
iatrogênica. Malgrado similares aos vapores, os espíritos animais circulariam
pelo corpo através dos nervos e, tal qual os vapores, podiam gerar insanidade.
Willis explicava a afecção
espasmódica que é a histeria como tendo origem em um processo onde os espíritos
animais, sobremaneira concentrados, levariam à disrupção da ordem natural e
social, redundando na sobreposição da alma sensitiva à alma racional — a parte
da alam encarregada dos juízos.
Embora galênica em seu cerne, a
teoria de Willis trazia várias novidades. Concebia-se que havia um princípio
unitário regulador do organismo (que a doença alterava): distinguia entre forma
anatômica e função fisiológica e que uma mesma função pode ser realizada por
distintos órgãos. Muitas destas noções já haviam sido postuladas por Harvey no
estudo da circulação. Além disto, como para Willis a origem de inúmeras
morbidades era nervosa, cujo fundo comum era alterações motoras e sensitivas, a
histeria tornava-se uma das patologias, juntamente com a apoplexia, mania,
delírios, etc.
É neste marco, onde se opõe vapores
e nervos, que se consideravam a maior parte das afecções pouco tempo mais tarde
incluídas no rol das doenças mentais. Não tinham, pois, existência distinta das
demais doenças em algo como uma medicina mental: sua racionalidade era a mesma
das demais doenças e, somente depois, com os fundadores, é que esta medicina
mental se formulará
Cullen inventa a nosologia e a neurose
Nesta pré-história da psiquiatria
há, ainda, outro episódio que merece menção: a invenção da nosologia e da
neurose.
Em 1777 o médico escocês William
Cullen publicou First Lines in the Practice of Physics, onde propunha o
conceito de neurose como agrupador de uma série de morbidades cujo fundo
comum era serem prenaturais, resultado de alterações no sistema nervoso
particularmente na motricidade e na sensibilidade, além da pirexia não
fazer parte dos sintomas primários. A intenção fundamental de Cullen era
circunscrever o cada vez maior campo das enfermidades nervosas, com sua
riqueza sintomatológica e pouca precisão. Pouco tempo antes, Cullen havia
publicado um livro chamado Nosologia, onde propugnava a utilização dos
procedimentos dos naturalistas na ordenação das enfermidades nervosas.
Amplamente utilizada nos países latinos, sobretudo graças a Pinel e Chiaruggi,
o termo nosologia caiu no ostracismo na Grã-Bretanha[54].
Se em fins do século XVII a medicina
já havia catalogado inúmeras espécies de doenças, reconhecendo em muitas
seu caráter local. Os trabalhos de Morgagni mostraram a existência de
patologias gerais, sem, contudo, dar conta daquelas que em sendo gerais
possuíam sintomas inagrupáveis e sem substrato orgânico apontável. Cullen
buscou resolver estas questões: a neurose não dependeria de nenhuma alteração
local, mas do sistema nervoso central, à sensibilidade e à motricidade.
Muito embora a revolução inglesa tenha aplacado as disputas religiosas,
nem por isso estas cessaram. Ainda no século XVII Shaftsbury condenava os cultos
chamativos e o comportamento entusiasmático
dos quakers. O comportamento entusiasmado era condenado, pois, naquele período
de Ilustração, o homem ilustrado era aquele que aderia a ordem social dada: o
comportamento entusiasta levava a fenômenos inusitados e, em último caso,
reviam as convenções sociais. O entusiasmo levava ao desenvolvimento de uma
imaginação passional e à excitação, que, segundo Malebranche, citado por Sauri,
era contagiosa e ameaçava todo o grupo. O entusiasmo e seus efeitos constituíam
o campo do preternatural, i. é, daquilo que está por si fora do habitat; com o
termo preternatural, o médico Ilustrado designava em suma o insólito que,
embora sua especificidade, não extravasavam os limites da natureza, o que
comportava também as enfermidades dos nervos. Rompendo os limites rígidos
oitocentistas entre público e privado, as crises histéricas ou as entusiásticas
desconcertavam. A sua ininteligibilidade fez com que Cullen classificasse as
doenças mentais nestes termos.
O empirismo de Hume e de Locke, ao salientar a origem sensível das
idéias, fez alimentar a busca pela origem sensível das loucuras e da relação
destas com o cérebro. No século XVIII as experiências de Haller, que estimulava
os músculos com eletricidade ou amônia, levaram-no a formular a tese segundo a
qual o sistema nervoso tinha uma propriedade especifica que era a
sensibilidade, a qual compartilhava com os órgãos que se relacionavam com ele.
Disto Fouquet concluía que todos os órgãos, à exceção das mucosas, que são imóveis
(por terem como base os nervos) ou são sensíveis ou podem se mover. Cullen se
apropriou tanto das idéias de Haller quando das de Fouquet, ligando a noção de
sensibilidade com a de irritabilidade, ambos relacionando-se com os
sentimentos.
Os trabalhos de Galileu e Newton fundaram um novo paradigma para tratar a
questão do movimento. Desde Aristóteles, o movimento era uma categoria que
dizia respeito a uma mudança substancial. Rompendo com este paradigma, o
pensamento contemporâneo considerava o movimento no interior de um dualismo
móvel-motor, colocando em pauta, pois, a questão da causa eficiente. Na
medicina isto se refletiu na iatromecânica, a qual já explicamos brevemente, e
nos estudos acerca das fibras musculares que, contraídas, levam ao movimento, que
também fizemos referência. Embora a influência destas idéias sobre Cullen, elas
já haviam caído em descrédito. Contudo, Cullen entendia as convulsões uterinas,
histéricas, hipocondríacas e intestinais como resultados de alterações nervosas
transtornantes da mobilidade corporal, seguindo, desde modo, as idéias de F.
Hoffmann (1680-1740). Este havia abandonado a teoria dos espíritos animais em
benefício da noção de um principio movens,
o éter, que não só garantia o tônus das fibras, como dava coerência e resistência
ao corpo humano. Hoffmann postulava a existência de um fluido nervoso, cuja
circulação garantia a contração e dilatação da duramater[55].
A atonia[56] e
hipertonia[57] das fibras
levavam a estados patológicos, pois perturbavam a circulação do fluido nervoso.
Estes postulados permitiram que Cullen empreendesse o desenho nosológico
mais preciso das enfermidades nervosas. Para elaborar uma nosologia, Cullen
descrevia como primeiro passo listar as notas tomadas, passando-se, pois, a
operar sobre abstrações, não mais sobre concretudes, que serão organizadas
segundo um código especifico estabelecido pelo nosólogo, segundo seus
referenciais (sintomas, momento da aparição, cursus morbis, etc.). Operando em
um espaço ideal, o nosólogo do Iluminismo desconsiderava as interações com a
realidade, deixando, pois, as causas e o sentido da enfermidade em segundo
plano. Esta agrupação é que permite que se adote o more botanico. Ainda que insuficiente, estes procedimentos
nosológicos serviram para dar alguma ordem ao confuso campo patológico de
então. Em relação à neurose, Cullen registrou o que ela era concluindo o que
deveria ser: a partir de um modelo abstrato, especificou as características da
neurose, esquecendo, pois, as manifestações clinicas concretas da morbidez.
O modelo do more botânico,
proposto por Lineu, prescrevia as classificações segundo semelhanças
sintomatológicas. Aplicado na medicina, isto levou a um agrupamento
sintomatológico, marcadamente empírico, das doenças, em agrupamentos abstratos
cada vez mais amplos: espécies, gêneros, ordens e classes. Dando primazia ao
Olhar, e buscando classificar o real em função deste, a nosologia intentava
estabelecer um espaço abstrato onde o que é desse condições de se estabelecer o
vir-a-ser da doença. Atuando no espaço ideal do quadro, onde características
eram distribuídas idealmente, confundiam os classificadores seus princípios
ordenadores com a própria realidade.
Se contribuíram efetivamente com a ordenação das afecções — e com a
formação da psiquiatria, pois — por outro lado, os nosólogos constituíram um
conhecimento abstrato, que deixava-se de se referir ao ordenado, referindo-se,
antes à própria classificação — o que Pinel e mesmo Lineu buscaram combater
preenchendo os espaços em branco do quadro nosológico com agrupamentos
heurísticos advindos de similaridades superficiais.
Vejamos a nosologia culleriana: ele considerava que neuroses, tétanos,
epilepsias e palpítações pertenciam a uma mesma agrupação, a dos espamos, sua
semelhança sintomática. As doenças nervosas com alterações motoras e sensitivas
foram agrupadas por ele em outra classe, chamada de neurose
Criando novas categorias, a nosologia necessitou de novos vocábulos para
dar conta delas. Assim, com o termo neurose,
Cullen pretendia dar realidade semântica e classificatória às enfermidades
nervosas. Bem se sabe que, no século das Luzes, o nome adquiria importância
nodal: ele garantia o bom entendimento e o exato ordenamento dos nomes era o
exato ordenamento das coisas — não fora Adão que dera o Nome sob inspiração
direta do Altíssimo? Dar o nome correto e classificar corretamente era
necessário para dar a cada fenômeno seu lugar correto e exato na ordem das
coisas e no ficheiro do cientista.
Para Cullen tratava-se, antes, não de uma neurose, mas, pois, de
neuroses, uma classe de doenças que cobriria todo um campo mórbido heterogêneo:
“afecções gerais do sistema nervoso, não acompanhadas de febre e atingindo de
forma privilegiada a sensibilidade e o movimento” (PEREIRA, 2005, p. 130). As
neuroses englobavam, assim, os comas (como a apoplexia), as adinamias (enfraquecimento dos
movimentos nas funções vitais), as afecções espamódicas sem febre (tétano,
epilepsia, asma, histeria) e as vesânias (mania, i. é, loucura; melancolia).
Embora Cullen tenha influenciado muitos, particularmente Charcot e Ballet[58],
aos poucos este sentido que Cullen dava à neurose perdeu força e já Pinel as
definia como doenças nervosas sem base orgânica O sentido contemporâneo,
contudo, somente advirá no final do século seguinte e começo do XX com Janet,
Breuer e Freud, sobretudo: morbidez mental que mantém o eu intacto.
7.1. Rumo à biopolítica: as três medicinas sociais da Ilustração e a
tecnologia do hospital
No final do século XVIII, nas articulações que armavam o século da burguesia,
surgiam novos projetos, instituições e linhas de demarcação que somente hoje,
com o distanciamento necessário, é possível ver demarcando-se no passado.
Dentre estes novos caminhos que se abriam, cumpre que ressaltemos, neste
curto ensaio, a emergência do que se convencionou chamar de medicina social,
que ocupa um papel duplo, sem dúvida, pois se pauta em uma nova posição do
hospital, que se tornava médico em fins do século XVIII — portanto, em uma
anatomopolítica—, e, ao mesmo tempo, com as questões que coloca em relação às
populações e ao seu modo de vida, é um dos carros-chefe da biopolítica. De
acordo com Foucault, os séculos XVIII e XIX desenvolveram três versões da
medicina social: a medicina de estado, a medicina urbana e a medicina do
trabalho. Vejamos cada uma delas:
A medicina de estado desenvolveu-se desenvolvida no que viria a ser a
Alemanha, na primeira metade do século XVIII juntamente ao desenvolvimento da
noção de Staadtswissenschaft, ciência do estado — conhecimento dos recursos e da população
de um espaço e do funcionamento do aparelho político, bem como dos
procedimentos por meio dos quais o estado garante seu funcionamento. Lembremos
a situação destes territórios no século XVIII, que, muito fragmentados em
pequenos reinos e cidades-livres, levava ao imperativo de que os pequenos
estados buscassem conhecer-se, saber como funcionavam. Tradicionalistas e
estagnados economicamente, à burguesia germânica restou aguardar até o século
XIX para fundar seu estado-nação, tendo que apoiar-se, pois, em um
bem-organizada e forte burocracia estatal . Por isso o primeiro estado moderno
europeu é a Prússia, malgrado ser uma das regiões mais pobres, menos
desenvolvidas e mais conflituosas da Europa.
Se desde o século XVI há uma preocupação com a saúde das populações
européias, trata-se de uma preocupação mercantilista: aumentar a produção da
população para fazer subir o fluxo da moeda e, assim, com o influxo de
riquezas, aumentar a potência do estado; i. é, fazer crescer a população para
fazer crescer a riqueza do estado. A Alemanha tem outro desenvolvimento: ali se
desenvolveu uma Medizinichepolizei, “política médica”, termo
cunhado em 1764 por W. T. Ray. Tratava-se de contabilizar os fenômenos mórbidos
da população, o que foi seguido pela normalização da prática e dos conteúdos
ensinados nas escolas de medicina; organizou-se toda uma administração da
prática e do saber médico, bem como das relações entre médicos e população,
além de tornarem-se os próprios médicos administradores da saúde.
Surgida antes mesmo da medicina cientifica, o objetivo da Medizinichepolizei
não é o corpo enquanto força de trabalho, mas enquanto força de estado, pois a
população é corpo. Portanto, uma medicina que já nasce estatizada e que servirá
de modelo para o desenvolvimento de toda medicina social nos séculos XVII-XIX.
A segunda grande medicina social que se estabelece na Europa é a urbana,
surgida na França, século XVIII. Até este século, uma cidade francesa era um
emaranhado de territórios governados por poderes civis, eclesiásticos e
monárquicos distintos. Em fins do século, urgia que a cidade se tornasse
unitária: sendo centro comercial e produtivo, a cidade não poderia perpetuar-se
fragmentada por inúmeras jurisdições. A emergência do mundo urbano também
simplificava as lutas políticas, antes dispersas entre disputas entre
corporações, ofícios, etc., e tipicamente campesinas; agora, mais e mais
caminhavam para se tornar lutas entre ricos e pobres e, com isto, a necessidade
de controlar as populações urbanas.
Juntamente ao crescimento da cidade, emerge um pânico político-sanitário:
medo do crescimento demográfico, das epidemias, dos esgotos, dos cemitérios,
etc. Existiam, então, dois grandes esquemas de organização médica das cidades:
o da lepra[59] (esquema
religioso de purificação: segregação do doente do espaço urbano em espaços fora
da cidade, como leprosários e manicômios) e o da peste[60]
(esquema militar de revista: individualização dos habitantes, vigilância
inspeção contínua com registro dos fatos). O modelo da peste, modelo da
quarentena, servirá de base ao desenvolvimento da medicina urbana e da higiene
pública.
Três objetivos desta medicina das cidades: 1. “analisar os lugares de
acúmulo e amontoamento de tudo que, no espaço urbano, pode provocar doenças,
lugares de formação e difusão de fenômenos epidêmicos ou endêmicos” (FOUCAULT,
2007c, p. 89); reestruturam-se os cemitérios e os matadouros, afastando-os da
cidade rumo às periferias. 2. Controle de circulação das coisas, sobretudo água
e o ar: no século XVIII tanto o ar quanto a água eram considerados elementos
patógenos graças à noção de miasma, o ar pútrido que cercaria os doentes e os
mortos; o ar deve circular, donde uma série de prescrições de reordenação do
espaço urbano; a água era vista como dissipadora do miasma: ela o levaria para
afora do espaço urbano, cumprindo que houvesse canais. 3. Por fim, o espaço
urbano deve ser organizado de modo a garantir a distribuição dos bens
necessários á vida comum: fontes de água, esgoto, etc.
A medicalização do espaço urbano contribui apara que a medicina passasse
a integrar o discurso cientifico ainda no mesmo século XVIII. Enquanto medicina
das condições de existência, do meio, passou-se progressivamente para uma
análise dos organismos que compõe o meio, donde se desenvolverá a noção de
salubridade — base da higiene pública e da medicina sanitária.
Por fim, a medicina social inglesa, medicina do trabalho, não pode ser
entendidade se não for situada no contexto que a nutre: o da revolução
industrial e do inchaço urbano. Até o segundo terço do século XIX, os pobres
não eram enxergados como risco sanitário na medida em que as mínimas tarefas de
limpeza e administração sanitária do espaço urbano eram feitas por eles:
recolher dejetos, transportar água, etc.
Contudo, o crescimento populacional e as perspectivas sediciosas que a
Revolução Francesa abrem para os pobres fazem mudar este cenário; além do que,
uma grande epidemia de cólera tem lugar em Paris em 1832, alterando o espaço
urbano em bairros ricos e pobres, dando ensejo para o que será a grande reforma
urbana de Hoffman na década de 1870.
A partir da lei dos pobres, a medicina social inglesa tomará corpo com o
desenvolvimento de uma assistência controlada que intentava agir tanto sobre a
saúde e a pobreza dos pobres, quanto proteger os ricos de fenômenos epidêmicos.
Este sistema será completado pelos de health service (vacinação
obrigatória, registro de epidemias atuais ou possíveis, obrigatoriedade em
declarar-se doente quando se estiver, etc.), que são administrados pelos health
officers — 1875. Se a lei dos pobres dirigia-se somente a estes, esta social
medicine aplica-se sobre toda a população inglesa. Esta medicalização
suscitou uma série de resistências urbanas, muitas das quais assumiram formas
religiosas que se mantém hodiernas.
A social medicine objetivava controlar o corpo das classes baixas
para torná-las mais aptas ao trabalho e ao mesmo tempo reduzir-lhes a vontade
sediciosa. Este sistema inglês ligava assistência médica aos pobres, controle
da saúde da força de trabalho e esquadrinhamento médico da sociedade, e fazia a
junção entre uma medicina administrativa, uma medicina assistencial e uma
medicina privada. Justamente pela sua riqueza operacional e sistemática, a
medicina inglesa foi à única a triunfar dentre estas três medicinas sociais.
O hospital
No mesmo turbilhão no qual estas três medicinas se encontram, a medicina
terminaria por formular a sua principal tecnologia política: o hospital,
entendido como instrumento e suporte da terapia.
O hospital que funciona na Europa desde a Idade Média não era uma
instituição médica e de prática médica — não era uma instituição hospitalar, no
sentido que damos hoje. Já vimos que até o século XVIII, o hospital é uma
instituição de assistência aos pobres e não aos doentes, mas é também uma
instituição de exclusão; é uma instituição de caridade destinada a garantir a
salvação da alma tanto do pobre quanto do pessoal que nele trabalha. A prática
médica, por seu turno, não tinha na instituição hospitalar seu lugar de
formação em si e, tampouco, a prática médica supunha a intervenção contínua,
própria a prática hospitalar; a intervenção médica dava-s em torno da “crise”:
momento em que saúde e doença se enfrentam no doente. O médico deveria observar
os sinais, elaborar o prognóstico, buscar ajudar a saúde na luta contra a
doença, ou seja, tratava-se de uma relação absolutamente individual entre
doente e médico. Em suma, as “séries hospital e medicina permaneceram,
portanto, independentes, até o final do século XVIII” ((FOUCAULT, 2007c, p.
103).
Ao longo do século XVIII inúmeros inquéritos sobre o hospital se
desenvolvem, com objetivos distintos, mas dentre os quais um se destaca:
estabelecer um programa de reforma e reconstrução dos hospitais, pois se
considerava que nenhuma teoria esgotava o tema e que somente um exame empírico
daria conta da questão — é o hospital deixando de ser simples fato
arquitetônico e se tornando fato hospitalar. Não se tratava da descrição de um
monumento, muito ao contrário, interroga-se sobre o número de doentes, a
relação doentes-leitos, a área do hospital, a estrutura das salas, as taxas de
cura e de mortalidade, as relações entre fenômenos patológicos e organização
espacial, o percurso dos materiais médico-hospitalares, a taxa de sucesso das
operações, etc.
Este processo duplo de medicalização do hospital e de hospitalização da
medicina deu-se, primeiramente, com a anulação dos efeitos nocivos,
patológicos, que o hospital acarretava. O modelo de partida da reorganização
hospitalar são os hospitais marítimos; por meio deles, fazia-se tráfico de
mercadoria entre a metrópole e a colônias, o que suscitou o protesto de
autoridades alfandegárias, terminando por gerar um regulamento de controle
desses hospitais. Os hospitais marítimos e militares tornam-se focos de reforma
porque a invenção do fuzil (final do século XVII) encarecera o custo de
formação de um soldado, de modo que eles agora não eram tão facilmente obtidos
ou dispensáveis; devia-se evitar a deserção dos soldados, devia-se diminuir sua
mortalidade por doenças no exército: com alto custo para sua formação, que
morressem na guerra, ao menos.
A reorganização dos hospitais
marítimos e militares foi feita a partir das tecnologias políticas
disciplinares. Se os mecanismos disciplinares são antigos no Ocidente
(mosteiros, empresas escravagistas, empresas coloniais, legião romana, etc.[61]),
os séculos XVII e XVIII os aperfeiçoaram enquanto mecanismos de gestão de
multiplicidades de homens visando majorar o efeito de seu trabalho. Uma série
de coisas emerge:
1. O exército era, até o século XVIII, um amontoado de homens que a
invenção do fuzil tratou de organizar espacialmente visando obter o máximo de
efeito nos soldado; do mesmo modo nas escolas os alunos amontoavam-se e eram
atendidos individualmente, pois o atendimento coletivo pressupõe distribuição
espacial, e a “disciplina é, antes de tudo, análise do espaço. É a
individualização pelo espaço, a inserção dos corpos em um espaço
individualizado, classificatório, combinatório” ((FOUCAULT, 2007c, p. 106).
2. o controle disciplinar é sobre o desenvolvimento da ação, não sobre
seus resultados; na oficina aparece a figura do contra-mestre, destinado a
observar como trabalho é feito, como pode ser melhorado, bem como o resultado
final; no exército surge o sub-oficial, destinado a dirigir os exercícios, as
manobras e sua decomposição.
3. a disciplina implica uma vigilância continua dos individuo; no
exército a hierarquia somada as revistas, paradas e inspeções destinam-se a
tal.
4. a disciplina põe em prática um registro contínuo das ações individuais
e uma transmissão vertical desses registros de modo que nada escape do saber e
o poder possa agir sobre o detalhe da ação individual; “é o poder de
individualização que tem o exame como instrumento fundamental. O exame é a
vigilância permanente, classificatória, que permite distribuir os individuo,
julgá-los, medi-los, localizá-los e, por conseguinte, utilizá-los ao máximo”
((FOUCAULT, 2007c, p. 107).
O hospital se medicaliza porque adota mecanismos disciplinares que serão
centralizados no médico; a medicina passava por mudanças importantes nesta
mesma época. O grande modelo de inteligibilidade da doença no século XVIII é a
botânica de Lineu com seu método do more
botanico: a doença deve ser entendida como um fenômeno natural, como uma
espécie com características observáveis e desenvolvimento; o individuo adoece
quando exposto a determinadas ações do meio; as ações da medicina devem se
dirigir mais ao meio e menos à doença: trata-se de uma medicina do inquérito em
substituição a uma medicina da crise. Disciplinarização do hospital e medicina
do meio marcam a emergência do hospital como instrumento terapêutico.
Este hospital-médico tem características próprias muito bem marcadas.
Pensado com instrumento terapêutico, o local de sua construção atende deve ser
pensado nestes termos. Se localizado na cidade deve ocupar um espaço tal que a
difusão dos miasmas, da água poluída, etc., não contamine o entorno. Do mesmo
modo, organização do espaço interno do hospital é concebida de forma a que a
própria arquitetura, ou antes, a própria disposição dos corpos no interior do
hospital seja, ela mesma, meio de cura: o leito deve ser individualizado de
acordo com o doente, a doença e seu grau de evolução.
Ocorrem mudanças no sistema de poder no interior do hospital, pois, até o
século XVIII, o médico estava subordinado ao pessoal religioso — que
administrava o hospital e cuidava dos doentes —, sendo sua atuação secundária
em relação aqueles. O hospital-médico, o hospital que deve curar, torna o
médico responsável pela organização hospitalar e pela administração econômica.
O médico torna-se presente no hospital, pois o ritmo de visitas passa a
aumentar a partir do século XVIII, de modo que em 1770, deve um médico residir
em cada hospital: é o surgimento do grande médico como médico de hospital, em
substituição ao médico privado, até então o grande médico; é o surgimento da
medicina dos residentes e do hospital com continuidade do corpo do médico.
No cerne deste processo de disciplinarização do espaço hospitalar,
organiza-se um sistema de registro permanente no hospital: identificação dos
doentes, registro de entradas e saídas, diagnóstico dos doentes que entram e
resultados quando saem, registro de retiradas dos medicamentos na farmácia. O
hospital torna-se local de registro, acúmulo e formação de saber e se formulam
exigências de que o corpo médico confronte seus resultados com suas teorias.
Assim, entre 1789-90 o hospital torna-se obrigatório para a formação de um médico,
sobretudo na França.
Enfim, o individuo passa a ser o alvo da intervenção médica, devendo ser
inscrito em um processo que vai do diagnóstico, passando pela terapêutica e
cujo ápice, cujo resultado deve ser a cura, o restabelecimento da saúde do
enfermo.
“O individuo e a população são dados
simultaneamente como objetos de saber e alvos de intervenção da medicina, graça
a tecnologia hospitalar. A redistribuição dessas duas medicinas será um
fenômeno próprio do século XIX. A medicina que se forma no século XVIII é tanto
uma medicina do individuo quanto da população” ((FOUCAULT, 2007c, p. 111)
7.2. Pinel, francês
Apontamos
como a noção de doença mental é recente; na Idade Clássica, a loucura era mais
uma dentre as doenças, integrada na racionalidade da medicina geral da época.
São os psiquiatras de fins do século XVIII que inventarão este conceito. O
regime de internamento dos loucos pautava-se em uma exclusão de cunho moral e
social, nunca médico, e que se fazia acompanhar de uma demonização da loucura. O
regime de internamento era brutal: os lugares eram insalubres e as condições
precárias: o louco era um monstro, uma aberração incurável ligada ao que há de
mais pecaminoso na terra, somente lhe restando esperar a expiação da morte.
Pinel teria descido as escadas da
masmorra do Hôpital de Bicêtre e libertado os loucos. Se este ato
ocorreu ou não, pouco nos importa[62]:
Pinel é considerado um dos fundadores da psiquiatria, ao lado de Tuke,
Chiaruggi, Wagnitz e Riel. Em fato trata-se de um abuso: o nome psiquiatria
é de origem alemã e, ao longo dos séculos XIX, três psiquiatrias com
procedimentos, conceitos e operacionalidades distintas disputarão este campo
novo: a francesa, a anglo-saxã e a germânica. Por exemplo, os franceses diziam médécin mentale, conquanto os germânicos
psychiatrie.
Ao
soltar os loucos de seus grilhões Pinel tratou de forjar outros: estava a
aberta a era da medicalização do comportamento. Nem Pinel nem nenhum destes psiquiatras
rompeu com o internamento como ele se dava, mas fizeram com que o internamento
girasse em torno do louco. No asilo-modelo de York, criado sob os auspícios dos
quakers ingleses, Tuke montou um aparato de quase-família, visando impor ao
louco uma vida moral que infantiliza e culpabiliza o louco, com castigos, privações
e humilhações de toda ordem. Se Pinel considerava que "os alienados, longe
de serem culpados a quem se deve punir, são doentes cujo doloroso estado merece
toda a consideração devida à humanidade que sofre e para quem se deve buscar
pelos meios mais simples restabelecer a razão desviada” (apud PEREIRA, p. 114),
em Bicêtre impôs uma lei de ferro.
O
que há de novo em Pinel é a tentativa de estudar sistemática e metodicamente a
loucura. Influenciado pela botânica e zoologia, o método de Pinel calcava-se na
observação dos pacientes, seguida pela classificação dos sintomas. Pinel
considerava que a alienação tinha um substrato essencialmente mental, embora
mantivesse relações dinâmicas com o organismo do alienado, quer dizer, ele
postula o caráter subjetivo da alienação e sabe distinguir o paciente de seus
sintomas, além de conceber uma terapêutica para a loucura e de pensar o asilo
enquanto instituição voltada para a cura.
Sob o pomposo nome de terapêutica moral, Pinel, como de resto
toda a psiquiatria emergente, vai se apropriar das técnicas médicas e
disciplinares já utilizadas — fundadas em uma fisiologia própria da Idade
Clássica — para colocá-las em funcionamento em um regime estritamente
disciplinar: duchas, cadeiras giratórias (para fazer movimentar os espíritos
animais), gaiolas, etc., que tinham uma conotação médica passam a ser
utilizadas como elemento punitivos em um regime moral dentro de um espaço de
exclusão. Não medicalização do asilo, mas utilização de técnicas médicas já
desatualizadas em um regime moral.
Lembremos que foi a revolução
francesa que fez mudar este quadro. Ora, mera coincidência, ou será que a
revolução que ergue a burguesia ao topo do planeta, já não havia começado, em
sussurros, a lentamente modificar as formas de a apropriação do corpo? Somente
outra pesquisa nos poderá responder.
8. Conclusões
Ao longo do texto, vimos,
primeiramente, algumas questões de métodos, notadamente, os problemas envoltos
na genealogia. Vimos a relação entre Foucault e os epistemológos franceses,
sobretudo Canguilhem, e como Foucault herda deles certas concepções
epistemológicas. Expusemos os métodos arqueológico e genealógico do filósofo
francês, mostrando os débitos deste em relação a Nietzsche, bem como defendemos
que a genealogia está ancorada em uma ontologia política do saber, estofo de
sua epistemologia política
Vimos,
depois, como Foucault ensaia uma genealogia da psiquiatria, em diversos textos,
envolvendo a determinação dos sujeitos criados, os loucos e os médicos, as
relações entre o saber psiquiátrico e poder político, na figura do médico que
comanda esta instituição de controle que é o hospital. Vimos também como o
internamento precede a medicalização da loucura, e como, juntamente com o
louco, mendigos, bruxas e sodomitas, dentre outros, foram também capturados na
máquina asilar.
Ao mesmo tempo, passamos em revista,
ainda que brevemente, a história da psiquiatria, expondo como os psiquiatras
fazem uma história tradicional de sua disciplina, que Foucault e Canguilhem, ao
que tudo indica, reprovariam. Introduzimos alguns elementos da psiquiatria
contemporânea, nos esforçando para mostrar como os psiquiatras operam, se não
atualmente, ao menos no último período.
E o que concluir? Devemos jogar fora
a psiquiatria e buscar outras alternativas para trabalhar com os loucos? O
diagnóstico que Foucault e a tradição da antipsiquiatria faz da medicina mental
é, no mínimo, alarmante, colocando em xeque, mesmo, suas bases epistemológicas
mais profundas. Ao mesmo tempo, conforme parcialmente discutido, a psiquiatria
contemporânea tornou-se mais sutil, e os mecanismos de sua atuação se
estilhaçaram. Pode-se dizer que Foucault mira uma sociedade disciplinar, quando
atualmente vivemos em uma sociedade de controle (DELEUZE, 1992).
Se a psiquiatria que Foucault mirou
não existe mais, tendo ocorrido verdadeira ruptura, tão a gosto de parte da
filosofia francesa mais contemporânea, a presença de manicômios ainda assombra
muitos lugares, e é o destino de milhares de pessoas no Brasil, em forte
sofrimento não só psíquico, como social. As críticas dos antipsiquiatras,
Foucault incluso, certamente contribuíram com essa mutação epistemológica e
terapêutica da psiquiatria, posto que a velha psiquiatria policial parece
incompatível com sociedades modernas e democráticas.
Dizemos parece, posto que o
perigo dos manicômios é constante. Em tempos de retrocesso em muitas áreas, com
setores abandonado de mala e cuia as conquistas do iluminismo e dos direitos
humanos, a maquinaria asilar pode bem retornar, com os usos políticos que dela
foram feitos, como se viu. É necessário manter vigilância contínua sobre este
ponto, como em outros. Afinal, se, como vimos, a história dos positivistas do
século XIX não existe, periga que velhos fantasmas voltem a nos assombrar.
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Psicopat. Fund., São Paulo, v. 13, n. 1, p. 128-134, março 2010
_______________; Formulando uma
Psicopatologia Fundamental, Revista
Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental v. 1, n. 1, março de 1998
_______________; Kraepelin
e a criação do conceito de “Demência precoce”, Rev. Latinoam. Psicop.
Fund. IV, 4, 126-129
_______________; Kraepelin
e a questão da manifestação clínica das doenças mentais, Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., São Paulo, v. 12, n. 1, p. 161-166,
março 2009
_______________; Krafft-Ebing,
a Psychopathia Sexualis e a criação da noção médica de sadismo, Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., São Paulo, v. 12, n. 2, p. 379-386,
junho 2009
_________________; Minkowski
ou a psicopatologia como psicologia do pathos humano, Rev. Latinoam. Psicop. Fund. III, 4, 153-155
_________________; Morel
e a questão da degenerescência,
Rev. Latinoam. Psicopat. Fund.,
São Paulo, v. 11, n. 3, p. 490-496, setembro 2008
_________________; Pierre
Janet e os atos psíquicos inconscientes revelados pelo automatismo psíquico das
histéricas, Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., São Paulo, v.
11, n. 2, p. 301-309, junho 2008
_______________; Pinel - a mania, o tratamento moral e os inícios da psiquiatria
contemporânea, Rev. Latinoam. Psicop. Fund. VII, 3,
113-116, setembro 2004
_______________; Sobre
os fundamentos da psicoterapia de base analítico-existencial, segundo Ludwig
Binswanger, Rev. Latinoam. Psicop. Fund. IV, 1,
137-142
RODRIGUES, A.C.T.; Karl
Jaspers e a abordagem fenomenológica em psicopatologia, Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., VIII, 4, 754-768
ROUDINESCO, E.; Filósofos
na tormenta – Canguilhem, Sartre, Foucault, Althusser, Deleuze e Derrida,
RJ-RJ, Zahar, 2007
SABBATINI, R.M.E., A História da Terapia Por Choque em
Psiquiatria, UNICAMP
SAURI, J.J.; A construção do conceito de neurose (I). Os
vapores e os nervos, Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., VIII,
1, 73-85
______; A construção do
conceito de neurose (II). Nosologia e neurose, Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., VIII,
2, 289-302
VAN DEN BERG, J.H.; O
que é psicoterapia?, São Paulo: Mestre Jou, 1979
[1] Cf FERNANDES, M.I.A., SCARCELLI, I.R., COSTA, E.S. ;
Fim de século ; ainda manicômios ?, SP : IP-USP, 1999
[2]BAYLE, A. L., Pesquisas sobre doenças mentais, Rev.
Latinoam. Psicopat. Fund., São Paulo, v. 12, n. 4, p. 752-758, dezembro 2009;
PEREIRA, M.E.C., Bayle e a descrição da
aracnoidite crônica na paralisia geral: sobre as origens da psiquiatria
biológica na França, Rev. Lat. Americana de Psic. Fund., SP, v. 12, nº4, p.
747-71;
[4]
Ibidem nota 4
[5]
CUNHA, M.C.P.; 1988, p. 100
[6]
Ibidem.
[7]
Cf. MADALENA, J.C.; História da Esquizofrenia, RJ : Imago, 1982
[8]
Cf. SABBATINI, R.M.E.,
História dos tratamentos de choque,
Campinas: UNICAMP, 1997
[10]
Terapia pelo esfriamento do corpo. Cf. SABBATINI, R.M.E, 1997, p. 7
[12]
(...) “as injeções, por portugueses que nunca jamais em tempo algum viram tubos
de injeções. O Dr. Franco da Rocha não vem ás enfermarias, está entregue o
hospício sobre a direção de boçais portugueses. A mim me mandaram dormir na
rotunda, lugar este que nem as cisternas da capital fedem tanto a urina quanto
este quarto” (CUNHA, M.C.P.; 1988, p. 98) e, também, como Lima Barreto descreve
uma notícia de jornal, onde havia se publicado um relato de um ex-interno do
Juquery: (...)“eu, que ai achei-me internado de março a setembro de 1903,
presenciei, por mais de uma vez, de que modo certos portugueses grosseiros,
boçais, propiciavam os medicamentos aos infelizes que, receosos de serem
envenenado, não queriam engolir os ditos remédios. Derrubavam o paciente,
punham um pé (uma pata) sobre o pescoço do mesmo, apertavam-lhe o nariz, etc.
Naquele tempo (e quiça agora) a maioria, na vossa presença [enquanto
jornalistas e pessoas externas] e na de outros médicos, a maioria daqueles
empregados mercenários mostrava-se humilde, comedida; quando se achavam a sós
com os infelizes reclusos, que triste ...reverso da medalha” (apud CUNHA,
M.C.P.; 1988, p. 91-2)
[13] DAUD JR, N.; Neoliberalismo, luta antimanicomial e pós-neoliberalismo
in: FERNANDES, M.I.A., SCARCELLI, I.R., COSTA, E.S. ; Fim de
século ; ainda manicômios ?, SP : IP-USP, 1999
[14]SALLEH, M.A.; PAPAKOSTAS, I.; ZERVAS, I.;
CHRISTODOULOU, G.; Eletroconvulsoterapia: critérios e recomendações da
Associação mundial de Psiquiatria, Rev. Psiq. Clin. 33 (5), p. 262-267, 2006
[15] WEISSMANN,
Karl; O hipnotismo: psicologia, técnica, aplicação, RJ-RJ, Prado, 1958
[16] FREUD, S.; SP: A história do movimento
psicanalítico, SP: Abril Cultural, 1978
[17] Especialmente depois dos trabalhos de Wundt, mestre
de Krafft-Ebing. Wundt é considerado o fundador da medicina experimental i. é,
da psicologia considerada enquanto ciência, distinguindo-se, pois, da
filosofia. Cf. BOCK, A. M. et. al; Psicologias – introdução ao estudo da psicologia, SP: Saraiva, 1999, 13ª ed.
[18] PAIM, I.; Curso de psicopatologia, SP:
Grijalbo, 1977, 3ª Ed; PAOLIELLO, G., O problema do diagnóstico em
psicopatologia, Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., IV, 1, 86-93; FÉDIDA, P.; De
uma psicopatologia geral a uma psicopatologia fundamental. Nota sobre a noção
de paradigma, Rev. Latinoam. de Psicopatologia Fundamental v. 1, n. 3, setembro
de 1998; RODRIGUES, A.C.T.; Karl Jaspers
e a abordagem fenomenológica em psicopatologia, Rev Latinoam. Psicopat. Fund., VIII, 4, 754-768
[19] FÉDIDA, P.; De uma psicopatologia geral a uma
psicopatologia fundamental. Nota sobre a noção de paradigma, Rev. Latinoam.
de Psicopatologia Fundamental v. 1, n. 3, setembro de 1998
[20] CAMPAILLA, 1982, Cap. III, p.
5-15
[21] RODRIGUES, A.C.T.; Karl Jaspers e a abordagem fenomenológica em psicopatologia,
Rev Latinoam. Psicopat. Fund., VIII, 4,
754-768
[22] Cf. PAIM, 1977, p. 78-82
[23]
Ibidem, p. 82-83
[24]
De pródromo, ou seja, os sinais que indicam a irrupção futura da doença.
[25]
Parte mais exterior do cérebro. Cf. CROCE, CROCE JR, 1994, p. 64.
[26]“Cenestesia:
sentimento vago da existência sem o auxílio dos sentidos; sensibilidade”
(CROCE, CROCE JR, 1994, p. 46)
[27]Cf. MOREL, B.-A., Tratado das
degenerescências na espécie humana Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., São Paulo,
v. 11, n. 3, p. 497-501, setembro 2008; CAPONI, S.; Para uma genealogia de la
anormalidad: la teoria de la degeneración de Morel, Scientle Studiae, SP, v. 7, no. 3, pgs. 425-45, 2009; PEREIRA,
M.E.C., Morel e a questão da degenerescência, Rev. Latinoam. Psicopat. Fund.,
São Paulo, v. 11, n. 3, p. 490-496, setembro 2008
[28] Demência
precoce com tendência ao isolamento
[29] Demência
precoce com alternância entre motricidade e isolamento
[30] A filosofia contribuiu bastante para a psiquiatria,
especialmente para a corrente analítico-existencial,
cujos principais procedimentos passam pela investigação e compreensão da vida do
paciente (distinto de explicação), para mostrar onde o paciente falhou no
exercício de sua liberdade e fazendo com que ele experimente-a de maneira
radical. Já a teoria da comunicação,
baseada nos trabalhos de Bateson (1953), buscava explicar a esquizofrenia a
partir do estudo das formas de comunicação e relação afetiva nas famílias dos
enfermos, mostrando como paradoxos nestas podem levar ao desate de
comportamentos esquizofrênicos futuros. Para a psiquiatria que se apóia tanto
na teoria geral dos sistemas quanto
na cibernética, o organismo é um
sistema de processos em interação e não de funções somadas; defendem os adeptos
destas idéias que uma alteração na personalidade é total e não funcional, tese
completamente oposta a vários compêndios de psicopatologia, que estruturam-se
sob a égide função-afecção. A lingüística
seja aquela reinterpretada por Lacan a partir da psicanálise seja em si,
contribui para a psiquiatria na medida em que oferece elementos para a análise
da fala, inclusive a dos enfermos. Cf. GRANDINO, NOGUEIRA, 1985;
CAMPAILLA,1982.
[31] Dos quais
já tratamos mais acima.
[32] Szasz defende a inexistência da doença
mental, bem como de seu substrato orgânico, com raras exceções
laboratorialmente comprováveis.
[33] AMARANTE,
P. Uma aventura no manicômio: a
trajetória de Franco Basaglia in História,
Ciências, Saúde — Manguinhos, I(1), pp. 61-67, jul-out., 1994
[34] Conforme
relata FREUD, S.; A história do movimento psicanalítico, SP: Abril
Cultural, 1978, p. 44. “Nestes casos parecidos, é sempre a coisa genital,
sempre, sempre”. Freud teria se espantado ao ouvir isto da boca de Charcot.
[35]
Patologia pode tanto se referir a uma disciplina médica que estuda as afecções
quanto ser um sinônimo de fenômeno mórbido, seja psicológico seja fisiológico.
Quando utilizarmos o termo no primeiro sentido, ele virá em itálico.
[36]
JANET, P.; O automatismo psicológico. Ensaio de psicologia experimental
sobre as formas inferiores da atividade humana, Rev. Latinoam. Psicopat.
Fund., São Paulo, v. 11, n. 2, p. 310-314, junho 2008 e PEREIRA, M.E.C.; Pierre
Janet e os atos psíquicos inconscientes revelados pelo automatismo psíquico das
histéricas, Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., São Paulo, v. 11, n. 2, p.
301-309, junho 2008
[38] BINSWANGER, L.; Sobre a psicoterapia, Rev.
Latinoam. Psicop. Fund. IV, 1, 143-166 e PEREIRA, M.E.C.; Sobre os
fundamentos da psicoterapia de base analítico-existencial, segundo Ludwig
Binswanger, Rev. Latinoam. Psicop. Fund. IV, 1, 137-142
[39] JASPERS, K.; A abordagem fenomenológica em
psicopatologia, Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., VIII, 4, 769-787 e
RODRIGUES, A.C.T.; Karl Jaspers e a abordagem fenomenológica em
psicopatologia, Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., VIII, 4, 754-768
[40] A História da loucura
é um livro sui generis, seja em
relação aos escritos passados e futuros de Foucault, seja em relação ao que se
produzira até então acerca da loucura. Sem dúvida nela encontramos uma análise
que liga a formação do mundo psiquiátrico do século XIX com a sociedade de
então, e todas as forças em luta. Contudo, Foucault dá ênfase excessiva à
questão das mentalidades. Poderíamos chamar o livro de História das
mentalidades sobre a loucura na Idade Clássica, sem que, com isto, tivéssemos
que alterar uma única linha do livro de Foucault.
[42]
(...) “a lettre de cachet não era uma
lei ou decreto, mas uma ordem do rei que concernia a uma pessoa,
individualmente, obrigando-a a fazer alguma coisa. Podia obrigar alguém até
mesmo a casar-se por uma lettre de cachet.
Na maiori das vezes, porém, ela era um instrumento de punição” (FOUCAULT,
2005b, p. 95)
[44] Cf.
FOUCAULT, 2008
[45] Ministro de
Luis XIV e teórico do mercantilismo
[46] Foucault
elaborará o tema da Aliança sobretudo na História
da sexualidade I: a vontade de saber, RJ: Graal,
[47]
No curso de 1973-74, O poder psiquiátrico, Foucault elabora uma pequena história das
tecnologias políticas da verdade. A partir de uma exposição acerca da anamnese
e do interrogatório clínico, técnicas psiquiátricas, Foucault distingue duas
grandes técnicas de obtenção da verdade: verdade-acontecimento
e verdade-demonstração. A primeira é
muito antiga e parte de um entendimento da verdade como não-universal, e
dependente da ocasião para aparecer; disto, alguns operadores especiais que a
incitassem, a fizessem sair da toca. A segunda, que não nos interessa no
momento, parte de uma verdade universal, que necessita de alguns instrumentos,
da ratio correta para ser adquirida;
ela é como que um direito universal do sujeito, e teve nas técnicas de
inquérito seu grande trunfo, do qual resultou a ciência moderna.
A
verdade-acontecimento foi central para a medicina por muitos séculos.
Pautava-se então, na noção de crise como nodal, como o referencial
teórico-prático da operacionalidade médica. Ela era identificada como o momento
no qual a essência da doença se manifesta, cabendo, pois ao médico, mostrar sua
força contra a crise ao manipular, ao gerir as forças da natureza contra a
morbidez. A crise não pode ser gerada; o médico deve estar atento para saber
quando ela eclodirá para somente então, já preparado, intervir no curso dos
fatos.
[48] Já
explicaremos a quantas andava a medicina dos nervos e dos humores nestes tempos
de internamento.
[49] TUBINO, P.; Medicina
na Grécia antiga, UnB: 2009 e também PEREIRA,
M.E.C.; Cullen e a introdução do termo “neurose” na medicina, Rev.
Latinoam. Psicopat. Fund., São Paulo, v. 13, n. 1, p. 128-134, março 2010
[50] SAURI,
J.J.; A construção do conceito de
neurose (I). os vapores e os nervos, Rev
Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, VIII, nº, 73-85
[51]
Ibidem, p. 76 e TUBINO, ibidem
[52]
Casamentos ajeitados, geralmente mais por questões ou políticas, ou econômicas,
muitas vezes pelos dois.
[53]
FOUCAULT, 2007c, p. 273-276
[54] SAURI, J.J; A construção do conceito de neurose (II). Nosologia e neurose, Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., VIII, 2, 289-302
[55]
Membrana que envolve o cérebro. Cf CROCE, CROCE JR, 1994, p. 83
[56]
Falta de tensão das fibras. Cf CROCE, CROCE JR, 1994 p. 25
[57]
Excesso de tensão
[58] PEREIRA, M.E.C.; Cullen e a introdução do termo
“neurose” na medicina, Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., São Paulo, v. 13, n.
1, p. 128-134, março 2010
[59]
Ambos foram fartamente expostos por Foucault em inúmeras oportunidades.
Ressaltamos vp, avfj
[61]
Cf. FOUCAULT, O poder psiquiátrico, SP: Martins Fontes, 2006
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