terça-feira, 11 de junho de 2019

Apontamentos para a genealogia da psiquiatria (2011)


Apontamentos para a genealogia da psiquiatria





















Sumário


 1. Introdução

2. Primeiro capítulo: Pequena notação de método: epistemologia política e genealogia
2. 1. Fontes epistemológicas de Michel Foucault
2.2. Ontologia do saber
Conceito de saber
A ordem do discurso
O regime de verdade
           2.3. O método: a genealogia
3. Segundo capítulo: A situação desta pesquisa: Observações metodológicas e analíticas
4. Terceiro capítulo: Para compreender a psiquiatria
4.1. A psiquiatria (para os psiquiatras)
                                Uma medicina mental 
A terapêutica
Psicofarmacologia
Os tratamentos de choque
As psicoterapias
                4.2. O papel da Psicopatologia
Estudo de caso: Psicopatologia do juízo
Conclusões

4.3. A história da psiquiatria (para os psiquiatras)

5. Quarto capítulo: Fundamentos da crítica de Foucault
6. Quinto capítulo: A formação do mundo psiquiátrico
Proveniência do internamento
Emergência do internamento
                Os desvios religiosos e a medicina
7. Sexto capítulo: Medicina ou psiquiatria?
                                Cullen inventa a neurose e a nosologia
7.1. Rumo à biopolítica: as três medicinas sociais da Ilustração e a tecnologia do hospital
                O hospital
7.2. Pinel, francês
8. Conclusões
Bibliografia


1. Introdução


O século XIX viu raiar uma série de disciplinas que se pretendiam científicas, dentre os quais, pelas analogias possíveis e ligações diretas, salientamos duas: a psiquiatria — medicina mental — e a psicanálise. Além disso, a emergência da figura do doente mental, noção nodal às duas disciplinas, e suas conseqüências sociais, institucionais e epistêmicas somente engrossam nossas inquietações. Afinal de contas, por quais motivos o século de ouro da burguesia, o século do triunfo do capitalismo de mercado, do estabelecimento desta noção confusa embora sensível de modernidade; enfim, por que justamente o XIX inventou esta figura do louco enquanto doente mental? Por que ali as disciplinas médicas ou pretensamente médicas das afecções mentais surgiram, com toda sua parafernália asilar, suas terapêuticas de choque e psicoterapias?

            O objetivo deste curto ensaio é analisar a proveniência e a emergência de uma destas disciplinas, esta pérola ocidental cujo nome é psiquiatria, a partir dos estudos de Michel Foucault sobre a temática. Em fato, o pensador francês elaborou uma maneira peculiar de abordar a questão, apropriando-se de todo um instrumental teórico nietzscheano para mostrar, como, no fim das contas, estas disciplinas — medicina, psiquiatria, psicanálise — responderam a interesses bastante concretos da sociedade capitalista industrial urbana e burguesa em formação.

            Embora nossa ênfase nas elaborações foucaultianas, nossa análise não incorre no erro de esquecer o que o permite. Foucault, em fato, é incluído por muitos autores no rol dos antipisiquiatras (GRANDINO, NOGUEIRA, 1985, p. 33-37), quer dizer, aqueles autores que (...) “questionam a psiquiatria como instituição, assim como o conceito de doença mental e os tratamentos psiquiátricos” (GRANDINO, NOGUEIRA, 1985, p. 34). Dentre Szasz, Basaglia, Laing, Cooper e Castel, a obra de Foucault merece destaque, pela sua inovação e consistência teórica além de sua amplitude temática. Não lançamos mão, contudo, destas obras. Malgrados as semelhanças aparentes, diferem muito entre si.

            Ao mesmo tempo, — para sermos fiéis ao método genealógico de Foucault — buscamos as fontes diretas. Afinal, afora as críticas, como os próprios psiquiatras dizem de sua ciência? E o que Freud, este divisor de águas, o que o pai da psicanálise diz de seu invento? Navegando neste mar de conceitos e práticas psquiátricas, médicas ou pseudomédicas; nesta casuística assombrosa — onde se encontram o imbecil e o uranista, a histérica e o esquizofrênico —; nesses métodos terapêuticos, como a estrapada ou a traumatoterapia; nestas fundamentações psicopatológicas, onde o delírio distingue-se da alucinação e a neurastenia da hebêfrenia; nas distintas tipologias, levantamentos, anamneses e entrevistas morosas, com seus inúmeros formulários destinados a estabelecer quem é o louco e qual sua loucura. Enfim, buscando entender o cerne da psiquiatria singramos por todo um período até pouco bem obscuro e tivemos contato com textos que, ditos médicos, assombram: que cura podem propor, quais doenças e quais curas podem identificar? E, o mais importante, quais práticas eles fundam, quais relações estabelecem — a quais interesses respondem?
           
Insistimos na questão. Ela é, diz Foucault, importante: somente perguntando-nos a origem do presente poderemos retraçar os delicados meandros da histórias, fazendo vir á tona as lutas, o interesses e os interessados, com suas táticas, recuos, avanços e investidas. Foucault, com sua concepção belicista e radicalmente vertiginosa da história (BRUNI, 1989) elabora sua analítica das relações entre poder e saber situando a psiquiatria e a psicanálise no lugar que lhes é de direito: o seu, o de seu aparecimento. Assim, vinca-se o passado e o presente, dando a luz ao processo intenso e multifacetário de origem da psiquiatria.

Nessa confusão, onde ciência e poder se complementam, se demandam e se necessitam, qual o preciso lugar da psiquiatria: onde devemos situá-la? como devemos entendê-la? E, fundamentalmente, o que ela criou, de onde ela criou e de onde ela veio? Enfim, trata-se, para nós, neste pequeno trabalho, estabelecer como foi possível a psiquiatria, o que no impele a desvelar qual correlação de forças a engendrou e a qual correlação ela veio responder.

         No primeiro capítulo, empreendemos uma síntese do método foucaultiano, distinguindo genealogia e arqueologia e algumas heranças nietzscheanas de Foucault.; Também enveredamos no rumo de dar certa sistematicidade às produções metodológicas de Foucault, objetivando aclarar suas produções.

            No segundo capítulo e breve capítulo, situamos esta pesquisa face à nossa démarche, apontando limites, futuros desdobramentos e caminhos passados e vindouros.

            No terceiro, avaliamos criticamente a psiquiatria contemporânea a partir de alguns textos médicos, dando especial ênfase àquilo que se tornou a marca mais conhecida da psiquiatria, o tratamento de choque; mas também analisamos a psicopatologia, a partir de um texto talvez desatualizado, mas que situa esta disciplina na época em que Foucault escreveu e pensou a medicina mental. Também elaboramos um inventario crítico da maneira como os psiquiatras contam a história de sua própria disciplina, contrastando com as posições epistemológicas de Foucault.

            No quarto capítulo, traçamos breve comentário acerca de um estudo epistemológico de Foucault sobre a psicologia, no caso, o primeiro livro publicado de Foucault, depois revisto e alterado.

            No quinto e maior capítulo, entramos propriamente falando em nosso objeto, analisando a formação da psiquiatria, os sujeitos envolvidos e a parafernália medical implicada. Para tanto, nos baseamos tanto em textos de Foucault, quanto em textos de psiquiatras tratando de sua própria disciplinas..

            No sexto capítulo, recapitulamos alguns elementos, mostrando a constituição da psiquiatria contemporânea, a partir de autores como Cullen e Pinel, elaborando também breve conclusão.



2. Pequena notação de método: epistemologia política e genealogia

2.1. Fontes epistemológicas de Michel Foucault
                Chama-se epistemologia àquela disciplina filosófica que estuda e reflete acerca da natureza, forma, características, limites e obstáculos do conhecimento, bem como sobre a verdade; dado isto, a epistemologia pode ser tomada em duplo sentido: teoria do conhecimento ou teoria da ciência (PENNA, 2000). Neste último sentido, como é possível compreender o que é a ciência em sua singularidade senão por meio de sua história e de sua sociologia?

               Estamos a dizer, portanto, das relações entre epistemologia e história das ciências, velha polêmica teórica. A tradição epistemológica que baliza Foucault, que leva de Bachelard a Canguilhem, passando por outros autores franceses (MACHADO, 1988), reflete acerca disto em termos da contribuição de uma para outra e de outra para uma.

               Detalhemos. Dado que muitos historiadores da ciência fizeram seus trabalhos sem referir-se a qualquer epistemologia, eles pensam que esta disciplina mais se aproveita do que provem os trabalhos historiográficos. Canguilhem discorda: a epistemologia mais contribui do que recebe. Uma história das ciências que não se vale da epistemologia se reduz a mostrar as relações lógico-cronológicas de enunciados, de problemas e de soluções; nada distinguiria, a partir deste ponto de vista, a história da ciência da história de qualquer outro campo da cultura e o valor de um historiador ou de seu trabalho historiográfico seria determinado pelo mero acúmulo de saber, por sua erudição. A história de uma ciência seria o inventário de tudo que foi produzido sobre um objeto, quer dizer, o historiador deveria seguir uma linha móvel de progresso que deságua no objeto e na ciência atual.

               Contrário a esta posição, Canguilhem cita Suzanne Bachelard: “Que a atividade do historiador seja retrospectiva é um facto que lhe impõem limites, mas que lhe dá poderes. O historiador constrói seu objecto num espaço-tempo ideal. Compete-lhe evitar que este espaço tempo seja imaginário” (CANGUILHEM, 1977, p. 14). Portanto, o passado não jaz dado: o historiador, na minúcia de seu saber e em seu bailar teórico, cria a memória, altera o passado, torna ele verde ou cinza. Canguilhem está a se opor à concepção metódico-positivista continuísta de história, facilmente perceptível na máxima de Leopold von Ranke, segundo a qual o historiador deve (e pode) apresentar as coisas tal qual elas realmente se passaram (CANGUILHEM, 1977, p. 12).

               Exemplificando, Canguilhem cita o caso da botânica. No século XVIII, os botânicos baseavam-se na fisiologia animal, dividindo esta área em fisiológos-químicos e fisiólogos-físicos. A botânica atual, ao contrário, baseia-se na bio-química e na biofísica. Quer dizer há uma descontinuidade radical entre uma e outra; há, em termos bachelardianos, um corte epistemológico: duas racionalidades diferentes, que balizam ciências diferentes, e cujos objetos são diferentes.

               No jogo desta relação, três personagens e suas diferentes relações com o saber: o cientista, aquele que efetivamente gera ciência; o epistemólogo, o que constrói um meta-saber, isto é, saber crítico do próprio saber; e o historiador das ciências, que faz construir o passado, nos termos já por nós dito. Cabe ao cientista conhecer o passado das investigações da mesma ordem que a sua, com um preciso fim heurístico, dado ser o objetivo do cientista o progresso de sua teoria; apesar disto, o próprio Canguilhem reconhece como são relativamente raros os cientistas com conhecimento do passado de suas disciplinas, o que demonstra como a história das ciências não é originária, mas complementar à prática científica propriamente dita. Já quanto ao epistemólogo, seu problema é abstrair o processo por detrás dos enunciados científicos que se pretendem verdadeiros, visando encontrar nos atos do saber os meios que permitiram a este maior eficácia; para tanto, o epistemológo deve instalar-se no interior dos enunciados científicos, imitando a prática do cientista, quer dizer, sabendo como cientista pode produzir o que produziu e porque o fez. Fica explícito, assim, que como se trata da análise de um processo, a história da ciências é central, fundante ao ofício do epistemólogo.

               Vemos, portanto, que nesta tradição filosófica — a mesma de Foucault — a história das ciências ocupa papel fundamental em relação à epistemologia. O historiador das ciências trabalha com o passado de uma determinada produção cultural cuja especificidade é buscar a verdade. Passado: designação dos antecedentes das atuais condições de exercício. Com isso, o historiador das ciências corre um risco, o de aplicar os atuais modelos científicos ao passado; quer dizer, perguntar o passado porque lhe falta a maturidade lógica alcançada pela ciência atual. Compete ao epistemólogo impedir que o historiador das ciências proceda desta forma, deixando claro que o que baliza a história da ciência é a descontinuidade; quer dizer, cabe ao epistemólogo reativar o sentido da história de uma ciência: ruptura epistemológicas entre normas científicas distintas. A partir disto, o historiador das ciências, se valendo da epistemologia, não pode confundir “a persistência dos termos com a identidade dos conceitos, a invocação dos fatos de observação análoga com parentesco de método e de problematização” (CANGUILHEM, 1977, p. 20).

               Portanto, Canguilhem, orientador e fonte de Foucault, elabora, a partir de Bachelard, uma história epistemológica, onde epistemologia alimenta a história e a história alimenta a epistemologia, em análises balizadas nos conceitos de ruptura, corte epistemológico, descontinuidade. Seu método se chama, então, da recorrência: “jurisdição crítica sobre a anterioridade de um presente científico, que está isento, precisamente porque científico, de ser ultrapassado ou retificado” (CANGUILHEM, 1977, p. 20).
*
               São estas as maiores influências histórico-epistemológicas de Foucault. Já veremos como elas se refletem nas análises do filósofo francês.

               Compreenderemos como epistemologia política toda aquela análise que situa esses ditos elementos acerca do conhecimento em face da política, das relações de poder entre os homens, das condições sociais de produção, circulação e armazenamento do saber. Dado nosso recorte, e mais especificamente, por epistemologia política entendemos as elaborações realizadas por Foucault, a partir de uma interpretação tanto da filosofia de Nietzsche quanto da epistemologia francesa, que redundaram em uma teoria política do saber e em um método de análise que permite tomá-lo como forma de poder.  Em suma, o objetivo de tal teorização é mostrar que “por trás de todo saber, de todo conhecimento, o que está em jogo é uma luta de poder. O poder político não está ausente do saber, ele é tramado com o saber” (FOUCAULT, 2005b, p. 51). Trata-se, assim, da constituição tanto de uma ontologia do saber quanto de um método analítico — a genealogia — e de um modelo teórico do poder. Analisemos cada uma destes elementos componentes.

2.2. Ontologia do saber


            Por ontologia do saber compreenderemos: um conceito de saber; conceito de ordem do discurso (por conseguinte, ordem do saber); e, conceito de regime de verdade. Que desde já fique claro que conhecimento e saber são, para nós, sinônimos neste texto.

            Embora esta distinção um tanto quanto rígida, estes três conceitos estão fortemente imbricados: um supõe e baseia o outro, etc. Quer dizer, a separação que ora fazemos tem como base tanto a necessidade de explicitar com máximo de rigor o que caracteriza um e outro conceito, e, também, o fato de suas fontes serem diferentes. Não há nenhum texto onde Foucault una esses conceitos, dando-lhes a necessária correlação com fins analíticos. É exatamente isto que pretendemos fazer neste tópico.            

Conceito de saber
Para Aristóteles o conhecimento é um impulso natural presente em todos os humanos. De onde que, se conhecer é natural, por extensão também é natural o conhecimento, os objetos e os sujeitos. Para estes, não há história, senão aquela que leva do mais simples ao mais complexo, do menos lógico ao mais logicamente refinado. Foucault discorda. 

            Na série de conferências editadas sob o nome A verdade e as formas jurídicas, M. Foucault elabora uma teoria política do saber ou, o que ele chamou então de política da verdade. Trata-se, para ele, de mostrar como o saber não é natural, como os objetos, os campos de saber, os sujeitos de conhecimento e a verdade não estão dados, mas são produzidos pelas práticas sociais, notadamente as práticas jurídicas.

            É a partir da filosofia de Nietzsche que o epistemólogo de Poitiers buscará elaborar tal teoria. Nietzsche, diz ele, “faz a análise histórica da própria formação do sujeito, a análise histórica do nascimento de um certo tipo de saber, sem nunca admitir a preexistência de um sujeito de conhecimento” (FOUCAULT, 2005b, p. 13). De fato, para Nietzsche o conhecimento é uma invenção, Erfindung, em alemão. Erfindung se contrapõe a Ursprung, origem ou fundamento originário, termo este que terá bastante importância também no método de Foucault.

            Toda Erfindung é uma ruptura cuja origem é baixa; quem faz solenes as origens são os historiadores. Também é assim com o conhecimento. Se ele é uma invenção, ele não é inerente ao homem: não se trata de um instinto ou de um desejo natural. Para Nietzsche, diz Foucault, “o conhecimento é simplesmente o resultado do jogo, do afrontamento, da junção, da luta, do compromisso entre os instintos” (FOUCAULT, 2005b, p. 16). O conhecimento é um efeito de superfície da batalha entre os instintos: ele é contra-instintivo, é contra-natural. Entre as coisas e o conhecimento não há ligação necessária, assim como também não há nada que ligue a priori natureza humana e conhecimento. 

“É contra um mundo sem ordem, sem encadeamento, sem formas, sem beleza, sem sabedoria, sem harmonia, sem lei, que o conhecimento tem de lutar. É com ele que o conhecimento se relaciona. Não há nada no conhecimento que o habilite, por um direito qualquer, a conhecer esse mundo. Não é natural à natureza ser conhecida” (FOUCAULT, 2005b, p. 18)
           
            A relação entre conhecimento e natureza é “uma relação de luta, dominação, subserviência, de compensação (...) de poder e de força, de violação (...) e não percepção, reconhecimento, identificação delas ou com elas” (FOUCAULT, 2005b, p. 18).

            Foucault, asseverando Nietzsche, rompe com toda a tradição filosófica ocidental para a qual haveria uma unidade, uma continuidade que levaria do conhecimento às coisas e vice-versa; mas, se entre coisas e conhecimento há uma batalha, vemos a dita unidade esfarelar-se no ar. Além disso, trata-se de dissolver outra unidade, a do sujeito: o conhecimento e o instinto não são a marca da soberania e da força unitária do sujeito; eles estão em guerra, é a violência da batalha que caracteriza a relação de um com outro, e não a de uma calmaria do Mesmo que se reencontra consigo.

            Para explicar a origem do conhecimento Nietzsche retoma Spinoza para marcar sua posição. Este último pensava que para compreender (inteliggere) as coisas, é necessário que se evite rir (ridere), deplorar (lugere) e odiá-las (detestari). Nietzsche diz que não: o conhecimento seria resultado da guerra entre os instintos, como que resultado parcial da luta entre eles, momento de trégua, estabilização temporária da luta entre as três paixões. Compreender o conhecimento implica parar de tê-lo como beatificado, puro; é por meio da compreensão do jogo de interesses, das relações de força, de poder, de dominação que podemos compreender o conhecimento. O conhecimento é fruto da luta de três más relações que não respeitam, não aproximam, mas riem do objeto; que não o acolhem, mas deploram, lamentam-no; que não o amam, mas o odeiam, buscam destruí-lo.

 O fato de advir da luta explica algumas características do conhecimento. Primeiro, o fato de ele ser generalizante: como ele é violência, ele esquematiza, solapa o que é diferença nas coisas em benefício de si mesmo. Segundo, o fato de ele, paradoxalmente, ser particular: como o conhecimento é maldade, ele se desenvolve como duelo, relação de força aplicada sobre cada coisa particularmente. Terceiro, o fato do conhecimento ser perspectivo: por perspectivo Foucault entende o fato do conhecimento não possuir essência, unidade ou condições universais; como a luta entre os três instintos não terminou, mas somente estabilizou-se temporariamente, resultando no conhecimento, este é, portanto, rearranjo ou trégua temporária advindo de relações precárias; ou seja, “o conhecimento é sempre uma relação estratégica em que o homem se encontra situado (...) Pode-se falar do caráter perspectivo do conhecimento porque há batalha  e porque o conhecimento é efeito dessa batalha” (FOUCAULT, 2005b, p. 25). Por fim, e como decorrência desta última característica do conhecimento, o fato do interesse; bem sabemos que há toda uma tradição filosófica que compreende o conhecimento, mais precisamente, o conhecimento científico, como desinteressado, como a relação de candura que faz a verdade brilhar em sua pureza criadora. Ora, se, para nós, o conhecimento é fruto de relações estranhas, externas a si, ele é sempre interessado, pois fruto da luta de outrem; conhecimento não exclui desejo: é fruto destes; o conhecimento não desata as maldades do poder, mas muito ao contrário, não só as aplica, como ele mesmo é, uma relação de poder contra as coisas; o conhecimento não é independente, autônomo ou livre, mas dependente, subserviente e interessado. 

*
            Se quisermos aclarar os motivos que levam Foucault a tomar todo saber como poder devemos ir mais longe e buscar as bases filosóficas do pensamento deste, ou seja, recuperar Nietzsche. Trata-se de uma hipótese o que estamos a dizer.
           
            Na Genealogia da moral, Nietzsche distingue entre procedimento e sentido. A propósito do castigo, diz ele que:

“Há que distinguir nele dois aspectos: o que nele é relativamente duradouro, o costume, o ato, o ‘drama’, uma certa seqüência rigorosa de procedimentos e o que é fluido, o sentido, o fim, a expectativa ligada às realização desses procedimentos” (NIETZSCHE, 2007, p. 68, grifos nossos)

            Polemizando com os psicólogos ingleses, Nietzsche busca mostrar como há uma diferença entre a coisa material, queremos dizer, o procedimento, e o campo de significações na qual as inserimos, o sentido. Por exemplo, o castigo não foi feito para dar exemplo, ao contrário do que diz; é impossível dizer, precisamente, porque ele surgiu já que há uma série de sentidos nos quais ele foi inserido; o castigo foi, na verdade, “alternadamente submetido às necessidades de se vingar, de excluir o agressor, de libertar a vítima, de aterrorizar os outros” (FOUCAULT, 2007c, p. 22). O mesmo procedimento, castigar, teve, portanto, pelo uma dezena de sentidos, que Nietzsche cita neste mesmo 13º aforismo.

            Analogamente, o saber é o sentido que se dá às coisas do mundo. Só que esta relação que designa, que interpreta, não é solta; dizer o sentido de algo significa conformá-lo: se uma árvore é uma estrutura orgânica ou um a encarnação de um deus, isto implica em mudança nas ações que se desenvolverão em relação a ela.  Nietzsche bem sabia disso, tanto é que ele define como regra de método que “o conceito denotador de preeminência política sempre resulta em um conceito de preeminência espiritual” (NIETZSCHE, 2007, p. 23); os que dominam politicamente dão o sentido as coisas.

            Disto Foucault extrai — é precisamente nossa hipótese — a base de sua epistemologia política. O poder gera saber, ou seja, a dominação política gera sentido sobre as coisas do mundo, sobre os procedimentos, visando se manter e fortalecer-se. O saber gera poder, isto é, dizer o que algo é adequar-lhe a determinado estado de coisas político, seja atual seja um projeto ou proposta.

A ordem do discurso
            Em suma, saber é poder: fruto de relações de luta, gerador de relações de poder, instrumento de guerra, meio de dominação, etc.

            Deve-se notar, no entanto, que até agora consideramos o saber em si, se com isto entendermos que não o situamos em suas condições de circulação e de produção, mas somente naquilo que o caracteriza precisamente enquanto saber. É o que faremos agora.

            O ano de 1970 marca uma importante inflexão teórica de Michel Foucault. É neste ano que, a propósito de sua aula inaugural no Collège de France, ele tomará o discurso — que, lembremos, é a parte material do saber, a escrita ou a fala — nas precisas condições que acabamos de dizer. Façamos uma breve exposição da metodologia de M. Foucault para que possamos compreender melhor o que há de novo nesta aula.

            Até então, seu método, a arqueologia, caracterizava-se pela análise do campo discursivo, isolado em si mesmo, ou, antes, da análise da fronteira entre o discursivo e o não discursivo.  Assim, o filósofo de Poitiers tomava como possível um recorte analítico que se debruçasse sobre o discurso sem levar em conta outros aspectos, como aqueles sociais, políticos, econômicos, etc, mas, também, sem achatar o discurso sobre si mesmo: trata-se de analisar o limiar entre discursivo e o não-discursivo. Deleuze: “Ele criou uma nova dimensão, a que poderíamos dar o nome de dimensão diagonal” (apud DOSSE, 1994, p. 274)

             Aproximando-se dos historiadores da Terceira Geração dos Annales, a chamada Nouvelle histoire (cf. BURKE, 1997, p. 117), Foucault punha em prática uma história estrutural, de long durée, que busca a sistematicidade das formações discursivas, em detrimentos de análises psicologizantes ou individualizantes, que fariam uma história das obras, dos autores. Problematizando o naturalizado, Foucault se propôs a fazer a história das coisas inusitadas: a loucura, o olhar médico, o campo do saber imediatamente antecedente ao surgimento das humanidades, etc.

            O documento é, então, o centro da problemática teórico-historiográfica foucaultiana, e não o devir, e, apesar de tudo, nem mesmo a questão da estrutura propriamente falando, apesar da aproximação Foucault-estruturalismo levado a cabo pela mídia do establishment intelectual francês; trata-se, pois, de saber como levar a cabo a

“constituição de corpus coerentes e homogêneos de documentos (...); o estabelecimento de um princípio de escolha (...); a definição do nível de análise e dos elementos que lhe são pertinentes(...); a delimitação dos conjuntos e subconjuntos que articulam o material estudado (...); a determinação das relações que permitem caracterizar um conjunto” (FOUCAULT, 2007a, p. 12).

            O método de Foucault então posto em prática, a arqueologia, se baliza nas supracitadas posições histórico-filosóficas; podemos dizer, grosso modo, que trata-se de um método estrutural de história do pensamento. Cada discurso é constituído por elementos chamados enunciados – signos relacionados a um conjunto de objetos, que prescrevem determinada posição aos sujeitos e que podem ser repetidos em sua materialidade. A arqueologia busca desvelar os enunciados considerados a partir de seus sistemas de formação, que definem um discurso. Em outros termos, trata-se de analisar a lei de formação de enunciados, buscando as formações discursivas que constituem objetos, sujeitos, temas, etc., que permitiram a articulação de diversos enunciados em um discurso ou conjunto de discursos.

            Para o arqueólogo, não existe necessidade no mundo, ou seja, tudo deve ser problematizado já que poderia ser de outra forma. A história, ou elementos seus, tomados como continuidade ou evolução é o principal inimigo do arqueólogo e é justamente este ponto que mais separa Foucault dos historiadores da Terceira Geração dos Annales; pelo continuísmo que era próprio a estes historiadores, Foucault queria destruí-los, queria destruir a forma hegemônica como então se praticava o ofício do historiador na França (cf. DOSSE, 1994, p. 267-292).

            Existem várias formas de continuidade. Além daquelas propriamente históricas, como compreender a história como continuidade, evolução, progresso, etc., existem outras não imediatamente visíveis: o livro, o autor, a obra, etc.; são formas de continuidade, pois supõe unidades naturais, ou seja, desconsideram o próprio devir, em se focando na permanência do Mesmo, do sujeito tomado como dado. Afora o fato de serem conceitos operacionais continuístas, Foucault os considera, além disso, unidades fracas para fundarem uma arqueologia. É no enunciado, tomado ele mesmo como acontecimento, que uma empreitada teórica de tipo arqueológica deve fundar-se. O enunciado não pode ser descrito enquanto as formas de continuidade continuarem a ser tomadas como originárias: a linguagem, os objetos, os temas, o estilo. A unidade do discurso, a sistematicidade de diferentes enunciados, somente pode ser buscada no enunciado considerado enquanto acontecimento – portanto, dotado de um espaço e de uma geografia que lhe singularizam na história. A unidade do discurso deve ser buscada nas formações discursivas: as regularidades definíveis, a partir da correlação de diferentes objetos e conceitos, em um mesmo funcionamento e ao mesmo regime de transformações; e nas regras de formação: condições às quais se submetem os elementos de uma formação discursiva, ou seja, as condições de existência, coexistência, manutenção, transformação e desaparecimento de uma formação discursiva. São estes os dois focos que imprimem a unidade ao discurso.

*
            É graças a esse enfoque no enunciado tomado enquanto acontecimento que Foucault deve isolar o saber do resto da sociedade, sem, contudo, considerá-lo de forma ensimesmada, tal qual acima expusemos.

            O que há de novidade na aula inaugural, A ordem do discurso, são duas hipóteses. A primeira consta logo nas primeiras páginas:

(...) suponho que em todas as sociedades a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e terrível materialidade” (FOUCAULT, 2005 p. 9).

            A segunda, um pouco mais adiante, considera que o discurso não é neutro, não é desinteressado, mas está vinculado ao poder e ao desejo. O discurso não apenas manifesta ou esconde desejo: é objeto de desejo; não apenas descreve ou traduz as lutas e as dominações: é objeto de luta, luta-se para dominar o discurso.
                       
*

            Da primeira hipótese, uma série de conclusões. Há uma ordem do discurso, um regime discursivo que seleciona “quais discursos”: controle da produção, circulação e aplicação do discurso. No campo discursivo há, portanto, procedimentos de controle, os quais Foucault divide em internos e externos. Como estes últimos darão ensejo para a teorização de um regime de verdade, abordemos, em primeiro lugar, os procedimentos internos de controle.

            Os procedimentos internos de controle são exercidos pelos discursos sobre si mesmos, funcionando, marcadamente, “a titulo de princípios de classificação, de ordenação, de distribuição como se se tratasse, desta vez, de submeter outra dimensão do discurso: a do acontecimento e do acaso” (FOUCAULT, 2005a, p. 21). Foucault passa, então, a considerar diversos procedimentos, os quais citaremos de maneira quase sumária, dividindo-os, contudo, em princípios de coerção e de rarefação.

Procedimentos de coerção: são os procedimentos de controle da aparição do discurso, quer dizer, que fixam regras de surgimento e significação. O comentário: desnível entre os discursos que são proferidos e desaparecem e aqueles que são permanentes, quer dizer, que duram além de sua enunciação; estes dão ensejo a textos segundos, discursos que se acumulam sobre outros discursos e cuja novidade “não está no que é dito, mas no acontecimento de sua volta” (FOUCAULT, 2005a, p. 26), portanto, limitar o acontecimento aleatório do discurso por meio da repetição do mesmo. O autor: este entendido como principio de coerência, significação e agrupamento do discurso; ainda que móvel ao longo da história, nas sociedades contemporâneas o autor cumpre a precisa função de reduzir a multiplicidade do discurso á forma identitária do eu. A disciplina: trata-se de um corpo de proposições, regras, técnicas e métodos constitutivos de uma sistematicidade anônima; esta relação de sistema permite que se agrupe tudo que pode ser dito de verdadeiro ou aceito  sobre determinada coisa; a disciplina determina uma série de princípios restritivos (objetos, técnicas, conceitos, instrumentos) que determinarão a pertinência ou não de uma proposição a si; “a disciplina é um princípio de controle da produção do discurso. Ela lhe fixa os limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reatualização permanente das regras” (FOUCAULT, 2005a p. 36).

 Procedimentos de rarefação dos sujeitos: são aqueles que controlam não tanto as condições de aparecimento do discurso, mas, sim, de sua circulação, de funcionamento dos discursos. Ritual: qualificação dos sujeitos que falam, quer dizer, prescrição de posições, gestos, comportamentos e fixação dos efeitos que cada discurso terá. Sociedades do discurso: “cuja função é conservar ou produzir discursos, mas para fazê-los circular em espaço fechado, distribuí-los somente segundo regras restritas, sem que seus detentores sejam despossuídos por essa distribuição” (FOUCAULT, p. 39, 2005a). Rituais da palavra: trata-se de sociedades do discurso difusas, mais amplas, cuja função é também produzir discursos, mas de forma a não permitir a sua permutabilidade: são funções, como o escritor e o sistema que o apóia, ou formas prescritas ao discurso, como a do segredo técnico. Grupos doutrinários: se eles assemelham-se à disciplina pelas condições que exige (verdades comuns e regras de conformidade com os discursos válidos), a doutrina questiona o sujeito que fala a partir do enunciado, excluindo todo conteúdo inassimilável como heresia, justificando-se a partir da ortodoxia; o sujeito que fala, carrega o sinal de uma pertença prévia, que a doutrina questiona também. Apropriações sociais: trata-se da “maneira política de manter ou de modificar a apropriação dos discursos com os saberes e os poderes que eles trazem consigo” (FOUCAULT, 2005a, p. 44).

O regime de verdade
A primeira hipótese da Ordem do discurso é a de que existem procedimentos externos de controle do discurso, os procedimentos de exclusão. Aquele que Foucault aborda mais detalhadamente chama-se vontade de verdade, mas há outros, como a interdição e a separação/rejeição. Interdição: restrição de enunciação, quer dizer, “não se tem o direito de dizer tudo, que não se pode falar de tudo, em qualquer circunstância, que qualquer um, enfim, não pode falar de qualquer coisa” (FOUCAULT, 2005b, p. 9); três tipos principais de interdição: tabu do objeto, ritual da circunstância e privilégio ou exclusividade do sujeito que fala. Separação/rejeição: Foucault dá o exemplo do louco, que nada mais é senão aquele cujo discurso não deve circular, quer dizer, cuja materialidade de seu discurso deve, ao mesmo tempo ser seccionada das demais, rejeitada em um aparato de saber, constituído de uma rede de instituições, que escutam esse discurso, e lhe retira os poderes. 

Mas é a vontade de verdade que mais nos importa. Ela rege nossa vontade de saber desde o século VI a.C. Olhado por dentro, um discurso verdadeiro ou falso não guarda semelhança com os demais procedimentos de exclusão, pois estes devem ser arbitrários, dotados de aporte institucional; mas vista de fora, a vontade de verdade se mostra como um procedimento de exclusão: histórico, arbitrário e institucionalmente apoiado. Institucionalmente apoiado, pois há os sistemas de livros, de edição, as bibliotecas laboratórios, universidades, etc...; embora isto, o que reconduz a vontade de verdade é, sobretudo, a maneira pela qual uma sociedade aplica o saber: formas de valorização ou não, formas de distribuição de repartição, de atribuição. Encarada por estas vias, a vontade de verdade mostra-se como sistema de coerção: exerce, sobre os demais discursos, pressão e poder de coerção: os discursos buscam autorizar-se pelo discurso da verdade. Há séculos que a vontade de verdade só faz crescer; tanto é que outros procedimentos de exclusão – interdição, sujeição e rejeição – se orientam no sentido da vontade de verdade: esta os toma, os modifica, os reorienta, ao passo que ela mesma se fortalece e se torna, mais e mais, incontornável.

            Histórico, porque remete ao surgimento da filosofia platônica, à separação entre poder e saber no Ocidente, ao fim do sofista e ao surgimento da distinção verdadeiro / falso, que dará a forma a mais total de nossa vontade de saber. É a partir da separação entre saber e poder e da distinção — instituída pela filosofia platônica e pelo saber das testemunhas, próprio à prática judiciária grega — entre verdadeiro e falso que nossa vontade de saber tomará a forma que tem até hoje; forma geral, que funcionou historicamente como procedimento de exclusão do discurso.  Passou por diversas mudanças durante os séculos que nos separam de Platão, de Aristóteles, etc, mas não deixou, nunca, de funcionar como sistema de exclusão, como atestam aqueles que ousaram opor-se a ela.

            Por que se fala tão pouco dessa vontade de verdade? Desde os gregos, na verdade, desde Platão, o discurso verdadeiro não corresponde, não pode corresponder ao desejo e ao poder; a verdade existe, no mundo das idéias, imutável, é este mundo que é a corrupção das idéias; se a verdade não está em jogo, somente o desejo e o poder estão. A verdade não pode reconhecer que uma vontade a guia, portanto, mascara-a, e o faz de tal maneira, que a verdade aparece a nós como rica, fecunda, doce, universal. Por isso não a vemos como sistema de exclusão, tal como de fato ela se fez exercer.
            A vontade de verdade, que faz girar, em torno de si, os demais discursos, funciona como procedimento de exclusão. E isto porque, se em todas as sociedades há um regime de verdade. Na nossa, ocidental, este toma proporções imensas. Por regime de verdade devemos entender os discursos que funcionam como verdade, regras de enunciação da verdade, técnicas de obtenção da verdade, definição de um estatuto próprio daqueles que geram e definem a verdade; portanto ligação circular entre verdade e poder: poder que produz verdade e a sustenta, verdade que produz efeitos de poder. (cf. FOUCAULT, 2007c, p. 14).
            Esta concepção, que permite à Michel Foucault conceituar a verdade de um ponto de vista estritamente discursivo, toma esta como um “conjunto das regras segundo as quais se distingue o verdadeiro do falso e se atribui ao verdadeiro efeitos específicos de poder” (FOUCAULT, 2007, p. 13) ou como um “conjunto de procedimentos regulados para a produção, a lei, a repartição, a circulação e o funcionamento dos enunciados” (FOUCAULT, 2007 p. 14).
            Um regime de verdade ou, o que interpretamos como o mesmo, uma economia política da verdade indica as maneiras, os procedimentos de troca, de mudança, de atribuição, de produção, de incitação, de cessão, de constituição da verdade. Cinco características dessa economia em nossas sociedades: o discurso científico e as instituições que o produzem centralizam a verdade; esta é incitada constantemente pelos campos político e econômico; há um grande consumo e uma grande difusão da verdade; há grandes aparelhos de produção e difusão da verdade: universidades, exército, escritura, mídia; por último, ela é objeto de debates políticos e confrontos sociais.
*

Portanto, “por trás de todo saber, de todo conhecimento, o que está em jogo é uma luta de poder. O poder político não está ausente do saber, ele é tramado com o saber” (FOUCAULT, 2005, p. 51). O discurso deve ser analisado em termos de estratégia, em termos de guerra, de política, de interesse, como objetivo e meio de luta, mesmo porque, na constituição mesma do conhecimento, e, por conseguinte, do discurso está uma relação de força. Da mesma forma a verdade não existe fora das relações de poder, pois ela mesma é uma relação de poder, fruto de relações de poder, exercendo efeitos de poder. A verdade não só faz, integra as relações de poder como, ela mesma, é uma relação de poder.

2.3. O método: a genealogia
               A genealogia é um método inspirado em Nietzsche. A obra de Nietzsche analisou elementos os mais variados buscando estabelecer-lhes a genealogia, quer dizer, sua história não- metafísica. Dentre estas obras talvez a mais famosa seja a Genealogia da moral, na qual o filósofo alemão empreende uma pesquisa genealógica dos valores cristãos (como humildade, piedade, etc.) mostrando buscar sua origem, ligada ao modo de vida dos escravos de Roma, e seu desenvolvimento que somente pode ser pensado em relação ao poder que os sacerdotes adquiriram desde então. Nietzsche foca-se no corpo, na vivência dos escravos, submetidos pelos bárbaros germânicos, para mostrar como os valores não surgem fora do mundo, e depois caem do céu à guisa de pingos de chuva; ao contrário, os valores vêm dar sentido, vêm fundamentar determinados modos de vida. Portanto, colocar as coisas no mundo dos homens, pensá-las em sua própria história, através da análise documental que busque a vida, o corpo daqueles que viveram, e não as letras mortas nos livros (cf. NIETZSCHE, 2007).

               O genealogista não se contenta com o azul dos sonhos metafísicos, com aquilo que se diz desde sempre dado; a genealogia, diz Nietzsche prefere “o cinza, isto é, a coisa documentada, o efetivamente constatável, o realmente havido” (NIETZSCHE, 2007, p. 13). A genealogia é um método, portanto, que busca saber, na acepção dada pelo filólogo-filósofo, o valor dos valores, o peso próprio, a real importância, a origem e o contexto da origem dos valores; não qualquer saber: deve-se demonstrar documentalmente, para não ficar na mera verborragia bíblica.

               Todos estes elementos são resgatados por Foucault em seu famoso texto, Nietzsche, a genealogia e a história. Em se tratando de um método de análise histórica, a genealogia funda-se na análise de documentos, conforme o dito, que situa as coisas na história de forma anti-metafísica. “A genealogia não se opõe à história como a visão altiva e profunda do filósofo ao olhar de toupeira do cientista; ela se opõe, ao contrário, ao desdobramento meta-histórico das significações ideais e das indefinidas significações. Ela se opõe à pesquisa de 'origem'” (FOUCAULT, 2007c, p. 16). Em alemão há, ao menos, três palavras para origem: Ursprung, Entestehung e Herkunft.
           
            Ursprung é origem no sentido de essência metafísica, sendo que uma pesquisa deste tipo busca o fundamento originário das coisas, anteriores ou mesmo fora da história. É a esta “origem” que a genealogia se opõe.

            Lendo Nietzsche, Foucault interpreta que o genealogista não deve buscar a essência das coisas, porque nada tem essência – o que é indicado por este nome foi construído pouco a pouco, por acidentes externos as coisas; é que “o que se encontra no começo histórico das coisas não é a identidade ainda preservada da origem – é a discórdia entre as coisas, é o disparate” (FOUCAULT, 2007c, p. 18). Não existe uma verdade tal querem os platônicos; não existe nenhum eidos. O genealogista compreende que “a história com suas intensidades, seus desfalecimentos, suas grandes agitações febris, com suas síncopes, é o próprio corpo do devir. É preciso ser metafísico para lhe procurar uma alma na idealidade longínqua da origem” (FOUCAULT, 2007c, p. 20), é preciso ser metafísico para empreender uma pesquisa de Ursprung.

             Por isso, o objeto da genealogia é indicado mais fidedignamente pelas palavras alemãs Herkunft e Entstehung, que, ainda que ordinariamente traduzidas por origem, tal como Ursprung, indicam, mais exatamente, outras coisas.

            A melhor tradução para Herkunft é “proveniência”, pertencimento a um grupo, povo, clã ou tradição. Trata-se de fazer aparecer o acontecimento que permitiu a formação de um conceito ou caráter; portanto, em dissociando o que hoje se dá, pesquisar o que se perdeu. Sem nenhum traço evolucionista, a Herkunft quer “descobrir que na raiz daquilo que nós conhecemos e daquilo que nós somos – não existem a verdade e o ser, mas a exterioridade do acidente” (FOUCAULT, 2007c, p. 21). Pesquisa de herança, das falhas, da heterogeneidade, da instabilidade, que dissocia o que é dado como uno. Como é em um corpo que as marcas se inscrevem, que os acontecimentos se fazem sentir, é justamente na articulação entre corpo e história que a Herkunft se situará.

            Quanto a Entstehung, a melhor tradução seria “emergência”: análise do ponto e da lei de surgimento de algo. “A genealogia reestabelece os diversos sistemas de submissão: não a potência antecipada de um sentido, mas o jogo casual das dominações (...) [e é por isso que] a emergência se produz sempre em um determinado estado das forças” (FOUCAULT, 2007c, p. 23). Portanto, a análise da Entestehung deve mostrar o combate entre as forças ou o meio pelos quais elas buscam se perpetuar quando já decadentes. A Entstehung se dá na distância entre as forças em combate, pois não existe emergência que não se dê no âmbito da luta entre dominadores e dominados. Se a dominação é histórica, alterando-se na história, ela sempre “impõe obrigações e direitos; ela constitui cuidadosos procedimentos. Ela estabelece marcas, grava lembranças nas coisas e até nos corpos; ela se torna responsável pelas dívidas” (FOUCAULT, 2007c, p. 25); a dominação estabelece regras, que são a violência da guerra na qual tudo está imerso; é por meio de regras que se violenta aqueles que violentam, e serão os mais astutos aqueles que souberem usar as regras contra quem as inventou; neste sentido, a interpretação das regras liga-se ao devir da humanidade: ele próprio nada mais é senão uma série de interpretações. A genealogia deve fazer aparecer as sucessivas interpretações que vincaram as coisas; deve mostrar os sentidos que se fizeram pesar sobre os diversos procedimentos, sobre os diversos corpos, sobre as coisas todas do mundo, pois qualquer coisa pode ser tomada objeto da genealogia: tudo tem uma história, que lhe é idiossincrática.

            A genealogia é método histórico anti-metafísico que visa mostrar a proveniência e a emergência das coisas, através da dissociação das unidades naturalizadas. Contrastar as diferenças, mostrar as forças em jogo em cada menor coisa, expulsar os interesses de suas tocas, eis o que faz o genealogista. Quebrando as unidades, Foucault também quebra o telos, as finalidades, terminando por opor o homem, os homens, entre si, ou seja, vincando as diferenças, salienta-se a historicidade das coisas – de todas as coisas, até mesmo daquelas que se mostram as mais naturalizadas.
*
            Neste ponto, devemos fazer uma observação sobre o percurso teórico de M. Foucault. Até A ordem do discurso, 1970, a obra de Foucault é marcada pela análise do campo discursivo, isolado em si mesmo, ou antes, da análise da fronteira entre o discursivo e o não- discursivo; é que discurso é o nome dado ao saber no que há nele de mais físico: a fala, a escrita; queremos dizer, assim, que o filósofo de Poitiers tomava como possível um recorte analítico que se debruçasse sobre o discurso sem levar em conta outros aspectos, como aqueles sociais, políticos, econômicos, etc, mas, também, sem achatar o discurso sobre si mesmo; trata-se de analisar o limiar entre discursivo e o não-discursivo.

            É graças a esse enfoque no enunciado tomado enquanto acontecimento que Foucault deve isolar o saber do resto da sociedade, sem, contudo, considerá-lo de forma ensimesmada, tal qual acima expusemos. A genealogia é, assim, um deslindar da arqueologia; ao passo que o discurso continua sendo o foco, busca-se mostrar seu caráter político. Ou seja, ligam-se os sistemas e as regras de formação às disputas de poder entre os homens: às urgências históricas, as guerras, aos projetos políticos, etc. O genealogista como que dá um passo além, em relação ao arqueólogo desde nossa interpretação: se o arqueólogo considerava o discurso, limiar entre o saber em forma e em ato, o genealogista aumenta esta fronteira: mostra como todo fato discursivo, como todo fato epistêmico é, simultaneamente, fato político.O genealogista aborda o fato discursivo como acontecimento, mas acontecimento político, que vem responder às injunções do poder. É na intersecção entre saber e poder, entre discurso e política (interesse, desejo, cf. FOUCAULT, 2005a) que se deve buscar as verdadeiras regras de formação, o real significado epistêmico das teses e seu real fito.

            Neste sentido, tanto As palavras e as coisas, o grande livro arqueológico de Foucault, quanto Vigiar e punir, a grande obra da genealogia foucaultiana, ambas abordam o mesmo objeto, a partir de vieses diferentes. Naquele, considera-se como foi possível o objeto de saber homem, como as ciências humanas foram possíveis; mas o foco são as articulações discursivas: quais problemáticas propriamente epistemológicas, quais as mudanças na estrutura mesma do saber – chamada por Foucault de epistemê – tornaram possível o homem enquanto objeto de algo como uma série de ciências que nós chamamos Humanidades, fazendo com que ele emergisse, ao mesmo tempo, como sujeito (cf. BRUNI,1989, p. 199-200).

            Em Vigiar e Punir trata-se da mesma coisa em se tratando de outra. O objetivo é, também, mostrar como foi possível que um setor das ciências se focasse sobre esse objeto emergente, o homem. Mas todas as diferenças são observadas. É partir da disciplina que Foucault levará a cabo essa análise, mostrando como o homem tornou-se objeto e sujeito a partir de uma série de mecanismos de poder postos em funcionamento pela máquina emergente da sociedade industrial. Foi como espelho de um projeto de domesticação que as ciências humanas foram tornadas possíveis.

             No curso O poder psiquiátrico, Foucault conta, entre as transformações advindas com a industrialização, a formação de um tipo de relações de poder chamado poder disciplinar ­– esboço daquilo que Foucault desenvolverá mais apuradamente em Vigiar e Punir. A disciplina organiza aparelhos de apropriação total do tempo, dos corpos e das condutas, de forma a submeter os homens a mecanismos contínuos de vigilância e registro do comportamento. Estabelece-se uma norma, que deve ser posta em jogo por meio do exercício, que cria, faz surgir, engendra um corpo ou comportamento. Quando constatado elementos desviantes em relação ao normal, faz-se rodar medidas corretivas, medidas de punição. O objetivo da disciplina é, em último caso, anular-se a si mesma, já que ela busca criar um corpo, quer dizer, dispensar os elementos disciplinadores. A sociedade industrial fez surgir uma rede de aparatos disciplinares que se completam entre si. Os mecanismos da disciplina são intercambiáveis e articuláveis, já que as relações que uns e outros exercem ao invés de se excluírem se complementam em sua diferença.

            O indivíduo não é originário: ele emerge como realidade no final do século XVIII, como conseqüência do desenvolvimento do capitalismo e dos mecanismos disciplinares. Por meio destes, procedeu-se a acumulação de homens, correlata historicamente necessária à acumulação de capital: distribui-se a multiplicidade da força de trabalho, se lhe torna utilizável na multiplicidade dos homens, aperfeiçoando-a. Por isso a disciplina emerge exatamente no momento da constituição da sociedade industrial. Quando de então, o indivíduo era tematizado sobre duas formas predominantes, ou indivíduo jurídico ou indivíduo histórico. É da junção entre estas tematizações e dos aparatos disciplinares que emergirá as ciências humanas.

               É que os mecanismos disciplinares tornam cada corpo, considerado separadamente, um sujeito, pois é por meio da atomização somática que a vigilância, o registro, a punição, a dicotomia normal-anormal opera. Poder disciplinar: “uma série constituída pela função-sujeito, a singularidade somática, o olhar constante, a escrita [dos comportamentos] o mecanismo de punição infinitesimal, a projeção da psique e, finalmente, a divisão normal-anormal” (FOUCAULT, 2006, p. 69). Em seu exercício, a disciplina cria uma individualidade, uma psique. São estes elementos conjugados que tornaram possível historicamente a constituição de algo como uma ciência do homem.

            A ciência clássica realizava classificações diante da multiplicidade do mundo empírico – já se tratava de expressão da verdade-demonstração. A acumulação de homens desenvolveu outra forma de operação, também fundada na verdade-demonstração, que é a tática: distribuição de singularidades de modo a maximizar a eficácia produtiva de singularidades; novamente, é da tática, e das questões que ela suscita que emergem as ciências humanas.
             
*
               Fizemos breve exposição do método arqueológico que pode ser resumido, em poucas linhas, como um método de pesquisa de história do pensamento, que busca desvelar e descrever as formações discursivas, constitutivas de discursos, grupos articulados de enunciados, que são, por sua vez, acontecimentos, ou seja, são singulares — tem seu tempo e seu espaço.

               A genealogia acrescenta elementos às análises arqueológicas, em articulando saber (discursivo) com o político, tornando o saber resultado-objeto das guerras sociais, que envolvem a tudo e a todos. Assim, ainda que se trate de um mesmo projeto, de análise histórico-epistêmica do saber, a genealogia inova ao mostrar como o saber responde à urgências históricas, à interesses determinados; a genealogia mostra como as relações de poder engendram saber, discurso, massa documental, seja em decorrência de seu próprio exercício, seja como condição de sua existência.

               Em suma, a genealogia é um método de análise histórica de um conceito, de um corpo ou de um caráter, que busca mostrar a proveniência e a emergência destes no âmbito da luta entre dominadores e dominados, articulando a constituição de formas de saber com o exercício do poder. Vigiar e Punir, por exemplo, é a análise da proveniência da disciplina e da emergência de suas formas contemporâneas em escolas, prisões, asilos, exército, etc., que levou a constituição de uma série de ciências conhecidas como Humanidades. Como a genealogia sempre supõe a luta entre dominadores e dominados, cumpre dissolver as unidades (esculpidas pacientemente pelos dominadores) para mostrar a baixeza (“o que há de humano”) da proveniência e da emergência – aquilo que foi intencionalmente apagado seja do campo do poder seja do saber.


















3. A situação desta pesquisa: Observações metodológicas e analíticas Observações metodológicas e analíticas
           
            Nosso objetivo inicial com este projeto era cobrir o período que iria desde o principio da modernidade — quando seus principais elementos são dados — até quando os primeiros discípulos de Freud começam a traçar seus próprios caminhos, um tanto quanto distintos de seu mestre vienense. Pretendíamos aplicar a mesma genealogia, utilizando a obra de Foucault como linha mestre e fonte última, mas, ao mesmo tempo, incluir novos elementos, articulando, pois, uma genealogia plena das ciências da vida e da saúde.

            Teríamos, pois, quatro períodos a cobrir, quer dizer, quadro séries distintas no quadro estes estudos. A primeira cobriria um período pré-psiquiátrico da loucura, desde o fim da Idade Média até o gesto fantasioso onde Pinel teria rompido as cadeias dos loucos de Bicêtre. A segunda série deveria cobrir o período francês deste novo sentido aplicado a loucura, desde o tratamento moral até, aproximadamente, os dois trabalhos que apontam para o fim desta era: Charcot e Morel. O terceiro deveria cobrir a saída de cena da médécin mentale, com sua metodologia confusa, para a aparição das duas grandes figuras da psichiatrie alemã, a primeira maior que a segunda: E. Kraepelin e R. Krafft-Ebing. Por fim, deveríamos englobar esta psicopatologia nova, surgida da intersecção dos trabalhos de Charcot, e seu sussurro sexual da origem das afecções ,e com a preocupação de origem de Kraepelin: Sigmund Freud. Fechando nossa pesquisa, acompanharíamos seu trajeto até algumas escolas dissidentes, como Reich, Jung e Fromm. Com isto, teríamos empreendido uma série dentro de um quadro geral, mais amplo, da biopolítica.

            Contudo, o caráter de nossa metodologia tornava impossível esta pesquisa. Em fato, uma pesquisa genealógica implica uma dupla analítica que, na caneta do pesquisador, reencontram-se: uma de caráter epistemológico, no campo do sentido; outra de caráter político-histórico-social, pesquisa de procedimento. Portanto, tivemos de reorientar nossos estudos, e isto, pois, por motivos:

            1. metodológico; pois a genealogia nos requereria uma bibliografia consideravelmente mais ampla e que desse conta de um amplo espectro;
            2. epistemológico; já que, para empreender uma epistemologia política faz-se necessário um amplo conhecimento do campo que ora queda como objeto da série;
            3. sociológico; que envolveria o rigoroso conhecimento das sociedades francesa e alemã do período, dificultado pelo fato das agitações, revoluções e dos fervilhamentos pelos quais passavam estas sociedades no período. Em suma, uma sincronia diacrônica poderosa.
            4. histórico: teríamos de colocar estas distintas perspectivas dentro de um rigoroso marco histórico, que, apesar das distintas músicas pelas quais bailam as teorias e as práticas, conseguisse lhes achar o compositor comum. Quer dizer, uma diacronia precisa que fizesse vir a tona o dispositivo ou, antes, a série de dispositivos envolvidos.

            Estes pontos implicariam uma análise bibliográfica de muito vulto afim de empreender uma pesquisa plena. Assim, tivemos de cortar partes, realocar documentos, abrir a gaveta para que outros esperassem o momento certo de adentrar esta marcha teórica. Nosso período diminuiu em dois, deixando Freud e os seus para uma pesquisa futura, ao mesmo tempo em que muitos textos, fundamentais para uma analítica completa, não puderam entrar nesta genealogia. Também sentimos a mais plena necessidade de incluir um texto explicativo sobre a psiquiatria e o que os próprios psiquiatras dizem de si. Com ele, impediremos que outros passem pelas dificuldades que passamos, e, ao mesmo tempo, permitiríamos que, enquanto falamos de psiquiatria se saiba em fato o que queremos dizer.

            Assim, o que é este trabalho? Diante de nossa explicação, muitos pensarão que se trata de um monstro horrível e que, talvez, na hora da leitura encontrarão passagens e, quem sabe, até mesmo capítulos inteiros, onde a perna que se deixou de fazer fará falta, ou onde a cabeça prematura confundirá o azul com o vermelho, contrastando e fazendo vir a tona o contrário do que deveria ser.

            Não está assim. Este trabalho buscou estabelecer notas para a genealogia da psiquiatria e da psicanálise. Bem dito: elaboramos algo cujo melhor nome não pode ser outro senão notas. Notas para a genealogia de um grupo de ciências ou, antes, como preferimos, notas para a epistemologia política das ciências da vida e da saúde. São elas que seguem.





















4. Para compreender a psiquiatria

4.1. A psiquiatria (para os psiquiatras)
         Os psiquiatras consideram que a doença mental é um fato do mundo: ela não varia de acordo com as sociedades, tampouco as distintas culturas influenciam o modo como ela há de se dar. Não: lidando com o fato complexo da doença mental — substrato comum de todas as escolas psiquiátricas —, decorrem também teorias complexas e heterogêneas, fruto de tendências e autores distintos. Todas postulam, contudo, que doença mental, que ela, sob as camadas meramente lingüísticas do nome, permanece igual, indistinta desde que existe, desde que raiou sobre o mundo o animal que faz promessas.

            Pretende-se uma ciência ou um discurso cientifico (intersecção de saberes científicos de origens diversas) unificada por seu objeto, a doença mental. Assim, a psiquiatria elabora teorias a fim de organizar, com fins epistêmicos e médicos, a complexidade do real, na verdade, de uma realidade, o doente mental, que a psiquiatria instrumentaliza por meio de conceitos visando elaborar uma terapêutica — pois a psiquiatria é um ramo da medicina.

            A psiquiatria não interpreta a doença mental enquanto fato místico ou religioso. Ela é um discurso científico sobre fatos mentais patológicos. Costuma-se confundir o anormal com o patológico: o anormal refere-se ao desviante em relação a uma regra, enquanto que o patológico refere-se a uma patologia. O anormal pode ser estabelecido a partir de métodos quantitativos de ocorrência de determinados fenômenos; o patológico diz respeito a emergência de uma nova racionalidade, diz respeito a um desvio na vida do individuo — portanto, uma patologia, ou, em nosso estudo de caso, uma psicopatologia, estabelece esta divisões e delineia o que distingue o louco do são. O patológico é, enfim, qualitativo.

Leriche (1878-1955): “[a saúde é] ‘a vida no silêncio dos órgãos’ enquanto o patológico implica sentimento concreto de sofrimento e impotência” (apud  GRANDINO; NOGUEIRA, 1985, p. 11).  O sofrimento, contudo, não define a patologia, pois existem patologias assintomáticas, outras que não provocam nenhum sofrimento e algumas que o provocam. A doença é, pois, entendida de maneira geral como esta alteração de racionalidade, como um rearranjo dos elementos da psique que, dependendo de suas características, levarão ao desenvolvimento de distintas patologias.

            As doenças são idéias desenvolvidas pelos médicos para compreender e tratar processos patológicos; ou seja, trata-se de conceitos operacionais. A causa, a etiologia de uma doença, é composta de inúmeros fatores, e o que determina algo como um nome é a repetição das formas de seu aparecimento, portanto, uma constância. Nas doenças mentais, ao contrário das orgânicas, as formas de aparecimento não são tão claras; as doenças mentais são produzidas por condições de vida particulares, embora sua sintomatologia seja estereotipada. Diagnóstico é o nome de um agrupamento de sintomas; um conjunto de diagnósticos tem por nome nosografia, e seu estudo de modo, digamos epistêmico, tem como epíteto a alcunha de nosologia. A busca pela cura da doença, com todos os processos que implica, é chamada de terapêutica.

A terapêutica

Inúmeros recursos terapêuticos foram desenvolvidos na história da psiquiatria. Por exemplo, os hospitais psiquiátricos. Atualmente, eles não são como os asilos dos séculos precedentes, mas clínicas comuns. Indica-se a hospitalização somente em casos agudos; a internação deve ser breve, pois o hospital não é, atualmente, depósito de gente. Hoje em dia a internação deixou de ser compulsória tornando-se, pois, voluntária — esta era uma das reivindicações daquele movimento que se convencionou chamar de antipsiquiatria. Com o tempo, entre o não internamento e o internamento desenvolveu-se uma série de recursos intermediários que o hospital pode oferecer: pensão protegida, quando os pacientes residem próximos ao hospital; hospital-dia, o paciente passa o dia em tratamento e retorna à noite para casa; hospital-noite¸ o próprio hospital é o dormitório; e ambulatório psiquiátrico, consultas periódicas de reavaliação.

            Na atualidade, os principais ramos da terapêutica são: a psicofarmacologia, os tratamentos de choque e as psicoterapias.

Psicofarmacologia
Por volta da década de 50 desenvolve-se a psicofarmacologia, nome do ramo da farmacologia que estuda as drogas que atuam no sistema nervoso central, modificando as funções mentais por meio de substâncias nomeadas de psicotrópicos: os barbitúricos foram sintetizados em 1913 e ametilanfetamina em 1938; contudo, embora seu uso terapêutico, somente com a clopromazina, na segunda metade do século XX, as substâncias psicotrópicas ganharam importância psiquiátrica.

Dentre inúmeras classificações, a de J. C. Madalena (apud GRANDINO; NOGUEIRA, 1985), para o qual existem seis grupos de psicotrópicos:

 1. Ataráxicos, que atuam sobre manifestações psicóticas em geral; seu principal grupo é o dos neurolépticos (efeitos: indiferença, controle das agitações e excitações, ação subcortical, influência nos delírios e alucinações), recomendados em casos de agitação motora, delírios, alucinações, manias, manutenção de períodos assintomáticos e contra a insociabilidade.

2. Tranquilizantes: atuam sobre a ansiedade,comum em estados neuróticos; a principal família é dos benzodiapezínicos (efeitos: queda da tensão e da ansiedade; sonolência; ação depressora sobre o sistema límbico; ausência de ação nos fenômenos psicóticos).

3. Antidepressivos: para a psiquiatria depressão “é um estado patológico caracterizado por inibição das funções psíquicas e restrição do campo existencial” (GRANDINO, NOGUEIRA, 1985, p. 43); os antidepressivos combatem este estado; dividem-se em dois tipos: timerépticos (ação antidepressiva unida a ação desinibidora) e os timolépticos (regulam o humor); são estimulantes, anti-hipnóticos e invertem o humor depressivo; sua atuação é eficaz somente em casos de depressão endógena,i.é,sem fatores externos com doenças.

4. Hipnossedativos: induzem ao sono; podem ser hipnóticos ou euípnicos; dentre os primeiros, os barbitúricos, que inibem o sistema nervoso central; dentre os últimos, derivados de benzodiazepnícos, miorrelaxantes; atualmente prefere-se os euípnicos, pelo número menor de efeitos colaterais, menor ação sobre sistemas vitais, e menor índice de dependência.

 5. Anticonvulsivos: muito heteróclitos quimicamente para serem descritos, sua ação fundamental é controlar as manifestações paroxísticas da epilepsia, sendo a mais notável a convulsão tônico-clônica.

6. Psicodislépticos: alteram a percepção em favor de um estado de “estar acordado”; seus efeitos são múltiplos e, devido a isto, seu uso terapêutico é escasso, restrito, sobretudo, à diminuição de algumas aminas biogênicas (como serotonina e dopamina).
           
Os psiquiatras avaliam, ao menos nas fontes que nos consultamos, que os psicotrópicos melhoraram a ação psiquiátrica, possibilitando o atendimento ambulatorial e o controle de inúmeros sintomas. Eles permitiram, também, uma melhor compreensão dos fundamentos biológicos das doenças, e a emergência de novas preocupações como a relação corpo-mente.

A psicofarmacologia marca a abertura de um novo período da história da psiquiatria, onde aquela de cunho anglo-saxã desbancará a psiquiatria alemã, dominante desde os trabalhos de Kraepelin e Krafft-Ebing. A partir da utilização da clorprocacina no tratamento da esquizofrenia (1952), dos derivados iminodibencilo como arma contra os sintomas depressivos (1950), os barbitúricos — até então vivamente recomendados — caem por terra e abre-se a porteira: toda uma nova série de substâncias são ministradas aos loucos, como a reserpina e as butirofenonas (neurolépticas) e os tioxantenos. Em breve inúmeros antipsicóticos terão sido desenvolvidos e hoje muitos psiquiatras questionam os efeitos da farmacologia na psiquiatria, especialmente o aumento do leque de comportamentos patologizáveis e patogênicos; questiona-se mesmo se, com isto, o sonho moreliano de algo como uma sociatria, medicina do corpo social (cf. CAPONI, 2009, p. 425-6, e também, CAMPAILLA, G., 1982, p. 343-368), não estaria se tornando mais e mais realidade.

A utilização dos fármacos está ligada não somente a uma nova sociedade na qual uma vida acelerada requer tratamentos acelerados, e onde mecanismos brutais de normalização, postos em jogo por inúmeras instituições, discursos e práticas, pressionam o individuo a um controle interno rigoroso — Foucault nos descreve este mecanismo muito bem em Vigiar e Punir e em O poder psiquiátrico. Os psicofármacos são recomendados porque, do ponto de vista psiquiátrico, funcionam. Os fármacos fazem cessar o sintoma. Tarda, um (ou uma?) psiquiatra, cita algumas vantagens: não sedam necessariamente o paciente para serem efetivos, acabam ou atenuam os sintomas, alguns (como os antipsicóticos) não levam a dependência e a tolerância desenvolve-se somente com efeitos secundários, além de haver baixa letalidade em sua utilização (ENGUIX, s/d, pp. 1320-1353).

Para uma compreensão epistemológico-politica da psicofarmacologia, contudo, não devem nos enganar: o fim da sociedade de massas fordistas tem, como uma de suas marcas, a emergência de mecanismos de controle muito mais sutis. Contra aquela psiquiatria dos asilos enormes, contra a polícia psiquiátrica, e todas as conseqüências — e resistências — políticas que dele advinham, os novos métodos sutis de psiquiatrização da conduta e, mais importante, a auto-psiquiatrização do próprio comportamento. Assim, esvazia-se a crítica antimanicomial, ao menos se tomada nos termos de luta contra a instituição, o que não parece ser o caso do movimento antimanicomial contemporâneo[1]. Mas, se o manicômio diluiu-se em mecanismos de subjetivação — muito distinto do cinza dos manicômios, com seus pisos de um verde que enlouquecem qualquer um e tetos altos que isolam no isolamento—, bem, esta luta torná-se um tanto mais difícil.

Os tratamentos de choque

            É muito difundida a imagem segundo a qual teria sido o regime de Mussolini que inventou o tratamento de choque, o que é somente meia-verdade. O tratamento de choque deve ser inscrito naqueles grandes debates, muito antigos na psiquiatria (desde as teses de Bayle, ao menos[2]), acerca da etiologia da patologia — se biológica ou psicológica, de onde decorreria, por uma lógica frouxa, que a terapêutica deve ser ora biológica ora psicológica, respectivamente[3]

            Os tratamentos de choque contam-se dentre aqueles biológicos: assumindo uma doença sediada no cérebro, também os tratamentos devem aplicar-se aqui. Nos grandes debates localizacionistas, Bayle sem dúvida ocupa um papel fundamental. Ao descrever a aracnoidite crônica[4] como vetor para a paralisia geral, ele iniciaria toda uma série de pesquisas que iriam se interrelacionando até que Noguchi e Moore descrevessem, em 1913, a origem sifilítica da paralisia geral, agora denominada demência sifilítica — e cuja história passa pela descoberta do Treponema pallidum como vetor da sífilis, em 1905, por Schaudinn; pela prescrição de métodos piréticos contra a sífilis, por K. Landsteiner; e pela invenção do método do soro fisiológico como instrumento de diagnóstico da doença, elaborado por Wasserman em 1908.
           
            Desde há muito, desde Hipócrates, os tratamentos piréticos eram indicados, juntamente com outros procedimentos de choque — como convulsões e traumatismos cranianos — para tratar a loucura: não nos esqueçamos dos banhos alternados, das duchas circulares, das cestas de vime, das camisas-de-força, da estrapada, etc. Ao mesmo tempo, muitos psiquiatras defendiam, com base em estatísticas clínicas, que havia uma incompatibilidade entre muitas doenças mentais e as convulsões, conforme veremos.

            A partir deste solo epistemológico fecundo, J. Wagner Jauregg iniciará a moderna malarioterapia[5], contaminação intencional dos doidos com malária a fim de provocar-lhes febres, que tinham um valor terapêutico positivo. Se há muito já eram prescritos os tratamentos piréticos, a diferença consiste em que, durante o ano de 1917, este jovem médico vienense inoculou malária extraída de soldados da Grande Guerra no corpo de alguns loucos, diagnosticados como dementes sifilíticos, doença bastante comum naquele período.

Jaregg abria, pois uma série histórica que desembocará diretamente no eletrochoque. Sua malarioterapia, amplamente difundida no mundo (utilizada no Brasil, inclusive[6]), com seus resultados terapêuticos tidos como positivos, malgrado fossem apenas de caráter sintomatológico (como se postulará mais tarde), colocam a psiquiatria biológica na vanguarda dos tratamentos, em detrimento, pois, da psicoterapêutica, freudiana ou não.

Deste modo é que Sakel encontrará terreno livre para tratar uma mulher viciada em morfina com insulina, em 1927, obtendo resultados animadores. A técnica de Sakel utilizava as recentes descobertas (1921) acerca da insulina (seu isolamento; a descoberta de suas funções no organismo) com o objetivo de provocar hipoglicemia em seus pacientes, levando-os, pois, ao coma, a febre e as convulsões, estas últimas descritas como recursos terapêuticos, tal qual vimos. Aplicando seu método na esquizofrenia, Sakel o descobriu brutalmente eficaz no controle dos doidos, o que popularizou sua técnica quase que imediatamente, no mundo todo. Não se pode perder de vista que a esquizofrenia era, então, um dos carros-chefe da problemática psiquiátrica, tendo assumido este papel desde os trabalhos de Kraepelin[7].

            Na direção rumo ao eletrochoque, outro psiquiatra contribuiu bastante; trata-se de L. von Meduna, húngaro — curiosamente, a Hungria vivia uma forte ditadura protofascista no período — que, por meio de estudos estatísticos postulou que a ocorrência de epilepsia impossibilitava a ocorrência de esquizofrenia. Assim, Meduna passa a elaborar testes clínicos visando encontrar uma substância que levasse a convulsões, concebidas em um sentido, dizia, terapêutico. Neste caminho, Meduna testou inúmeras substâncias, como a cânfora (1934), estricnina, tebaína, pilocarpina e pentilenotetrazol (metrazol ou cardiazol), por meio de injeções intramusculares, por vezes associadas ao uso de insulina.

            Meduna conseguiu o que queria quando procedeu por meio de injeções intravenosas de metrazol, que levavam a convulsões rápidas e violentas. Comunicando seus achados em 1937, a comunidade psiquiátrica se dividiu entre o choque insulínico e o choque por metrasol: o primeiro mais caro, trabalhoso (9h de internação!!!) e com poucos efeitos colaterais, era, contudo, mais controlável que o choque por metrasol (47% de casos de fraturas espinhais! Tamanha a violência das contrações)[8]. E. Bennet, 1940, buscou contornar este problema combinando metrazol com curare (paralisante que bloqueia a ação da acetilcolina) e, depois, com escopolamina e curare, visando sedar os pacientes.

O metrazol acabou se mostrando mais eficiente que a insulina somente em casos de psicoses afetivas — o eletrochoque mostrou-se o mais adequado para os casos de esquizofrenia. Seu desenvolvimento está ligado ao trabalho de Cerletti, que havia se convencido que, malgrado sua utilidade terapêutica, o metrazol tinha muitos inconvenientes, como a incapacidade de controlar as convulsões e o medo que os pacientes tinham dele. Sendo especialista em epilepsia, já havia utilizado eletrochoques em animais para provocar crises epilépticas. Ajudado por L. Bini e L. B. Kalinowski terminou por desenvolver um novo invento para utilizar o eletrochoque em humanos — havia nascido esta técnica que tanto sucesso fez nos asilos.

            O método de Cerletti-Bini, como ficou conhecido, produzia amnésia retrógrada (o que levava os pacientes a não temerem a terapia) e permita um controle e segurança maior, apresentando baixas taxas de mortalidade. Aos poucos se passou a utilizar, conjuntamente com ele, o curare e a escopolamina, substituindo, assim, as terapêuticas pautadas na insulina ou no metrazol. O método Celetti-Bini também se mostrou eficaz, especialmente no tratamento de distúrbios afetivos, o que o levou a hegemonia dos tratamentos de choque, mesmo diante de outros novos, como indução pirética por microondas, anóxia[9] cerebral induzida pela inalação de oxigênio-hidrogênio e crioterapia[10].

Progressivamente vozes se insurgem contra o eletrochoque. Seu uso era compulsório, independentemente da vontade dos loucos, além do que, se a própria criação do método sob um regime fascista já levaria os mais desconfiados a criticas, a prática psiquiátrica e os relatos dos pacientes davam conta de sua utilização estritamente disciplinar, ao contrário do que afirmava publicamente nossos dottores[11]. Afinal, quantas enfermarias não foram tomadas pelos boçais[12]?

Se é verdade que as criticas, sobretudo dos movimentos por direitos humanos e antimanicomiais[13], fizeram recuar a utilização do eletrochoque, ainda há quem a recomende. Rebatizada de eletroconvulsoterapia (ECT), diz-se dela como uma terapêutica efetiva para algumas afecções graves, como: depressão, catatonia, mania, esquizofrenia. A própria associação mundial de psiquiatria faz jus a sua história e a faz vivas loas ao método[14], descrito como eficaz e, mesmo como mais eficiente em alguns casos!

            Para concluir esta breve exposição sobre a terapêutica de choque, devemos ser justos com o produto nacional, com a mais pura flor tupiniquim da medicina psiquiátrica:

“Pacheco e Silva [sucessor de Francisco Franco da Rocha como diretor do Juquery], por exemplo, refere-se orgulhosamente a uma descoberta cientifica de Franco da Rocha, quando uma paciente ‘melancólica ansiosa’, ao irritar suas companheiras de pavilhão, sofreu uma violenta paulada na boca do estômago, acordando ‘curada’ do coma decorrente da pancada: estavam lançadas as bases da futura traumaterapia, tornando Franco da Rocha — segundo as palavras de seu sucessor— um ‘precursor das modernas terapias de choque’” (CUNHA, 1988, p. 98)

As psicoterapias
            Por fim, devido aos trabalhos ligados ao mesmerismo, ao bradismo, à hipnose[15], ao método catártico — sintetizados por Freud na talking cure[16] — veio ao mundo a psicoterapia. Esta consiste em terapêuticas que se desenrolam somente por meios psíquicos; ela distingue-se dos métodos farmacopsicológicos, pois o efeito destes é fundamentalmente oriundo de ação metabólica de seus componentes químicos. A psicoterapia é um conjunto de métodos de saber acessíveis por diversos meios; dentre elas conta-se a terapia comportamental de B. F. Skinner, o psicodrama,de J. L. Moreno; as terapias bioenergéticas, inspiradas em Reich, dentre outras.

            Dentre todas as psicoterapias, a psicanálise é a mais difundida e estudada. Após superar a utilização da hipnose como método — desenvolvida por J. Breuer sob o nome de método catártico —, a psicanálise teve um desenvolvimento teórico-metodológico que permitiu sua autonomia frente à psiquiatria. O analista não descreve remédios: ele somente propõe-se a ouvir e intervir ocasionalmente. Este método simples faz vir à tona conteúdos inconscientes, primeiramente disfarçados, esperando para serem decifrados. Aos poucos, conforme o paciente faz emergir o censurado, a verdade tende a se sobrepor sobre os elementos de repressão.
*
Vejamos como se dá a prática psiquiátrica. O estudo de um conjunto de sintomas determinado serve de guia para a elaboração do diagnóstico, variável conforme o estágio de conhecimento em que se encontra o médico. Médicos diferentes podem fazer análises distintas dos sintomas, elaborando diagnósticos distintos, embora ambos visem à objetividade. É o diagnóstico que permite se descubra a natureza da doença e os meios mais eficientes de tratá-la.

            Em relação à cronificação da doença, hoje a psiquiatria postula que a internação prolongada somente contribui para este fato. Por isso, ao contrário do que ocorria á cinqüenta anos, mudou-se o caráter da intervenção: desapareceu o antigo asilo, “depósito de gente”, em benefício do hospital psiquiátrico. Hoje a internação persiste somente para casos graves de crise, agitação ou depressão com risco de suicídio; quer dizer, o papel fundamental do hospital reside nas situações de emergência psiquiátrica, tornando a internação e o hospital como estratégias possíveis dentre outras, como aquelas ambulatoriais.

            Vários elementos contribuem para as limitações práticas da psiquiatria, sendo o mais óbvio aqueles econômicos, que restringem a atuação hospitalar (mais cara) em beneficio da ambulatorial, bem como o acesso a remédios e outros bens. Outro elemento é quando a psiquiatria é chamada para resolver casos que não são de sua alçada (médica), especialmente aqueles sócio-econômicos, como internações famélicas. Não se descarte também, a utilização política da psiquiatria, da qual o estalinismo e o fascismo, mas também o capitalismo liberal ou não, mostraram tão bem; e, ainda, os interesses econômicos envolvidos na indústria da loucura, que terminam por levar a prescrição de estes ou aqueles tratamentos em detrimento, sempre, do louco.

4.2. O papel da Psicopatologia
Sem dúvida, nesta analítica que fazemos dos fundamentos da psiquiatria, seria uma traição não nos determos naquilo que lhe serve de fundamento: a psicopatologia. Assim como todo discurso que busca tornar-se ciência também a psiquiatria buscou mimetizar outras ciências na busca do estabelecimento de seus princípios positivos, que fundamentassem suas operações, na qual a medicina aparecia como alvo predileto.

            Por volta do fim do século XVIII, com a Inquisição arrefecida em mundo em entrando no turbilhão industrial, desenvolve-se na França uma nova medicina, pautada em outra racionalidade médica.  “Muito cedo os historiadores vincularam o novo espírito médico à descoberta da anatomia patológica” (FOUCAULT, 2008, p. 136). Sob o impulso de X. Bichat um campo analítico novo se dava a conhecer e isto se refletia nas formas como se praticava a medicina e no seu entendimento no conjunto da sociedade.

            A psiquiatra, como se sabe, surge na mesma época e rapidamente uma inquietação epistêmica passa a preocupar seus aderentes. Conforme a psiquiatria buscava se tornar ciência, seguia o caminho rumo a algo como física médica da alma, e, assim, pareceu aos dottores que, se a fisiologia estava para a medicina como a psicologia deveria estar para a psiquiatria[17], do mesmo modo, haveria de existir a contraparte espiritual da anatomopatologia. Somente com Jaspers, na sua monumental Allgemeine Psychopatologie, esta ciência almejada se tornará independente, pautada na fenomenologia germânica de então, o que não significa que ela não estivesse presente na derrière dos alienistas. Certamente, tratava-se de outra coisa, e somente a fenomenologia poderia dar a ela o caráter contemporâneo — pois a psicopatologia é, antes de tudo, uma grafia semiológica do fato mórbido-mental, com uma casuística, que devem pautar a prática terapêutica psiquiátrica.
           
Esta disciplina, ao menos nas fontes por nós consultadas[18], é extremamente dispare, como todo o restante da psiquiatria, com autores distintos defendendo posições, por vezes, irreconciliáveis. Neste ponto, há de se notar que um dos manuais que consultamos K. Jaspers, considerado por alguns como aquele que colocou a questão da psicopatologia[19], é citado como tendo apenas propugnador de uma metodologia antropológico-analítica e a psicopatologia como desvalorizadora da experiência do Outro-paciente em benefício do Eu-médico[20].

            Se para uns é assim, para outros, não. “Existiria uma abordagem especializada do humano que, sem ser nem uma psicologia nem psiquiatria, tenha os meios metodológicos de observar e descrever os distúrbios psíquicos e compreender seu acontecimento fenomenal singular no cerne da generalidade das experiências?” (FÉDIDA, 1998, p. 108). Esta questão, posta por Jaspers, seria para Pierre Fédida o ato de fundação de psicopatologia geral.  Senão isto, no mínimo Jaspers merece um papel destacado na história da disciplina, pelo momento em que escrever sua obra e pelo caráter que ele teve[21].

            É fato que reinava, então, no campo da psiquiatria e também no da psicopatologia uma confusão generalizada. A psicanálise estava se tornando conhecida e os debates entre organicistas e psicologistas se acentuavam. Além disso, as próprias ciências humanas debatiam vivamente qual método tomar, qual caminho seguir. A obra de Jaspers não poderia, pois, passar despercebida. Fruto de grandiosa observação empírica proporcionada pela clínica em Heildelberg, Jaspers sistematiza estes conhecimentos ao mesmo tem em que elabora furiosa critica metodológica. No curso de dois anos, publicará duas obras que darão uma reviravolta nesta área.

            A psicopatologia já não podia mais ser nem uma psicologia do patológico nem uma psicologia patológica. Quer dizer, nem, de um lado, se ater a uma psicologia objetiva — de cunho naturalista — que desprezaria seu objeto próprio, a psique; e, de outro, não tinha como se manter uma psicologia meramente subjetiva se quisesse manter pretensões cientificas — como criticar os dados psicológicos alheios pautados somente na empatia (por ele compreendida como a representação para si da experiência alheia)? 

Assim, a solução de Jaspers passava por uma critica metodológica. A tarefa da psicologia subjetiva seria, justamente, distinguir, descrever e nomear os fenômenos subjetivos a fim de que pudessem ser criticáveis: esta é a própria fenomenologia para Jaspers, ou psicopatologia descritiva. Nesta tarefa descritiva, Jaspers definia alguns parâmetros objetivos, visando diminuir as limitações do método, embora os limites continuassem a existir — justamente por isto, não negava outras formas de abordagem do afigurado, dos fenômenos psíquicos do paciente. Jaspers dava assim uma ancoragem empírica e criticável à psicopatologia, pois as descrições deveriam ser feitas em uma linguagem comum, em um referencial simbólico único, ou seja, intersubjetivo.

            Esta é a primeira parte da proposta jasperiana: a compreensão empática. O método de Jaspers pode parecer reducionista, isto é, tomar o subjetivo somente por suas manifestações internas; em fato, para Jaspers, este método deve ser como que o anteparo que permitirá uma psicopatologia, ao apontar os fenômenos de seu campo claramente. Tratava-se de apreendê-los por meio de uma compreensibilidade estática — para Jaspers, sinônimo de fenomenologia. Após este seria possível uma psicopatologia propriamente falando, que estabelecesse uma compreensibilidade genética dos fenômenos ao estabelecer conexões compreensíveis entre eles.

            A fenomenologia de Jaspers parte de uma psicologia descritiva que deve fundamentar o acesso do subjetivo, de modo, pois, a conciliar uma psicologia objetiva com outra descritiva — assim, garante-se a cientificidade da disciplina, ao mesmo tempo em que não se dissolve o objeto que lhe é próprio, o campo subjetivo de experiências.

Desse modo, o objeto da psicopatologia é o estudo descritivo dos fenômenos mentais tomados como anormais a partir da experiência dos doentes. Embora etimologicamente o termo signifique “doença do espírito”, não existem, a rigor, doenças psíquicas, pois toda doença é do corpo; aquelas psíquicas serão doenças se e somente se estiverem condicionadas a alterações patológicas do corpo.

            Para Jaspers, o objetivo da psicopatologia é estudar a vida psíquica anormal independentemente da clínica, ou seja, ser uma descrição da experiência do enfermo, tomada como adaptação á enfermidade. A psicopatologia deve fornecer as bases para a atuação dos psiquiatras, dando-lhes o instrumento para que a psiquiatria elabore o “diagnóstico, o tratamento e a profilaxia das doenças mentais” (PAIM, 1977, p. 12).

            O fato dos psiquiatras buscarem a fenomenologia como método proveio das dificuldades causadas pela interpretação então majoritária do delírio e da alucinação como erros. Somente a compreensão de que o enfermo vive em um mundo diferente, levada a cabo por Jaspers, sobretudo, fez com que os psicopatólogos buscassem, primeiro, compreender o fenômeno mórbido, e depois explicá-lo. Quer dizer, estudar a vivência objetiva subjetiva do enfermo para dar-lhe uma explicação objetiva pautada nas descrições observadas da vivência.

            Assim, a metodologia fenomenológica — malgrado parta de um arremedo da noção de solidariedade orgânica, algo como uma unidade dinâmica do psiquismo, donde uma indissolubilidade do fenômeno da consciência — divide o aparelho psíquico em inúmeras funções, mais ou menos arbitrárias, e, após, procede pela descrição dos fenômenos mais básicos, de suas características psicopatológicas determinadas em função da alteração das funções psíquicas elementares; disto decorre uma analítica do valor semiológico dos fenômenos, com uma fisiopatologia quando possível. A doença queda definida, mesmo que de maneira tácita, como uma alteração funcional.

            Em português claro: trata-se de uma análise psicológica das funções, das quais se determina uma operacionalidade psíquica normal ou saudável. A partir deste, descrevem-se as alterações na racionalidade deste funcionamento, fenômenos que somente podem ter, assim, um caráter patológico. Quando estes fenômenos determinam alterações de cunho bio-quimíco, descreve-se sua fisio-patologia. E, após, arrola-se a ligação destes fenômenos com as distintas afecções, tomadas como espécies, em uma casuística da morbidez: como se, à visão de listras, concluíssemos que somente pode se tratar ou de um tigre ou de uma zebra.

Estudo de caso: a psicopatologia do juízo
            Em seu Curso de psicopatologia, I. Paim divide o conjunto do psiquismo humano em algumas funções: percepção, representação, conceitos, juízos, raciocínio, memória, atenção, orientação, afetividade, atividade voluntária, linguagem e consciência. Esta última é como que o fio condutor de todas as demais ciências, unificando-lhes. Diante de cada uma das funções, faz as determinações necessárias e procede como descrevemos.  

Vejamos um exemplo:

AS ALTERAÇÕES NOS JUÍZOS:
Para elaborar a psicopatologia dos juízos, Paim parte da abordagem lógica — aristotélica, devemos dizer — do juízo, entendido em seu aspecto formal enquanto afirmação ou negação de uma relação entre dois conceitos, sendo sua peculiaridade o fato de asseverar, de enunciar. Sujeito: de quem se afirma. Predicado: aquilo que se afirma do sujeito. Os termos, expressão lógica de conceitos, são ligados por meio de um termo cópula que estabelece, pois, a relação entre sujeito e predicado.  A forma do juízo na linguagem é a proposição, enquanto que a palavra é a expressão dos conceitos. Hegel, segundo Paim, apontaria que a principal contradição do juízo é fato de nele o singular ter de ser geral ou reduzível à generalidade; esta contradição mostra o caráter dialético do juízo, nele unidos o contraditório e o diferente por meio de um ato noético vinculador. Um juízo expressa a verdade ou o erro conforme sua correspondência na prática, sendo este seu único critério de verdade: consonância com a realidade.

            Na psicopatologia dos juízos, Paim inclui os delírios, tratado de praxe como formas de alteração do conteúdo do pensamento. Para ele, nos casos de delírios esquizofrênicos os juízos se formam sem ter uma pedra de toque empírica, isto é, sem balizamento na realidade referindo-se a sujeitos ou predicados inexistentes; contudo, afora isto, o pensamento funciona de maneira normal. Por isso ele considera delírio como integrante da patologia dos juízos.

            Além disso, por muito tempo os delírios eram nomeados, de forma equivocada, sempre segundo Paim, de idéias delirantes e, deste modo concebido pelos clássicos, eram definidos como um erro incapaz de ser corrigido — concepção impossível de ser sustentada hoje em dia. Salientamos que para nós o delírio é uma alteração na formação dos juízos, não das idéias, dos conceitos ou das representações, que Paim considera como funções de outra ordem. Um delírio é uma alteração profunda da consciência, que leva ao proferimento de juízos falsos; se desenvolve em condições patológicas pré-existentes.

CLASSIFICAÇÃO DOS DELÍRIOS
            De acordo com Paim, Jaspers considerava o delírio como um estado no qual os juízos são enunciados com certeza inabalável, mesmo pela experiência ou pela lógica muito embora seu conteúdo e modo de formação sejam falsos. Quando sua causa é compreensível, chamam-se idéias deliróides; quando as causas são primárias, incompreensíveis, chamamos idéias delirantes verdadeiras. K. Schneider conta três modalidades de delírio:

1. Percepção delirante: atribuição aleatória e arbitrária de uma significação anormal a uma percepção normal; a significação exótica é experimentada como imposição exterior, mas que permite acesso a uma realidade superior incompreensível para outrem. A percepção é alterada dada a vivência delirante, que resulta em perturbação do pensamento, de modo que o objeto percebido adquire significações inusitadas e insólitas, em geral autorreferentes. Trata-se, pois, de transtorno no ato de integração significativa, deformação que ao invés das intenções estarem nos sujeitos, elas tornam-se parte dos próprios objetos: as significações dadas por estes passam a subjugar toda a existência da pessoa.

As percepções delirantes geralmente indicam psicose esquizofrênica. Há três posições: para alguns, elas instauram uma nova vivência; para outros são alterações do juízo (Jaspers) e para outros ainda são alterações do pensamento (K. Scheneider). Há ainda outras concepções: para C. Del Pino, sendo  a percepção delirante a atribuição de significações caprichosas a fenômenos, ela é, então, patologia da significação; na pegada da analítica existencial, Kunz defende que a chave primária da percepção delirante é a completa transformação do ser-no-mundo[22].

2. Ocorrência delirante: trata-se de um fenômeno onde a crença delirante é puramente subjetiva e a significação anormal é indistinguível do enfermo. De difícil diagnóstico, tem pouca importância nestes termos embora revele a natureza da psicose do enfermo. Seu conteúdo em geral refere-se à política, religião ou qualidade especial, colocando o paciente em uma posição distinta das demais, como rei ou imperador. Weitbrecht[23] alerta que a ocorrência delirante nunca tem lugar isoladamente,o que marca-lhe posição no diagnóstico; além disso, sempre acompanham psicoses endógenas e somáticas.

3. Reação deliróide: O estado de ânimo do enfermo é a raiz que dá sentido às alterações de significação e de referência. A partir de sentimentos de angústia e desconfiança, bem como de distimia, desenvolvem-se reações deliróides, cujo tema geralmente é secundário, embora valiosos para a Psicopatologia Forense.

TIPOS DE DELÍRIO GENUÍNO
            Delírio de perseguição: Seu início é bastante variável conforme a casuística, embora sempre marcado pelo sentimento de certeza absoluta. Seu início pode ser súbito, originado em um ato considerado singular, ou, quando não, desenvolve-se a partir de um estado de inquietação interna; nomeado humor delirante, ele é marcado por desconfiança excessiva de todos e um comportamento demasiadamente crítico e áspero, donde brotarão os delírios como certezas irremovíveis. Quando completamente maturado, todos poderão fazer parte da conspiração, inclusive o médico.

Delírio de revelação: todos os fatos externos, inclusive os menores, passam a ter relação com a pessoa do doente. O conteúdo do delírio geralmente negativo e tem relação com a vivência psíquica do enfermo antes da emergência da afecção.

Delírio de influência: o paciente sente influenciado por ondas, telepatia, radiações, choques, etc., que advêm de máquinas ou aparatos inventados por seus inimigos para controlá-lo ou machucá-lo. Em alguns casos, assume a forma do envenenamento, percebido nos alimentos, o que pode levar a sua recusa. Geralmente este delírio é prodrômico[24] de alteração grave da personalidade.

Delírio de ciúme: Manifesta-se em esquizofrênicos paranóides geralmente com grande valor do ponto de vista médico. Se manifesta-se sob a forma conjugal, todos passam a fazer parte de uma conspiração onde o cônjuge o trai com diversas pessoas;e m casos extremos pode-se desenvolver rumo a um delírio de envenenamento; em outros, termina em homicídio ou uxoricídio (assassinato da mulher pelo marido).

Delírio de grandeza: Pode assumir várias formas de acordo com o contexto sócio-histórico do paciente, como riqueza, poder, eróticos, fisiológicos, etc. Quando ambicioso, o delírio assume a forma de exagero da própria personalidade com respectivos exageros comportamentais. Quando de invenção, o delírio faz o doente crer que descobriu maravilhas científicas de ordens distintas — é forma rara de delírio. Se de reforma, o delírio constitui variação daquele de grande, tomando conotações sócio-políticas; distingue-se militantes normais daqueles delirantes por três características, quais sejam: crença na originalidade, ilogismo, ausência de senso para propagá-las. A forma erótica manifesta-se sob forma de paixão — sexual ou platônica — normalmente por celebridades.

FISIOPATOLOGIA DOS DELÍRIOS
             Paim refere-se à Pavlov para considerar que a retenção dos processos excitatórios no córtex cerebral[25] desencadeia o desenvolvimento dos delírios pela diminuição da capacidade crítica no enfermo. Essa retenção pode advir tanto do meio como de estados patológicos cenestésicos[26] 

VALOR SEMIOLÓGICO
            Em relação ao valor semiológico, Paim defende que o mais importante nos fenômenos de delírio é o fato de servirem como índice de uma agressão profunda na personalidade, geralmente processos de alterações esquizofrênicos, senis ou advindos de intoxicações. As psicoses sintomáticas, maníaco-depressivas e psicopáticas são terreno fértil exclusivo para as idéias deliróides.

            Com isto, exposta a psicologia do delírio, suas alterações patológica, sua fisiopatologia e seu valor semiológico, mostramos o proceder elementar da psicopatologia. Poderíamos mostrar de todas as funções — mas de nada nos serviriam para entender não cada menor parte, mas a racionalidade por meio da qual opera a psiquiatria.

Conclusões parciais
Esta síntese da psiquiatria e de seus métodos há de nos servir para nossa exposição histórica. A elaboramos a partir de textos médico-psiquiátricos a fim de permitir que, conforme nosso olhar deslize pelo jaleco dos dottores, tenhamos claro a história que os marca, o pensamento que o define e a prática que empreendem

A psiquiatria, em termos gerais, ciência que leva os traços marca da sociedade que a criou, não pode escapar desta. Veremos que em sua busca por se tornar ciência médica, tomou o caminho mais curto, a reta. Se reconhecia a proposição de Euclides, contudo lhe faltava as ferramentas próprias para cultivar o terreno que se propunha e, ao mesmo tempo, de acordo com as teses de Foucault, que já veremos, incorria em um erro epistêmico fundamental.

Assim, tal qual a medicina obtinha da fisiologia o substrato próprio para a ação do médico, também a psiquiatria quis que a psicologia, tornada ciência a partir dos trabalhos de Wundt — germânico, lembrem-se —, lhe proporcionasse a fisiologia da alma — com instrumentos que a psicologia nunca contou. Assim como Bichat deu as bases da anatomopatologia, também a psiquiatria quis uma psicopatologia, um manual das morbidades mentais que servissem como a bússola para a aplicação de sua terapêutica de efetividade, eficácia e procedências duvidosas.

Esta trajetória, que em nada deve à Comte, é trajetória de um corpo de discursos em busca de sua cientificidade, assim como os cristãos fundaram a teologia para refutar sua falta de fé. Ou, senão, e talvez também, de uma pseudo-ciência buscando a capa do saber cientifico para fundamentar seus próprios desígnios, justificar suas relações de poder — base de todo saber, conforme vimos. 

Sem perceber, o que lhes era impossível, sem saber sua própria história e seus próprios fundamentos; sem dar em si das relações de poder que lhes permitiam, a psiquiatria passou por todo seu período de ouro atrás de um substrato tão firme que lhes colocasse no primeiro plano da saúde pública e parte integrante da higiene pública. Se é fato que a “a psiquiatria manobrou para ser reconhecida como parte da higiene pública” (FOUCAULT, 2007c, p. 255), não é menos concreto que somente pôde ser o que pretendia quando reconheceu seus fundamentos históricos, quer dizer, sua dupla base moral e política: é Morel[27], na fronteira entre a médécin mentale francesa e a psychiatrie alemã, que permitirá isto, animando novas questões e dando o leit motif de Hoffmann e Pereira Passos.

Pretendemos, pois, a partir desta breve exposição sobre os rudimentos da psiquiatria de hoje, mostrar as condições de surgimento desta — antes da aparição da própria noção de psiquiatria e de doença mental —, seu desenvolvimento em seus maiores autores e praticadores, sobretudo até que um jovem neurologista de Viena propusesse um modo de superar as problemáticas postas rumo a uma nova ciência, uma nova psicopatologia...
















4.3. A história da psiquiatria (para os psiquiatras)


“O alienado mais violento e mais temível se tornou, por vias suaves e conciliatórias, o homem mais dócil e digno de interesse por uma sensibilidade tocante.”
Philippe Pinel
Tratado médico-filosófico sobre a alienação mental
               
Se F. Nietzsche tivesse tido a oportunidade de ler a forma como os psiquiatras fazem a história de sua própria disciplina, sem dúvida não saberia distingui-los dos ingleses, estes que gostam da suave história azul do Mesmo, da semente plantada na aurora dos dias que se desenvolveu até o estalar de nossas horas.

Para os psiquiatras (cf ALEXANDER, SELESNICK, 1966; GRANDINO, NOGUEIRA, 1985; CAMPAILLA, 1982; PAIM, 1977) sua ciência possui um objeto positivo. A loucura é um fato do mundo e acompanha o homem desde que este surgiu no planeta. A doença mental e os loucos, os enfermos, os alienados, enfim, estavam ali expostos ao nível cultural e cientifico das distintas civilizações, e, assim, tinham o tratamento adequado à evolução do saber em sua época. Dependendo dos dias de seu nascimento, o louco poderia ser desde uma divindade a objeto de profunda repulsa; podia ser tratado com as honras do Cristo redivivo que retorna ao mundo da carne ou exposto às sevícias mais horripilantes para nossa sensibilidade contemporânea.

Os doentes mentais, dizem os psiquiatras, tiveram de aguardar a psiquiatria surgir, quer dizer, a ciência avançar em seus conhecimentos objetivos sobre as coisas para, só então, serem compreendidos e poderem vislumbrar as possibilidades do cessar de seu sofrimento através de diagnósticos e terapêuticas.

Este positivismo, esta teleologia historiográfica dos psiquiatras alcança tamanha proporção que, segundo eles,

“Três tendências básicas no pensamento psiquiátrico podem ser traçadas até os tempos mais antigos: a tentativa de explicar as doenças da mente em termos físicos, isto é, o método orgânico; a tentativa de encontrar explicação psicológica para as enfermidades mentais; e a tentativa de lidar com acontecimentos inexplicáveis por meio de magia” (ALEXANDER, SELESNICK, 1966, p. 28)

            Os mais astutos facilmente poderão deduzir o restante: a abordagem mágica seria como que a pré-história da psiquiatria, ainda imberbe e insuficiente em termos de recursos descritivos, analíticos e conceituais adequados para dar conta da complexidade do fato mórbido-mental. Pautados no embotamento de pensamento que lhes é próprio, os primitivos buscariam respostas divinas ou anímicas para compreender a doença mental, e, naturalmente, também os processos de cura seriam pautadas no mesmo primitivismo de cunho tribal, com métodos de sugestão utilizados sobremaneira pelos feiticeiros, oráculos e afins.

Aos poucos, contudo, teria o homem através de uma fina observação do meio, passado a compreender a regularidade dos fenômenos naturais e, assim, descrevê-los em termos racionais, embora pré-científicos: o corpo emergia como uma realidade físico-química para os gregos, helenos e romanos. Este desenvolvimento foi atrasado pelas trevas medievais e a ressurreição das já ultrapassadas “tendências demonológicas e religioso-mágicas” (ALEXANDER, SELESNICK, 1966, p. 32), somente combatidas no Renascimento, onde se principia a última fase deste processo suave que desemboca na moderna ciência e na moderna medicina, a de X. Bichat, C. Bernard e A. Fleming. A psiquiatria, enquanto especialidade médica, obviamente fez parte desde processo de amadurecimento, desde o xamã de aldeia aos modernos dottores com todo seu aparato técnico. Quer dizer, o método racionalista-moderno, físico enfim, de descrição e compreensão do mundo seria plenamente utilizável em psiquiatria, sendo o método orgânico sua forma psiquiátrica contemporânea.

Do mesmo modo, o método psicológico de diagnóstico e terapêutica também já estava embrionário desde os despertares da civilização. Se os primeiros homens descreviam as formas de sofrimento mental em termos de espírito maus que atormentavam o pobre enfermo, teve-se de esperar até Hipócrates — do qual falaremos um tanto — para que a epilepsia perdesse seu caráter divino e se tornasse mais uma moléstia, embora de cunho orgânico. Somente Cícero, na Antiguidade, teria reconhecido seu caráter psicológico, tendo ele, inclusive lançado os alicerces da psicoterapia! Neste redemoinho de precursores, Sto Agostinho torna-se o maior psicólogo até Freud, Montaigne, Maquiavel, Boccacio e Rabelais aparecem como os descritores da psique enquanto realidade do homem. Todos eles, psicólogos; todos eles, predecessores da psiquiatria moderna.

*
           
Embora o termo doença mental seja contemporâneo, sempre se reconheceram, dizem os psiquiatras, este mesmo fenômeno, o do distúrbio mental. Malgrado as distintas interpretações do fenômeno, o reconhecimento das perturbações mentais é universal, constando desde em civilizações paleolíticas até os incas, passando pelos egípicios, chineses, judeus. Hipócrates (460-375 a.C.) criou uma classificação dos distúrbios mentais; no sec. I, o romano Celso faz constar em sua enciclopédia médica os distúrbios mentais. Durante a Id. Média, distinguiu-se entre loucura natural e loucura fruto do pecado. No Renascimento, alguns elogiavam e outros tratavam a loucura como bruxaria.

            Juntamente à desdivinização do homem empreendida pelos naturalistas no séc. XVIII, situando o homem junto aos demais animais, passa-se a pensar seu comportamento não em termos divinos, donde o conceito de doença mental pode ser expresso como patologia da liberdade. O francês Pinel destaca-se neste contexto, ao libertar os loucos das masmorras, providenciando, por um lado, higiene, alimentação e desenvolvimento das qualidades morais; por outro, vale-se dos métodos naturalistas de classificação para elaborar uma nosografia das doenças mentais, divididas em conjuntos de sintomas. Com Pinel, teria iniciado a humanização do tratamento da loucura.

            Contudo, a nosografia pineliana era confusa e ineficaz. A partir de estudos biológicos operou-se, contudo, uma nova abordagem dos fenômenos patológicos. Em 1822, Bayle individualizou a paralisia geral ao mostrar que as origem era devida a inflamação da aracnóide,uma das glândulas que revestem o cérebro. Em 1879 Fournier liga a paralisa geral progressiva com a sífilis.

A partir disto, os psiquiatras passaram a buscar as causas específicas de outras doenças. Emil Kraepelin (1856-1926) elaborou durante 20 anos a base da nosografia psiquiátrica a partir do conceito de unidade nosológica, ao qual se vincula uma doença com causas, sintomatologia, desenvolvimento e anatomopatologia equivalente. Kraepelin agrupou a psicose maníaco-depressiva, a demência precoce (e suas três formas clínicas: paranóide, hebefrênica[28] e catatônica[29]) e esclareceu o campo teórico-prático de atuação do psiquiatra, definindo seu objeto, marcando a importância das classificações para uma disciplina científica e permitindo à união do saber clínico com o de demais áreas e disciplinas. Tratado de psiquiatria, 1909, E. Kraepelin: “A psiquiatria é o estudo das doenças mentais e seu tratamento (...) [ela é] o conhecimento científico da natureza das doenças mentais” (apud GRANDINO, NOGUEIRA, 1985, p. 66). Kraepelin leva as últimas conseqüências a posição biologista, que busca o fundamento biológico da doença, e analisá-la de maneira causal. Sem dúvida, pois, podemos chamar sua psiquiatria de positivista.

            Dentre os fatores que fizeram fracassar a classificação de Kraepelin conta-se a crítica de Jaspers a ele. Na Psicopatologia geral (1913), K.Jaspers aponta que a noção de unidade nosológica demanda um amplo leque de conhecimentos então indisponíveis. Em 1907, Bonhoeffer mostrou como Kraepelin errou ao catalogar duas doenças com causas distintas, que concordavam em todo o restante. Bleuler, em 1911, se propõe a rever o conceito de demência precoce utilizado por Kraepelin; para ele a alteração mental não é quantitativa, mas qualitativa, com um reordenamento das funções; ressaltou as diferenças de evolução entre distintos doentes; além disso,privilegiou, no diagnostico,a sintomatologia ao invés de critérios clinicoevolutivos.

            Além destes, as propostas de Freud e do existencialismo[30] fizeram tremer o conceito de unidade nosológica. A teoria da psicose unitária (há uma doença mental com inúmeras formas de apresentação), as propostas de Hoche (a noção de síndrome, com origem especificada pelos sintomas mutáveis) e os que continuaram classificando, deram a tônica da psiquiatria no período.

            Contudo, pode-se dizer que a psiquiatria organizou-se, depois, em torno da noção de síndrome e de seus grupos: exógenas, originárias de lesões demonstráveis, doenças somáticas e intoxicações; endógenas, cujo diagnóstico é puramente psicopatológico, baseando-se tanto nos sintomas como na reação do pacientes, conta-se a esquizofrenia e a psicose maníaco depressiva aqui; e psicogênicas¸ grupo grande, que inclui todas as patologias dependentes de vivências e somente compreensíveis a partir da forma como o sujeito organiza sua própria vida.

            Há dois tipos de tratamento das doenças mentais: os psicoterapêuticos (talking cure, etc.) e os biológicos; estes buscam corrigir problemas metabólicos e neurofisiológicos por meio de remédios, tratamento de choque, etc. Freud é um dos fundadores da psicoterapia, através da psicanálise, principal corrente desta modalidade. Ligada diretamente ao tratamento das histéricas, Freud as estudara juntamente com Charcot. Aprendeu os benefícios e os malefícios da hipnose como técnica terapêutica, logo substituída pelo método da associação livre; este permite a vinda à tona de atos psíquicos reprimidos, revelando, pois, a existência do inconsciente, mérito da psicologia freudiana; estes atos terminam por retornar sob a forma de sonhos, sintomas e atos falhos. Outro pilar da teoria freudiana é a da sexualidade, sob suas diversas formas.

            Jung e L. Binswanger, próximos a Freud, deram outro rumo as suas teorias, com Binswanger aproximando-a do existencialismo de Heidegger. Outros buscaram as causas orgânicas das moléstias bem como tratamentos: o choque insulínico de Sakel, o eletrochoque de Cerletti e Bini, ambos visando reequilibrar o funcionamento do organismo por meio do choque[31]. Além disso, os farmacopsicotrópicos também passaram a ser utilizados (P. Chapontier, 1950, clorpromazina, anestésico): remédios que atuam na bioquímica cerebral.

            Na década de 1960, quando a psiquiatria de fato encorpa-se enquanto disciplina médico-científica não especulativa surgem as críticas mais severas.  Em 1961 são lançados História da loucura e O mito da doença mental[32], de Foucault e Szasz, que questionam a psiquiatria e o conceito de doença mental. Laing, Cooper, Basaglia, Castel, dentre outros, também partem para o ataque. Laing e Cooper defendiam a inexistência da esquizofrenia, sobretudo considerando-a uma viagem interior à uma realidade mais ampla; o tratamento é visto como tortura a serviço da ordem burguesa. Basaglia[33] propõe a união entre doentes mentais e grupos revolucionários, devendo a terapêutica ser realizada pela comunidade. Alguns dentre eles tentaram por em prática suas teorias, a maior parte, contudo, fracassando.

*
Algumas notas historiográficas antes de debatermos as contestações propriamente psicológicas de Foucault a estas teses comuns na psiquiatria. A forma como os historiadores da ciência tradicionais tocam seu trabalho foi inúmeras vezes comentada por Foucault. Não há de se estranhar, portanto, que nossa orientação na elaboração deste trabalho seja eqüidistante da de nossos historiadores da psiquiatria, sejam os descritos acima, sejam todos aqueles os quais lançaremos mãos neste texto.

            Também não deve causar espanto que os psiquiatras busquem em grandes pensadores do Ocidente o tenro broto de sua disciplina. Quando expõe os motivos pelos quais quis estudar a psiquiatria, parece-nos que o próprio Foucault aponta uma das causas desta identificação tão bem apreciada pelos psiquiatras: não será porque (...) “o perfil epistemológico da psiquiatria é pouco definido, e porque a prática psiquiátrica está ligada a uma série de instituições, de exigências econômicas imediatas e de urgências políticas de regulamentações sociais?” (FOUCAULT, 2007c, p. 1). Quer dizer, uma ciência tão frágil e tão contestável diante da analítica histórica tem de se agarrar em algo um tanto mais fixo para se manter científica.

Já expusemos as teses historiográficas de Foucault, e que cotejadas com o modo como os psiquiatras escrevem seu destino progresso, não deixa dúvidas do caráter da disciplina.

Portanto, antes de sermos contra ou a favor da psiquiatria, somos contrários aos métodos que nossas fontes utilizam para traçar a história de sua própria disciplina. Afinal, como considerar que se trata da mesma ciência quando seu objeto é distinto, pois as formas de apreendê-lo, quer dizer, conceituá-lo, opõe-se tanto? A título de exemplo, basta citarmos que para Hipócrates (460-377 a.C.) a histeria era causada pelo desprendimento do útero da bacia; em compensações, já no séc. XIX, Charcot dirá que “dans ces cas pareils, c’est toujours la chose génitale, toujours, toujours[34].Trata-se, pois, de uma mesma medicina, que amadurece com o tempo, ou de medicinas distintas, uma sucessão de racionalidades estranhas entre si, com formas epistêmicas completamente opostas de apreender as coisas?




5. Fundamentos da crítica de Foucault

Doença Mental e psicologia ocupa um papel importante em nossa reflexão. Obra de um Foucault ainda influenciado pelo marxismo e pela analítica existencial de cunho fenomenológico-heideggeriano de L. Binswanger, e sem método próprio; neste texto encontramos uma problematização profunda das patologias mental e orgânica[35] e a saída diagonal de Foucault ao problema.

Na análise foucaultiana, o pensamento psicológico do século de XIX pautara-se na identificação do que é a doença mental e de qual sua relação com a patologia orgânica. Para Foucault, a patologia mental foi então abordada com os mesmos métodos e critérios daqueles das doenças orgânicas, quer dizer, a psiquiatria e psicologias do século XX agiam como se houvesse uma metapatologia, uma doença existente enquanto ser abstrato, que se manifesta em patologias mentais e orgânicas

Assim, as duas patologias moveram-se no sentido de fundamentar uma essência da doença: estabelecer uma etiologia a partir da sintomatologia obtida na observação clínicas; estas duas devem fundamentar uma nosografia que, por sua vez, dê os subsídios para o estabelecimento da terapêutica. Ou seja, a doença série uma espécie, algo que existe organicamente e independentemente dos critérios de avaliação, cabendo ao psiquiatria, tanto quanto ao médico — sendo a medicina e a psiquiatria as duas faces do mesmo Janus —, sua descrição tal qual o faria um historiador natural ou um biólogo. Podemos dizer, sem dúvida, que se tratava de aplicar o more botanico inventado pelos naturalistas das Luzes ao campo da doença mental.

            Foucault nos descreve, contudo, outro momento da psiquiatria: a doença passa a ser entendida como desorganização em uma maturação do individuo; como se a personalidade desenvolve-se rumo a uma finalização totalizante e a doença fosse a grande interrupção, a pedra que cerra o caminho do desenvolvimento, forçando a abertura de um novo caminho, aquele da morbidez. Assim, desenvolve a clássica distinção entre neurose e psicose. Sendo a doença desorganização de uma personalidade dada, há de se fazer uma distinção qualitativa do grau de alteração da personalidade; serão neuroses todas aquelas patologias que alterarem uma faculdade do aparelho psíquico, mantendo as demais intactas; ao mesmo tempo, serão consideradas psicoses as doenças mentais que mudarem o conjunto da personalidade tornada mórbida.

*
Malgrado esta diferença entre os dois procedimentos psicopatológicos presentes no século XIX — uma psicopatologia unificadora e uma psicopatologia da personalidade — , a psicologia de então tinha como base que a doença desagrega as funções mentais e “suprime as funções complexas, estáveis e voluntárias, exaltando as funções simples, instáveis e automáticas” (FOUCAULT, 1975, p. 25) como se doença desencadeasse um estado de retorno ao passado individual, fazendo com que determinadas faculdades se percam ou se desorganizem e que funções inteiras da psique se transformem. Mesmo Freud tomava que a neurose é uma forma de regressão a um nível de estruturação libidinal ultrapassado.
A análise de Foucault segue adiante, interpelando a psicologias evolucionistas de Janet[36] e de J. H. Jackson[37] e questionando-as por meio da psicopatologia fenomenológica de Biswanger[38] e de Jaspers[39]. A partir destes dois autores — particularmente Binswanger, leitor atento de Heidegger — Foucault elaborará uma tese bastante interessante para nós: para que assome como possibilidade algo como uma medicina mental — se ela for possível — ela deve se pautar em uma compreensão histórica das relações entre homem louco e homem normal. Para nós isto equivale a dizer que a base da psicopatologia, ou, melhor, da psiquiatria, não pode ser reduzida a uma dicotomia ou psicológica ou orgânica, tal como querem nossos historiadores da psiquiatria. Para nós, a tese de Foucault neste texto, e que ele desenvolverá em História da Loucura, e em toda sua obra, conforme veremos, toma que a base da psiquiatria é histórica e variável de acordo com distintas culturas.
A partir disto, nosso objetivo neste trabalho é acompanhar: 1º a formação das bases para uma apropriação médica da loucura; e 2º os desenvolvimentos da medicina mental e da psiquiatria — que são distintas, ao menos no século XIX, já veremos porque — no século retrasado.
Para tanto, lançaremos mão da obra magna de Foucault sobre o tema, a História da loucura, especialmente para o primeiro objetivo; mas também, vez ou outra, de seus principais textos genealógicos sobre o tema, quais sejam Poder Psiquiátrico e Os anormais. Ao mesmo tempo, contudo, tentamos ser rigorosamente fieis ao próprio pensamento de Foucault; afinal, como os psiquiatras pensavam sua ciência e como ainda hoje fazem esta história de si mesmos e de seu saber? Ou seja, lançamos mão da leitura de textos psiquiátricos e de historiadores da psiquiatria, na tentativa de entender melhor esta disciplina e suas escaramuças metodológicas e teóricas.








6. A formação do mundo psiquiátrico

Proveniência do internamento
            Na História da Loucura na Idade Clássica[40] Foucault trata de nos descrever como a loucura, que até então tinha uma vida ativa e livre no imaginário e cotidiano da Europa, foi, aos poucos, apreendida por uma consciência médica até redundar na formação da médécin mentale inaugurada por Pinel.

Na Alta Idade Média organizou-se na Europa toda uma rede de leprosários, destinados a receber, enquanto espaços de exclusão, a encarnação do mal, os lázaros do continente. Quando Luis VIII regulamenta os leprosários no século XIII, eles já são mais de 2000 em toda a França. Contudo, a partir do século XV os leprosários esvaziam-se — com o fim das Cruzadas, rareiam as fontes de contágio —, embora a função que ocupavam permanecerá, mas agora assumida por outras figuras.

As maladrièries passam a receber pobres, desnutridos, mendigos e soldados estropiados. Se desde o século XVI a monarquia busca reorganizar as maladrièries, em 1672 e em 1693-5, o rei terminará por unificar todos os estabelecimentos hospitalares (maladrièries, instituições assistenciais e hospitais) sob um só regulamento e controle.

Em dois séculos, pois, a até então central lepra regredirá, bem como os leprosários em toda a Europa. Vários motivos e nenhum é médico. Contudo, a função do leproso continua: sinal da fúria e da salvação de deus, o leproso é o instrumento divino na luta pela purgação dos pecados, em um movimento que unifica exclusão social nos leprosários e reintegração espiritual com os desígnios da divindidade. Em um primeiro momento, serão as doenças venéreas que ameaçaram ocupar o lugar da lepra, mas o baixo número de infectados e a existência de terapêuticas — a utilização do azougue, por exemplo — farão com que seja a loucura que ocupe este espaço. O louco, contudo, não era figura nova, estando presente desde antes da Idade Média como figura central.

Na Renascença havia a figura da Nave dos Loucos, Narrenschaft. Se, por um lado é uma figura artística, por outro é real: navios que carregavam os loucos de uma cidade a outra, malgrado as leis locais e os distintos procedimentos já existentes, bem como a existência de espaços reservados aos loucos nos hospitais. Se é verdade que a Nave expulsa os loucos, livrando a cidade de mantê-los ou de lidar com eles; ao mesmo tempo, a Narrenschaft tem forte caráter simbólico. Estar na Nave significa que o louco é prisioneiro de seu destino; se é a água que trará e levará os loucos para os distintos lugares de peregrinação e contraperegrinação, ao mesmo tempo, a água purifica. O louco é aquele que está preso na liberdade de vagar, prisioneiro da viagem. Enfim, o louco é, na Idade Médica, "posto no interior do exterior" (FOUCAULT, 1972, p. 22)

Ao final da Idade Média, o louco tornar-se uma figura maior e ambígua: "ameaça e derrisão, vertiginosa desrazão do mundo, e mince ridícula dos homens" (FOUCAULT, 1972, p. 24). Se na crítica o louco é denunciado, na arte ele detém a verdade. A loucura é o vício do qual ninguém escapa. Dubiedade que não deixa dúvidas: é o tempo de Erasmo, mas também de Bosch.

A loucura ocupa, nesse sentido, o papel outrora ocupado pela morte na mentalidade medieval da Europa: peso de vida embora destino do homem. É a loucura que ocupará o lugar ambíguo da morte, ou seja, do vazio existencial. O louco é aquele que não se preocupa com a morte, desarmando-a: a invasão da loucura é outro sinal do fim das eras.

O aparecimento da loucura no final da renascença marca o fim das formas góticas de simbolismo. As coisas, sobrecarregadas de sentimento perdem a sua unidade e sua imediaticidade, escancarando o vazio entre o saber e a forma. A loucura, em imagens e sentidos, vem ocupar este vácuo: o louco vaga entre o animal e a coisa, o sonho e o pesadelo. O mundo sobrecarregado de sentidos faz com que o saber pare de ensinar, dando lugar à fascinação, ao imaginário, ao sonho e à loucura, que são mais atraentes que o mundo duro da carne.

Com a Renascença a animalidade, até então presa no simbolismo cristão do Nome dado por Adão, transborda, fascinando justamente por escapar ao homem, sendo, pois, símbolo da loucura. Este saber esotérico é próprio do louco que, com sua ingenuidade vence, para Dürer[41], tanto deus como o diabo. No louco, o homem vê seu destino nas profundezas do inferno.

Na literatura filosófica e moral, há outro espaço da loucura. Na Idade Média, a loucura é um vício, uma das doze dualidades da alma humana, oposta à prudência. Na Renascença, a loucura é o próprio vício, tendo inúmeras expressões, todas elas ligadas a fraqueza, a soberba e a ignorância humana. "A loucura não tem somente caso com a verdade e o mundo que tem com o homem e verdade dele mesmo, que ele sabe perceber” (FOUCAULT, 1972, p. 36). A loucura diz de uma conduta, ou seja, é moral. Como o vício é a irregularidade da conduta, a loucura é pecado

Dupla experiência da loucura: uma trágica, que a experimenta com um fascínio cósmico; outra, crítica que a observa como vício moral. Se é verdade que houve trocas entre estas duas posições, com o tempo elas dividirão a experiência até então unitária da loucura. O humanismo, ao situar a loucura como moral, diz que ela dirige a conduta dos homens: a loucura se opõe à verdade e ao essencial. Ao final da Renascença, ao final do século XVI, contudo, haverá somente uma experiência da loucura: como vicio, erro que sucumbe no confronto com a verdade.

A consciência crítica da loucura passa medi-la em relação à razão. A loucura é identificada com a imediaticidade e aparência das coisas, em contraposição a sua essência; a ordem dos homens, imperfeita e efêmera, contra a essencialidade de deus e da verdade eterna das coisas: ‘medida à verdade das essências e de deus, toda ordem humana não é senão loucura" (FOUCAULT, 1972, p. 42).

A razão do homem é louca perto daquela divina, mas esta não abandona o homem: está nele, e deus se comunica com os homens desta forma; ou seja, a loucura não tem existência positiva, mas relacional à razão de deus.

Reinscrita como figura da razão, a loucura logo se vê capturada. Ela torna-se ensejo da afirmação da razão. Não sendo mais trágica, a loucura torna-se alvo da crítica: ela é o erro e a ilusão: "ela [a loucura] toma o falso pelo verdadeiro; a morte pela vida; o homem pela mulher, o amoroso por L'Erynnye e a vítima por Minos" (FOUCAULT, 1972, p. 51); assim, a loucura revela a verdade, pois ela é sempre ilusão.

Como a Idade Clássica prende a loucura na razão, também a Nave tomará outra forma: a do Hospital dos Loucos. Lá, a desordem tomará ordem. Novas exigências formulam-se e os loucos as saberão na pele.
           
Se a Renascença controlou a loucura pela repressão, a Idade Clássica a controlará pelo mutismo. Para Montaigne a loucura é sempre a dúvida que paira sobre qualquer um, Para Descartes, a loucura é a impossibilidade de pensamento; duvidar da própria sanidade é índice de racionalidade, i. é, a certeza da existência de si, o cogito implica não-loucura.

Emergência do internamento
Extravasando o campo teorético, a Idade Clássica cria casas de internamento para os desrazoáveis: na França, o instrumento das lettres de cachet[42]; na Inglaterra, as workhouses; na região que se tornaria a Alemanha, as Zuchthäusen. Quando a psiquiatria se formar, o louco já estará internado, pois foi por meio do internamento que a Idade Clássica experimentou a loucura, fazendo com que esta desaparecesse da cultura européia.
           
Em 1656 o Rei Sol, Luis XIV, cria o Hôpital Général, em Paris, como parte de uma reforma de diversas instituições. Apesar do nome, o Hôpital não é uma instituição médica; administrado por um gérant, é de sua competência assistir os pobres, inválidos, mendigos, doentes e alienados de Paris.

“Soberania quase absoluta, jurisdição sem apelação, direito de execução contra o qual nada pode prevalecer — o Hôpital Général é um estranho poder que o rei estabelece entre s polícia e a justiça, nos limites da lei: a terceira ordem de repressão” (FOUCAULT, 1972, p. 61).

O que há de médico no Hôpital é a visita de um profissional destes não mais que duas vezes por semana; de resto, não se trata de uma instituição médica, mas de uma instância da ordem absolutista francesa.
           
Ligadas ao estabelecimento do poder real, em 1676, outro decreto real dispõe a criação de um Hôpital em cada cidade do reino; em 1789 existem 32 cidades com estas instituições em toda França. Também a Igreja encabeçava este movimento com instituições próprias, reformando-as e adaptando-as às novas necessidades da ordem Bourbon. No próprio Hôpital há um duplo caráter variante entre o laico e o confessional. Se os bispos participam da administração, são les principaux citoyens que exercem o papel fundamental. Se a vida dos internos tem um caráter monástico, ao mesmo tempo as lettres de cachê[43] — operação do poder monástico — são um dos instrumentos fundamentais do internamento. Mescla-se o duplo caráter da caridade eclesiástica com os pobres com o impulso burguês de pôr este mundo do desregramento, da miséria, nos limites da ordem mercantil-urbana emergente. Serão nos edifícios dos antigos leprosários que se colocarão estas novas instituições da ordem.
           
Este movimento é europeu. Na Inglaterra elisabetana criam-se as houses of correction, 1575, em cada condado; adiante, dada a falência inicial, prescreve-se o trabalho dos internos como forma de custear a manutenção da instituição. Já em 1697 é a vez da emergência das worhouses, a primeira em Bristol, mas logo estendida a todo o país. Na futura Alemanha, Hamburgo cria em 1620 a primeira Zuchthäusern, casas de reprodução ou prisões. Enfim em toda a Europa, seja anglo-saxã, latina ou germânica surgem prisões, hospitais, casas de força, etc, que em poucos anos formarão uma rede de instituições onde jovens, condenados, miseráveis e insensatos grassaram como população própria. Enfim, por trás do internamento destas figuras distintas encontra-se a emergência de outra percepção da miséria, de resposta aos problemas econômicos do desemprego e da ociosidade aliadas a uma nova ética do trabalho.
           
Para os Reformadores protestantes, a riqueza e a pobreza são sinais de deus, sendo a primeira sinal de eleição divina e a segunda castigo. Isto esvazia a caridade medieval católica: é a fé que aproxima de deus, não suas obras, pois as obras devem ser produtos da fé não o contrário. Por isso é o Estado que deve assumir este papel, não associações civis, donde a laicização da caridade, movimento característico da Idade Clássica. Se antes a loucura tinha um caráter ambíguo, entre o sagrado e o profano, agora, sob a égide protestante, ela se torna fonte da desordem social, assim como a miséria torna-se castigo divino e desregramento moral.
           
No seio do catolicismo, dá-se a laicização por outros meios; no Concílio de Trento — realizado de 1545 a 1563 as idéias do humanista de origem ibérica J. L. Vives influenciam os rumos da Contra-Reforma; este Concílio defende a designação de magistrados com a tarefa de arrolar os pobres da cidade, investigando suas vidas e moral, para enquadrar-lhes e internar os mais obstinados em casas de trabalho. Embora muitos tenham resistido a estas idéias, aos poucos o catolicismo aproxima-se delas, muitas já em voga nos países protestantes: os pobres deixam de ser enviados de deus para estimular o exercício da caridade e da piedade tornando-se o rebotalho espiritual da sociedade, devendo se lhes dispensar compaixão somente por suas misérias corporais.

Dividindo os pobres em dois tipos bons e maus — quer dizer, submissos ou não ao internamento e à assistência, influenciados por deus ou pelo demônio, não merecedores do castigo ou merecedores — a Igreja entra nesse movimento de desmistificação da miséria, no qual o pobre é previamente valorado enquanto sujeito moral e a pobreza tornada objeto que cumpre ao estado organizar. Esta assunção da pobreza não mais como objeto de uma experiência mística e sim como experiência social passível de medidas de saneamento social, colocará os pobres ao lado do louco e dos desempregados, nestes espaços de exclusão que a Idade Clássica criou.
           
O internamento é uma medida de polícia[44] no sentido Clássico: medidas que ligam o trabalho às necessidades daqueles que não trabalham. Antes de qualquer imperativo médico ou filantrópico é o imperativo do trabalho que torna o internamento necessário. Isto explica porque o decreto de 1656 toma a mendicância e a ociosidade como fonte de desordens.
           
Em 1559, 30% da população de 100.000 habitantes de Paris é mendicante. Desde o século 16, a administração da cidade tentava enquadrar esta massa urbana: em 1532 um edito do Parlamento citadino obriga os mendigos a trabalharem limpando os esgotos da cidade; em 1534, outro edito sanciona que os pobres (camponeses, sem terra, desertores, desempregados, doentes, etc.) abandonem a cidade; um decreto de 1606, completando o de 1534, legisla que os pobres devem ser marcados e ter a cabeça raspada antes de serem expulsos, sendo impedidos de retornar por arqueiros.
           
Neste contexto de guerras religiosas, de um mercantilismo emergente e de impossibilidade de organização do movimento operário; de luta entre Igreja e Parlamento, o Hôpital — criação parlamentar — vem banir a exclusão simples, em troca da criação de uma rede de internamento, que postula obrigações aos internos. Em quatro anos, serão 11000 os internos do Hôpital Général de Paris. Nos interstícios do século XVII, o Hôpital se encarrega dos primeiros efeitos da crise econômica originada do arrocho salarial, inflação e descenso da economia espanhola, então a mais importante da Europa. Se nestes períodos de crise, o Hôpital assegura a ordem internando desempregados e vagabundos, nos tempos de crescimento seu papel é oferecer trabalho, garantindo a prosperidade.  “A alternância é clara: mão-de-obra barata, em tempos de pleno emprego e de salários altos; e, em períodos de desemprego, reabsorção dos ociosos e proteção social contra a agitação e os motins” (FOUCAULT, 1972, p. 79).
           
Pelas condições de trabalho e produção, os internos recebem menos que os não-internos, o que leva, progressivamente, a uma concorrência muito aguda com as manufaturas. Diante do perigo da concorrência, aos poucos o trabalho é extinto nas instituições de internamento. Enfim, a significação que Colbert[45] quis dar ao internamento — econômica, laborial e de controle — falhou em seus termos econômicos, embora tenha conseguido evitar os levantes sociais da massa urbana miserável da época. No fim do século XIX o fechamento das casas de internamento na Europa deixará patente o fracasso destas enquanto resposta aos problemas da nascente sociedade industrial.
           
Contudo, o internamento possui um sentido ético também. Se na Idade Média o pior pecado é a soberba e na Renascença, a avareza; na Idade Clássica é a preguiça que vem assumir este papel: ela é esperar a generosidade da natureza mesmo após a queda de Adão. Nos interstícios entre trabalho e sua significação ética, o louco sofre a condenação moral enquanto ocioso, que redunda em seu internamento prático no mundo burguês da produção então em formação.
           
Na realidade este sentido ético do Hôpital é o mais fundamental. A pobreza é fruto não da escassez, mas do desregramento moral, da falta de modos e da preguiça. Compete ao Hôpital tornar toda essa massa urbana moralmente libertina em força útil à sociedade. O trabalho aproxima-se da ascese, e as casas de internamento sintetizam o imperativo moral do trabalho com a lei civil que regulamenta as relações sociais. O sonho da cidade burguesa se estabelece: o estado produzindo verdade, administrando-a e fazendo-a majorar suas forças; seja na Europa protestante ou na católica, o objetivo é evitar o pecado e buscar a beatitude ética para manter a ordem moral da sociedade. Nos primórdio de nossa experiência da loucura, a Idade Clássica; a loucura como impossibilidade do trabalho e da integração social; e o internamento, mudando seu sentido em relação à Idade Média, torna-se instrumento econômico e social de manutenção da ordem ético-política-econômica do mundo mercantilista e absolutista.

*

O início do século XX viu o desenvolvimento de uma corrente historiográfica da psiquiatria situar o internamento como o ápice de uma finalidade social, tal seja, a da sociedade eliminar de si os elementos nocivos. Supondo uma loucura que foi sempre a mesma, tomam que no momento do internamento, momento do mercantilismo, o que ocorria era que a ciência médica positiva trazia à tona a verdade da loucura, perdida de si mesma; por baixo da sensibilidade social, que percebia o louco como associaux, a consciência médica fez brilhar a realidade da loucura ela mesma..

            Falta-lhes história: o internamento não foi dirigido aos loucos e sequer visa eliminar os associaux. O reconhecimento do louco como Outro foi criado, e é esta criação que permitiu interná-lo. A loucura não deitou imóvel na história; uma série de operações a fez deixar de ser familiar e a tornou passível de banimento. A experiência que o homem da Idade Clássica teve da loucura foi a que possibilitou a mesma experiência que temos dela hoje: nós do lado de fora, o louco no hospício.
           
Dentre os passíveis de serem internados, não só os loucos, mas os mendigos, os miseráveis, os desempregados, os velhos, os incorrigíveis. Esta unidade, estranha para nós, é a base de nossa experiência da loucura; e é por isso que é a experiência que a Idade Clássica teve da loucura que deve ser interrogada, não a psiquiatria — mais recente que o próprio internamento. O internamento criou todo um novo campo de experiências, um novo mundo ético e novas formas de integração social. Se o fim do século XVIII conseguirá enxergar um parentesco entre os magos, os alquimistas, os profanadores e os loucos, foi a Idade Clássica que o possibilitou.
           
Os doentes venéreos, por exemplo. Antes do Renascimento, eram somente um grupo dentre os vários doentes, e, assim, deles se exigia o mesmo: uma confissão, e, após, seriam tratados. Com o advento do Ressurgimento, eis que os venéreos tornam-se alvo da punição divina destinada aos libidinosos. Expulsos do Hôtel Dieu, será no Hôpital Général que encontrarão abrigo. Ou seja, a doença deixa de ter um caráter apocalíptico para tornar-se índice de culpabilidade por um pecado. No caso dos venéreos, a terapêutica envolvia sangrias, purgações, banhos, confissões e fricções com hidrargírio; terminava com uma longa sangria, para que os humores mórbidos vazassem. Fica claro como medicina e moral se complementavam, como uma trabalhava para a outra, e como ambas se intercalavam nesta estranha terapêutica, que não teme, de forma alguma, ser dolorosa e marcar a carne.

Ocupando o mesmo espaço por mais de cem anos, veremos esta terapêutica ser aplicada também aos loucos: a Idade Clássica havia constituído os parentescos entre desrazão e pecado, e o louco também deveria ser purgado. O racionalismo, pois, sobrepunha cura e castigo: a repressão na terra era como que o prelúdio da ira divina do pós-vida. Curar o corpo e purificar a alma; já os gregos o faziam, mas somente o século XVII, somente a razão cristã dará a esta união entre moral e medicina tome a forma da repressão, cujo ápice será, sem dúvida, o tratamento moral de Pinel, de Esquirol e de Leuret.

Vejamos o caso da sodomia. Até o século XVIII o tratamento a se dispensar ao louco é o ignis et incendium: o sodomita, o mago e o herege tem a mesma sorte. A Idade Clássica terminará mesmo com toda uma literatura erudita libertina, que havia passado incólume pela Renascença. Se o platonismo dividia o amor, tomado como uma forma de saber, em diversos tipos, a Idade Clássica dividi-lo-á em dois tipos, o amor de razão e o de desrazão, este último sendo aquele do sodomita. Eis aqui a origem da ligação entre loucura e sexo. Da mesma forma as prostitutas e la débauche são experimentadas, e o destino é o mesmo, as casa de força.

Em uma época onde a ética sexual é submetida a moral familiar, a polícia pode prender muitos desrazoáveis da genitália sem processos, a fim de salvaguardar a  moral pública. A moral burguesa fará cair o amor cortês: o sagrado é a aliança[46], não os sentimentos. É no interior do casamento que deve dar-se o amor; fora dele, prolifera a loucura, a desrazão amorosa e sexual. A ordem familiar é implacável na luta contra a desrazão sexual; e, aqui neste tempo, os conflitos entre família e individuo são questões públicas. Somente com Breteuil (ministro), 1784, é que se principiará o movimento de torná-las questões privadas. Para o classicismo todas as irregularidades do sexo têm como denominador comum a loucura; sendo culpada por todas estas desrazões, esta culpabilidade servirá como substrato para o desenvolvimento da psicopatologia.

Também os sacrílegos, blasfemadores e profanadores têm sua vaga reservada nas casa de internamento, bem como suas punições descritas nos códices penais-corporais, como era a prática da época; por exemplo, cortar fora as línguas daqueles que mal-diziam o deus e o divino. Toda uma série de outros comportamentos, até então encarados a partir de um viés religioso, perderão a ligação com o divino; continuarão a ser condenados, mas de um ponto de vista moral: suicidas, magos, alquimistas, bruxos. Cumpre que sejam condenados, cumpre castigá-los, mas por suas infrações morais, por representarem um perigo para a ordem social.

Todas estas práticas representavam, na sensibilidade clássica, ilusões. E forçar à verdade é o primeiro sentido do internamento. Se compete ao estado velar pelas crenças e pela verdade, é porque esta faz parte da ordem. Dentro da maison d’internement é impossível fugir da verdade.

“Estranha área de aplicação, portanto, das medidas de internamento. Venéreos, débauches, dissipadores, homossexuais, blasfemadores, alquimistas, libertinos: toda uma população de estranhas matizes se encontra de um golpe, na segunda metade do século XVII, rejeitada, doutro lado de uma linha de divisão, e reclusa nos asilos” (FOUCAULT, 1972, p. 116).

Os desvios religiosos e a medicina
Em La vida de los hombres infames, Foucault nos descreve outro momento, senão chave, ao menos interessante na história da formação da psiquiatria e do internamento: o caso dos desvios religiosos. No século XVI o diabo ainda habitava o mundo e, vez ou outra, assumia o controle dos incautos, tornando-se senhor do corpo e da alma de alguns. Neste contexto, a bruxaria ocupa um papel fundamental na mentalidade e na articulação desta com as relações de poder.

A medicina pode ser analisada a partir de seu funcionamento social: o papel e posição do médico, a forma da sua prática e os objetos de seu campo de ação (os objetos medicalizáveis). Não existe algo como uma medicina universal: as distintas culturas definem formas próprias, o campo dos sofrimentos e dos desvios, e lhes medicaliza sim ou não — isto partindo do pressuposto de que medicalizam algo. A medicina do século XIX buscou estabelecer uma divisão universal entre o normal e o patológico. A medicina atual deu-se conta da relatividade do normal e o do patológico: variações dentro do saber médico, o sistema de valores de uma sociedade, a forma de vida da população, sua relação com a morte, as formas de trabalho, etc.
           
Assim é que a medicina do limiar entre o Renascimento e a Idade Clássica, orientada por toda uma lógica própria de diagnósticos e terapêuticas — o regime da crise[47] — tinha como um de seus principais objetos de estudo a questão da bruxaria e dos sacrilégios. Molitor (sec. XV), Erastus e Weyer (sec. XVI) defendiam que as bruxas não tinham poderes reais, e que se deveria confiar em deus; contudo, defendiam punições capitais para as acusadas de feitiçaria, não pelos poderes que afirmam ter, mas pela aliança que fizeram com o diabo. Nem estes médicos de então, nem Sprenger, Scribonius ou Bodino questionam a existência do demônio: as polêmicas envolvem suas formas de ação.
           
Outros debates se desenrolavam então:

1. Acerca do diabo: este é um anjo, malgrado tudo, tendo, pois somente ascendência sobre os espíritos, nunca sobre os corpos, submetidos a soberania de deus; assim Erastus conclui que o diabo tem pouco poder sobre os corpos e as coisas, embora seja muito poderoso em relação as almas.

2. Assim, o diabo tende a agir sobre os espíritos mais frágeis de vontade e menos piedosos: as mulheres (que é inconstante, impaciente, melancólico e malicioso: Meyer apud FOUCAULT, 1996, p. 14), os melancólicos (Crisóstomo: o diabo submete a todos que domina por meio da irritação ou da tristeza) e os insensatos (que, tendo o pensamento ofuscado pela ação dos humores, tem maior possibilidade de serem corrompidos pelo diabo). O diabo, pois, sem poder alterar a ordem do mundo, submetida a deus, consegue se aproveitar dos defeitos que a ordem provoca nas almas.

3. O diabo atua por meio do engano, sobretudo; não podendo atuar nas próprias coisas, atua na forma como as imagens se transmitem à alma: os sonhos pertencem ao diabo, este agindo nas fronteiras entre o mundo e o homem.

4. Se o diabo pode intervir no corpo, ele o faz por toda uma intrincada rede de ligações, de cumplicidades e coisas em comum; se a imaginação é a faculdade localizada precisamente na fronteira entre o corpo e a alma, juntamente com os sentidos, os nervos e os humores, é certo que o diabo tem ascensão sobre eles. Assim, o diabo sabe operar e colocar em sintonia as distintas faculdades do corpo e do espírito para ludibriar e fazer real suas ilusões.

5. O maior logro de Satã é conseguir enganar mesmo os crentes, mesmo aqueles que, no ato que denunciam as bruxas, afirmam tê-las vista no sabbat, são ainda servos do Belzebu, por sua descrença e por trazer as maquinações do Caído para o seio da igreja (Weyer). Outros diziam o contrário, inclusive acusando Weyer de bruxo: Scrigonius afirma que o Satã sabia como seria ridicularizado se sua influência se reduzisse a sonhos e fantasmas; assim, o máximo da ilusão é acreditar que os poderes das bruxas são somente ilusão. Em último caso, Satã coloca aos homens em um círculo: quem condena Satã reafirma seus poderes, e quem o nega faz o mesmo.
           
O diabo permanece em uma ausência perpétua: age por meio de imagens falsas que são fantasias, pois. O demoníaco está, assim, próximo e distante; os médicos lhe reduzem a ação às coisas animadas, à alma, à imaginação, na fronteira entre mundo e interior; estes médicos do séc. XVI, reduzindo assim a ação do diabo ao corpo, fronteira entre mundo interior e exterior, abriam caminho para a redução naturalista dos séculos posteriores. Situado aí, Satã se converte no porteiro do acesso à verdade: próximo do erro, mesmo quando se denuncia a ação do diabo, ainda não se sabe se ela, a verdade, já não está no próprio ato que a denúncia. Enfim, estas discussões sobre o diabo podem ser reduzidas aos debates entre verdade e erro, ser e não ser, aparência e verdade.
           
A partir destas discussões para-religiosas elaborou-se algo como uma medicalização que buscava demonstrar a existência a partir de uma análise da ação demoníaca sobre as almas e corpos, sem nenhuma explicação que chamaríamos psicológica ou, mesmo, qualquer noção, ainda que embrionária, de uma divisão médico de tipo normal-patológico: sua referência é ilusão e erro.
*
            A medicina do século XVI não se desenvolve a partir do estabelecimento do normal ou do patológico, mas do que afeta ao corpo, à alma e à imaginação, em sua fronteira; não há enfermidade, mas, antes, uma artimanha do diabo para submeter os outros a seu logro. Por isso todos que se equivocam terminaram por ocupar o mesmo lugar de exclusão.
           
Se em relação a questão da bruxaria e da possessão, a medicina, em sua abordagem clássica, tomava estes fenômenos como patologias que não haviam sido reconhecidas como tais: histéricas, paranóicas, psicóticos alucinatórios, etc; o que importa, contudo, é como foi possível que a bruxa e o possuído, perfeitamente integrados mesmo em sua exclusão, como eles puderam ser medicalizados?
           
O juiz, o cura, o rei, o médico e a população. Todos concatenados para perseguir os possuídos e os feiticeiros, adeptos de Satanás. No século XVIII, contudo, dominará a medicina dos humores[48], onde estes excluídos se perderão, conquanto no século XIX reencontrarão seu lugar sob o nome de histéricas.
           
No século XVI já o médico contava entre os que levavam adiante a luta contra a possessão. Atritando com a igreja, os médicos acreditavam que, em fato, o diabo conduzia as bruxas ao sabbat, e atuava sobre os corpos, sobre os humores e as mentes, para ganhar-lhes a seu culto. Assim é que J. Meyer defende que a enfermidade advêm da ação do diabo. A Igreja era conta, no que os juízes lha apoiavam com reticências.
           
Já no século XVII ocorrem mudanças. Os casos de bruxaria que tiveram destaque no período não são, como se pensa comumente, frutos da ação da Igreja e da Inquisição no contexto da Contrarreforma. Os processos revelam que neles sempre havia um conflito entre o parlamento e a igreja.
           
Em 1598 o tribunal de Angers condenou um jovem, Roulet, por haver se transformado em lobo e comido várias crianças, o que o jovem concordava e assumia a culpa; o tribunal de Paris apelou e o jovem foi considerado louco e conduzido a um hospital e condenado a conhecer deus. Outro caso parecido ocorreu em Bordeaux, poucos anos depois: um jovem afirmava haver comido várias crianças sob o estado de lobo; o tribunal lhe condenou a passar o resto da vida em um convento, por ter obviamente menos razão que uma criança de oito anos e desconhecer a deus devido à pobreza.         
           
Estas decisões opunham-se a jurisprudência e as recomendações de Bodino e de Meyer; estes defendiam que os casos de licantropia deveriam ser tratados como corrupção da imaginação, e que a ação do diabo resumia-se a corrompê-la e colocar lobos reais no caminho das vitimas. Não era esse o interesse dos tribunais: lhes importava pouco os fatos ocorridos ou a possessão demoníaca, mas, sim, a imputabilidade do autor por irresponsabilidade — imbecilidade ou demência —, seguindo, pois, uma a tradição romana. Esta situação se inverteu rápido: a Igreja passou a ser mais critica em relação aos casos suspeitos de bruxaria, estabelecendo, no Sínodo de Reims, inúmeras precauções a se tomar antes de exorcizar os suspeitos; neste sentido, intervieram no caso de Marta Brossier, 1583, proibindo que qualquer sacerdote a exorcizasse. Os parlamentos, por seu turno, queriam ser severos na aplicação das leis.

Esta oposição entre o ceticismo eclesiástico e a obstinação dos tribunais se agrava: no séc XVII a maior parte das condenações por bruxaria são contra padres, o que era muito incomum até então.  Isto indica os poderes ambíguos que o sacerdote adquiria, no final do Renascimento, na mentalidade popular. Se, como afirmava De Lancre, do tribunal de Bordeaux, os mais sábios são mais perigosos, o sacerdote ocupava, pois, uma dupla posição: sendo o mais sagrado, deveria estar o mais longe dos atos de bruxaria. A burguesia tinha claro que o sacerdote não pode ser perdoado de forma alguma dos casos de bruxaria: era o sacerdócio tendo de se submeter ao bem da sociedade, quer dizer, à razão de estado; tendo este aval, os tribunais buscaram purificar a igreja dos elementos bruxos, ao mesmo tempo que combatiam as influências do sacerdote sobre o povo.
           
Foi dúbia a atitude da igreja. Sua fração espiritual (que combatia a interferência religiosa em assuntos temporais) apoiava as ações para combater a fração secular da igreja, justamente a maior vítima da depuração penal. A fração temporal da Igreja era muito cética quanto os casos de bruxaria e de possessão: muitos defendiam que não se tratava senão de casos de melancolia, ligada, assim, a bílis negra.

“Enfim, foram as  autoridades eclesiásticas que pediram as Faculdades de Medicina consultas e informes periciais (...) [já que] as autoridades eclesiásticas da igreja manifestavam um a grande desconfiança malgrado o zelo mostrado pelo clero regular e que, em numerosas circunstâncias, os bispos apelaram aos médicos para evitar a ingerência conjunta dos tribunais e das ordens religiosas” (FOUCAULT, 1996, p. 27)

            Nesse conflito entre a Igreja secular de um lado, e os tribunais e as ordens religiosas de outro, venceu a Igreja com o apoio do poder real. Se no começo do século XVII ainda o poder real mantinha alguns casos de bruxaria, estes foram diminuídas no correr dos anos, ao ponto de, já na metade do século, 1670, o rei mandar intervir em condenações de bruxos à fogueira pelo tribunal de Rouen, que havia se mantido fora desse processo. Os juízes de Rouen defendem sua posição; a Igreja intervém e não trata de religião: seus argumentos são civis e devem ser inscritos no contexto da razão de estado.
           
Em 26 de abril de 1672, o conselho de estado manda soltar todos os acusados de bruxaria na Normandia e ordena que tal seja a jurisdição a ser seguida por todos os tribunais de França. De agora em diante, bruxos, sortílegos, magos e afins tem um destino: o internamento no Hôpital Général. Não importa tanto mais sua responsabilidade acerca dos crimes eventualmente conhecidos. “A bruxaria é já considerada unicamente em relação com a ordem do estado moderno: a eficácia da operação é negada, mas não a intenção que implica, nem tampouco a desordem que suscita. O âmbito de sua realidade transferiu-se a um mundo moral e social” (ibidem, p. 29-30).

            A última fase deste processo envolve as lutas religiosas em França. Com efeito, já em fins do século XVII, os protestantes e os jansenitas, oprimidos pela monarquia católica, começam a pregar a partir de um forte sentimento religioso profético, com milagres e êxtases religiosos. A Igreja e o estado, para combatê-los, intervém nos tribunais: traça-se um paralelo entre fanatismo e loucura; difunde-se que os ditos milagres são naturais, não divinos. Enfim, as oposições religiosas conheceram o internamento.
           
A igreja buscava a medicalização destes fenômenos religiosos dos protestantes para mostrar que não eram milagrosos, mas frutos de mentes insensatas. Brueys, em sua Histoire de Le fanatisme dans notre temps diz que

"se não se conhece ‘a máquina do corpo humano’, se podem confundir os fenômenos de fanatismo com as ‘coisas sobrenaturais’... ‘bem é verdade que estes fenômenos são geralmente apenas uma verdadeira enfermidade’” (apud  FOUCAULT, 1996, p. 31).

Aqui enfermidade tem outro sentido aqui: é maldade, mentira e superstição.

*

Nem ciência nem o direito dão coerência a esta população, a população dos internatos de então. Somente a forma como são percebidos, isto é, enquanto desrazoáveis. Se a Idade Média e o Renascimento pressentiam o louco como perigo, a Idade Clássica o localizará. Aos poucos, o louco passará a ser medido em relação à norma social; até então, particularmente no campo da arte, o louco também era isolado, mas de maneira abstrata. Tornado concreto, chegara o momento de alienar os alienado, de isolá-los.

Todo o campo de objetividade epistêmica que se insinuará mais e mais sobre o louco somente será possível depois deste movimento que o isolou a partir de uma oposição ética, de uma divisão entre razão e loucura; eis aqui a base de nossa moderna experiência da loucura.





7. Medicina ou Psiquiatria?

Antes de Pinel, de Tuke e de Chiaruggi, tidos como os fundadores da psiquiatria, já existia, pois, o internamento, conforme vimos. O louco, tornado parte de uma população urbana muito mais ampla, já tinha seu lugar reservado nos estabelecimentos de força. Vimos também que inúmeras problemáticas, que a medicina de hoje, no mínimo, tomaria como ridículas, ocupavam um papel importante nos debates científicos de então: o caráter da bruxaria, a posição do Caído na ordem das coisas e sua influência nos insensatos, as profilaxias, os rituais a empreender, etc.

Com as teses de Newton e a difusão do pensamento de Galileu, uma série de correntes de pensamento viram-se subitamente alçadas a um primeiro plano na Europa. A Iatroquímica, por exemplo, que defendia um diagnóstico e uma terapêutica pautados no controle de substâncias.  Identificava-se a origem das doenças ainda por meio das velhas teorias dos humores, de origem galenico-hipocrática, quando não por outros tipos de substâncias, como ácidos e bases. Do mesmo modo, a iatromecânica, da qual trataremos mais a frente, tomava que as fibras, e não os humores, eram os principais elementos do corpo e que a alteração de seu estado de tensão, como seu afrouxamento conduziriam á aparição das doenças mentais[49].

Apesar disto, era ainda a teoria dos humores muito utilizada em medicina. Formulada por Hipócrates, defendia uma tese segundo a qual haveria quatro humores no corpo humano, correspondentes a sua parte líquida, sendo eles, o sangue, a bile amarela, a bile negra e o flegma. A saúde ou a doença dependeriam do correto equilíbrio entre os humores; por meio da noção de crise, o médico deveria intervir no momento certo, no oligokairos, para restabelecer o equilíbrio, por meio de duchas, purgativos, lavagens, sucções e sangrias — já tratamos de tudo isto.

As escolas vitalistas, especialmente a de Montpelier, que formou inclusive Pinel, pipocavam e, neste sentido, não havia absolutamente algo como uma medicina mental ou, mesmo, o conceito de doença mental. A medicina de então atuava sobre dois outros campos: o das doenças vaporosas e das doenças nervosas.

Para o contexto da Ilustração, o comportamento correto era aquele que se adaptava às normas vigentes; além do que, havia a noção do déspota esclarecido, aquele que capaz de formular leis protetoras do corpo social. As filosofias da época, malgrado suas belas teorias, tinham uma inaplicação evidente. Naquele momento mesmo o campo médico valia-se de analogias de cunho mecânico, sendo o intento do médico conhecer as causas naturais da doença, à moda newtoniana. O campo científico-filosófico cindia-se dentro de uma oposição de método: de um lado, o homem racional buscava estabelecer o quadro hierárquico e natural, sobremaneira influenciados pelas experiências de Newton; de outro, buscava-se também explicar a ordem da natureza, salientando-se a sensibilidade como porta para o mundo interno. Para ambos, tratava-se de ordenar os conhecimentos, de forma hierárquica e distributiva — é o século de Lineu e de seu more botanico. Colocar as coisas em relação à era o procedimento básico e que fez carreira na medicina, particularmente em relação ao campo das doenças nervosas, tendo como resultado último a constituição da nosologia.
           
Neste período pré-psiquiátrico, duas medicinas se opõem: a medicina dos vapores e a medicina dos nervos. A primeira era muito antiga e remetia a Galeno enquanto que a segunda desenvolve-se na pegada da obra de Newton.

Desde Galeno, o grande médico do Lácio ao lado de Celsus, supunha-se que fermentações uterinas levariam a histeria, e mesmo o nome histeria é útero em grego (hysteron). Já na Idade Média desenvolveu-se uma terapêutica pautada em inalações fétidas e fumigações vaginais com odores agradáveis, que intentavam devolver ao útero seu valor natural e dissipar o efeito de coisas em decomposição como sangue menstrual e sêmen. Mesmo críticos como J. Fernel (1497-1558) acreditavam que os vapores pútridos uterinos alteravam o funcionamento normal dos órgãos e que, uma vez, no cérebro causariam loucura e furor. Em 1702, J. Purcell relacionou as doenças vaporosas com questões passionais. Em 1756, P. Hunauld defendia que a doença vaporosa era acompanha de uma série de caprichos e de comportamento estranhos[50].
           
Se o século das Luzes acreditava que tudo poderia ser explicado pela razão, várias crenças inexplicadas ainda viviam, Por exemplo, de que a mulher é um homem incompleto ou que ela é destinada a maternidade, postulados de Galeno[51]. Na Inglaterra e na Escócia as damas da alta estirpe aos poucos buscaram médicos que, paulatinamente, passaram a se preocupar com elas. W. Smillie e W. Hunter desenvolveram técnicas ginecológicas, por exemplo, aperfeiçoando o fórceps. Não imperava o amor nos matrimônios, em beneficio da mariage de raison[52] e muitas técnicas Era por sua fertilidade que se avaliava a mulher, reduzida a vida privada. As mulheres ocupavam um papel especial e a medicina tinha sob elas um olhar agudo, particularmente a medicina dos vapores.

“‘Vocês são apenas o seu sexo’ dizia-se a elas [as mulheres]. E este sexo, acrescentam os médicos, é frágil, quase sempre doente e sempre indutor da doença. E este movimento muito antigo se acelerou no século XVIII, chegando a patologização da mulher: o corpo da mulher torna-se objeto médico por excelência” (FOUCAULT, 2007c, p. 234)
           
Toda uma problemática greco-latina esquecida acerca da reprodução do aleitamento, dos casamentos, da reprodução e da contracepção surge ou ressurge no século XVIII. A tradição médica reforçava questões como a de que era vetado às lactantes terem novos filhos, fazendo proliferar as amas de leite, o que, contudo conduzia a uma alta taxa de mortalidade infantil, pois as mulheres tinham filhos atrás de filhos. Há toda uma campanha do mundo médico visando encorajar o processo de ablactação que culmina na criação da mamadeira em 1786[53].

            A problemática dos vapores, e amiúde o das doenças nervosas, não pode, de forma alguma ser desligada deste processo, pois as afecções desta estirpe atingiriam sobremaneira as damas — eram moléstias uterinas, sobretudo. Seus sintomas — como coréias, irritabilidade, mania, sonolência—, no entanto, poderiam ir além do útero. O movimento dos vapores no corpo, com a suavidade e volatilidade que lhes é característica, tornava todos os órgãos como potencialmente infectáveis Se atacassem o cérebro, por exemplo, poderiam gerar furor; se restritos ao útero, não era raro que gerassem furor genital, com as condutas sexuais antissociais que produzia.

Há de se notar também que, este processo de colocação em cena, por meios médicos, de questões referentes não somente aos comportamentos sexuais stricto senso, mas, relativas a questões demográficas, de natalidade, sem dúvida faz parte do movimento de formação da biopolítica. Mas tarde integrados, ao menos em parte à psiquiatria, estas questões tornar-se-ão centrais na integração entre medicina mental, anátomopolítica e biopolítica, ou, para ser mais claro, atuarão como fios-condutores de uma ampla medicalização da vida, com a disciplinarização necessária e a forja de dispositivos de controle.
   
No século das Luzes “a sensibilidade feminina, seu poder cativante e sedutor é perigosa para o homem, mas também o é quando aparecem vapores, pois as expõem a burla social ou submete-as aos caprichos mais estranhos” (SAURI, 2005, p. 77).

Doutro lado desta medicina está a medicina ilustrada. Th. Willis (1621-73) tem especial importância, pois aplicou com extremo rigor o modelo galiléico-newtoniano à medicina. É tido como o inventor do “sistema nervoso” pois postulou que a medula, o cérebro e os nervos tinham relações sistêmico-funcionais. O funcionamento deste sistema dava-se graças à ação dos espiritus animales — formados pelo sangue arterial destilado no cérebro — sendo móveis e atuantes nas sensações e movimentos. A alma sensível acoplava-se à alma racional, transcendente e material. Embora estas teorias fossem antigas, Wilis buscava uma explicação iatrogênica. Malgrado similares aos vapores, os espíritos animais circulariam pelo corpo através dos nervos e, tal qual os vapores, podiam gerar insanidade.
             
            Willis explicava a afecção espasmódica que é a histeria como tendo origem em um processo onde os espíritos animais, sobremaneira concentrados, levariam à disrupção da ordem natural e social, redundando na sobreposição da alma sensitiva à alma racional — a parte da alam encarregada dos juízos.

            Embora galênica em seu cerne, a teoria de Willis trazia várias novidades. Concebia-se que havia um princípio unitário regulador do organismo (que a doença alterava): distinguia entre forma anatômica e função fisiológica e que uma mesma função pode ser realizada por distintos órgãos. Muitas destas noções já haviam sido postuladas por Harvey no estudo da circulação. Além disto, como para Willis a origem de inúmeras morbidades era nervosa, cujo fundo comum era alterações motoras e sensitivas, a histeria tornava-se uma das patologias, juntamente com a apoplexia, mania, delírios, etc.

            É neste marco, onde se opõe vapores e nervos, que se consideravam a maior parte das afecções pouco tempo mais tarde incluídas no rol das doenças mentais. Não tinham, pois, existência distinta das demais doenças em algo como uma medicina mental: sua racionalidade era a mesma das demais doenças e, somente depois, com os fundadores, é que esta medicina mental se formulará

Cullen inventa a nosologia e a neurose
            Nesta pré-história da psiquiatria há, ainda, outro episódio que merece menção: a invenção da nosologia e da neurose.

            Em 1777 o médico escocês William Cullen publicou First Lines in the Practice of Physics, onde propunha o conceito de neurose como agrupador de uma série de morbidades cujo fundo comum era serem prenaturais, resultado de alterações no sistema nervoso particularmente na motricidade e na sensibilidade, além da pirexia não fazer parte dos sintomas primários. A intenção fundamental de Cullen era circunscrever o cada vez maior campo das enfermidades nervosas, com sua riqueza sintomatológica e pouca precisão. Pouco tempo antes, Cullen havia publicado um livro chamado Nosologia, onde propugnava a utilização dos procedimentos dos naturalistas na ordenação das enfermidades nervosas. Amplamente utilizada nos países latinos, sobretudo graças a Pinel e Chiaruggi, o termo nosologia caiu no ostracismo na Grã-Bretanha[54].

            Se em fins do século XVII a medicina já havia catalogado inúmeras espécies de doenças, reconhecendo em muitas seu caráter local. Os trabalhos de Morgagni mostraram a existência de patologias gerais, sem, contudo, dar conta daquelas que em sendo gerais possuíam sintomas inagrupáveis e sem substrato orgânico apontável. Cullen buscou resolver estas questões: a neurose não dependeria de nenhuma alteração local, mas do sistema nervoso central, à sensibilidade e à motricidade. 

Muito embora a revolução inglesa tenha aplacado as disputas religiosas, nem por isso estas cessaram. Ainda no século XVII Shaftsbury condenava os cultos chamativos e o comportamento entusiasmático dos quakers. O comportamento entusiasmado era condenado, pois, naquele período de Ilustração, o homem ilustrado era aquele que aderia a ordem social dada: o comportamento entusiasta levava a fenômenos inusitados e, em último caso, reviam as convenções sociais. O entusiasmo levava ao desenvolvimento de uma imaginação passional e à excitação, que, segundo Malebranche, citado por Sauri, era contagiosa e ameaçava todo o grupo. O entusiasmo e seus efeitos constituíam o campo do preternatural, i. é, daquilo que está por si fora do habitat; com o termo preternatural, o médico Ilustrado designava em suma o insólito que, embora sua especificidade, não extravasavam os limites da natureza, o que comportava também as enfermidades dos nervos. Rompendo os limites rígidos oitocentistas entre público e privado, as crises histéricas ou as entusiásticas desconcertavam. A sua ininteligibilidade fez com que Cullen classificasse as doenças mentais nestes termos.

O empirismo de Hume e de Locke, ao salientar a origem sensível das idéias, fez alimentar a busca pela origem sensível das loucuras e da relação destas com o cérebro. No século XVIII as experiências de Haller, que estimulava os músculos com eletricidade ou amônia, levaram-no a formular a tese segundo a qual o sistema nervoso tinha uma propriedade especifica que era a sensibilidade, a qual compartilhava com os órgãos que se relacionavam com ele. Disto Fouquet concluía que todos os órgãos, à exceção das mucosas, que são imóveis (por terem como base os nervos) ou são sensíveis ou podem se mover. Cullen se apropriou tanto das idéias de Haller quando das de Fouquet, ligando a noção de sensibilidade com a de irritabilidade, ambos relacionando-se com os sentimentos.

Os trabalhos de Galileu e Newton fundaram um novo paradigma para tratar a questão do movimento. Desde Aristóteles, o movimento era uma categoria que dizia respeito a uma mudança substancial. Rompendo com este paradigma, o pensamento contemporâneo considerava o movimento no interior de um dualismo móvel-motor, colocando em pauta, pois, a questão da causa eficiente. Na medicina isto se refletiu na iatromecânica, a qual já explicamos brevemente, e nos estudos acerca das fibras musculares que, contraídas, levam ao movimento, que também fizemos referência. Embora a influência destas idéias sobre Cullen, elas já haviam caído em descrédito. Contudo, Cullen entendia as convulsões uterinas, histéricas, hipocondríacas e intestinais como resultados de alterações nervosas transtornantes da mobilidade corporal, seguindo, desde modo, as idéias de F. Hoffmann (1680-1740). Este havia abandonado a teoria dos espíritos animais em benefício da noção de um principio movens, o éter, que não só garantia o tônus das fibras, como dava coerência e resistência ao corpo humano. Hoffmann postulava a existência de um fluido nervoso, cuja circulação garantia a contração e dilatação da duramater[55]. A atonia[56] e hipertonia[57] das fibras levavam a estados patológicos, pois perturbavam a circulação do fluido nervoso.

Estes postulados permitiram que Cullen empreendesse o desenho nosológico mais preciso das enfermidades nervosas. Para elaborar uma nosologia, Cullen descrevia como primeiro passo listar as notas tomadas, passando-se, pois, a operar sobre abstrações, não mais sobre concretudes, que serão organizadas segundo um código especifico estabelecido pelo nosólogo, segundo seus referenciais (sintomas, momento da aparição, cursus morbis, etc.). Operando em um espaço ideal, o nosólogo do Iluminismo desconsiderava as interações com a realidade, deixando, pois, as causas e o sentido da enfermidade em segundo plano. Esta agrupação é que permite que se adote o more botanico. Ainda que insuficiente, estes procedimentos nosológicos serviram para dar alguma ordem ao confuso campo patológico de então. Em relação à neurose, Cullen registrou o que ela era concluindo o que deveria ser: a partir de um modelo abstrato, especificou as características da neurose, esquecendo, pois, as manifestações clinicas concretas da morbidez.

O modelo do more botânico, proposto por Lineu, prescrevia as classificações segundo semelhanças sintomatológicas. Aplicado na medicina, isto levou a um agrupamento sintomatológico, marcadamente empírico, das doenças, em agrupamentos abstratos cada vez mais amplos: espécies, gêneros, ordens e classes. Dando primazia ao Olhar, e buscando classificar o real em função deste, a nosologia intentava estabelecer um espaço abstrato onde o que é desse condições de se estabelecer o vir-a-ser da doença. Atuando no espaço ideal do quadro, onde características eram distribuídas idealmente, confundiam os classificadores seus princípios ordenadores com a própria realidade.

Se contribuíram efetivamente com a ordenação das afecções — e com a formação da psiquiatria, pois — por outro lado, os nosólogos constituíram um conhecimento abstrato, que deixava-se de se referir ao ordenado, referindo-se, antes à própria classificação — o que Pinel e mesmo Lineu buscaram combater preenchendo os espaços em branco do quadro nosológico com agrupamentos heurísticos advindos de similaridades superficiais.

Vejamos a nosologia culleriana: ele considerava que neuroses, tétanos, epilepsias e palpítações pertenciam a uma mesma agrupação, a dos espamos, sua semelhança sintomática. As doenças nervosas com alterações motoras e sensitivas foram agrupadas por ele em outra classe, chamada de neurose

Criando novas categorias, a nosologia necessitou de novos vocábulos para dar conta delas. Assim, com o termo neurose, Cullen pretendia dar realidade semântica e classificatória às enfermidades nervosas. Bem se sabe que, no século das Luzes, o nome adquiria importância nodal: ele garantia o bom entendimento e o exato ordenamento dos nomes era o exato ordenamento das coisas — não fora Adão que dera o Nome sob inspiração direta do Altíssimo? Dar o nome correto e classificar corretamente era necessário para dar a cada fenômeno seu lugar correto e exato na ordem das coisas e no ficheiro do cientista.

Para Cullen tratava-se, antes, não de uma neurose, mas, pois, de neuroses, uma classe de doenças que cobriria todo um campo mórbido heterogêneo: “afecções gerais do sistema nervoso, não acompanhadas de febre e atingindo de forma privilegiada a sensibilidade e o movimento” (PEREIRA, 2005, p. 130). As neuroses englobavam, assim, os comas (como a apoplexia), as adinamias (enfraquecimento dos movimentos nas funções vitais), as afecções espamódicas sem febre (tétano, epilepsia, asma, histeria) e as vesânias (mania, i. é, loucura; melancolia).

Embora Cullen tenha influenciado muitos, particularmente Charcot e Ballet[58], aos poucos este sentido que Cullen dava à neurose perdeu força e já Pinel as definia como doenças nervosas sem base orgânica O sentido contemporâneo, contudo, somente advirá no final do século seguinte e começo do XX com Janet, Breuer e Freud, sobretudo: morbidez mental que mantém o eu intacto.


7.1. Rumo à biopolítica: as três medicinas sociais da Ilustração e a tecnologia do hospital

No final do século XVIII, nas articulações que armavam o século da burguesia, surgiam novos projetos, instituições e linhas de demarcação que somente hoje, com o distanciamento necessário, é possível ver demarcando-se no passado.

Dentre estes novos caminhos que se abriam, cumpre que ressaltemos, neste curto ensaio, a emergência do que se convencionou chamar de medicina social, que ocupa um papel duplo, sem dúvida, pois se pauta em uma nova posição do hospital, que se tornava médico em fins do século XVIII — portanto, em uma anatomopolítica—, e, ao mesmo tempo, com as questões que coloca em relação às populações e ao seu modo de vida, é um dos carros-chefe da biopolítica. De acordo com Foucault, os séculos XVIII e XIX desenvolveram três versões da medicina social: a medicina de estado, a medicina urbana e a medicina do trabalho. Vejamos cada uma delas:

A medicina de estado desenvolveu-se desenvolvida no que viria a ser a Alemanha, na primeira metade do século XVIII juntamente ao desenvolvimento da noção de Staadtswissenschaft, ciência do estado conhecimento dos recursos e da população de um espaço e do funcionamento do aparelho político, bem como dos procedimentos por meio dos quais o estado garante seu funcionamento. Lembremos a situação destes territórios no século XVIII, que, muito fragmentados em pequenos reinos e cidades-livres, levava ao imperativo de que os pequenos estados buscassem conhecer-se, saber como funcionavam. Tradicionalistas e estagnados economicamente, à burguesia germânica restou aguardar até o século XIX para fundar seu estado-nação, tendo que apoiar-se, pois, em um bem-organizada e forte burocracia estatal . Por isso o primeiro estado moderno europeu é a Prússia, malgrado ser uma das regiões mais pobres, menos desenvolvidas e mais conflituosas da Europa.

Se desde o século XVI há uma preocupação com a saúde das populações européias, trata-se de uma preocupação mercantilista: aumentar a produção da população para fazer subir o fluxo da moeda e, assim, com o influxo de riquezas, aumentar a potência do estado; i. é, fazer crescer a população para fazer crescer a riqueza do estado. A Alemanha tem outro desenvolvimento: ali se desenvolveu uma Medizinichepolizei, “política médica”, termo cunhado em 1764 por W. T. Ray. Tratava-se de contabilizar os fenômenos mórbidos da população, o que foi seguido pela normalização da prática e dos conteúdos ensinados nas escolas de medicina; organizou-se toda uma administração da prática e do saber médico, bem como das relações entre médicos e população, além de tornarem-se os próprios médicos administradores da saúde.

Surgida antes mesmo da medicina cientifica, o objetivo da Medizinichepolizei não é o corpo enquanto força de trabalho, mas enquanto força de estado, pois a população é corpo. Portanto, uma medicina que já nasce estatizada e que servirá de modelo para o desenvolvimento de toda medicina social nos séculos XVII-XIX.

A segunda grande medicina social que se estabelece na Europa é a urbana, surgida na França, século XVIII. Até este século, uma cidade francesa era um emaranhado de territórios governados por poderes civis, eclesiásticos e monárquicos distintos. Em fins do século, urgia que a cidade se tornasse unitária: sendo centro comercial e produtivo, a cidade não poderia perpetuar-se fragmentada por inúmeras jurisdições. A emergência do mundo urbano também simplificava as lutas políticas, antes dispersas entre disputas entre corporações, ofícios, etc., e tipicamente campesinas; agora, mais e mais caminhavam para se tornar lutas entre ricos e pobres e, com isto, a necessidade de controlar as populações urbanas.   

Juntamente ao crescimento da cidade, emerge um pânico político-sanitário: medo do crescimento demográfico, das epidemias, dos esgotos, dos cemitérios, etc. Existiam, então, dois grandes esquemas de organização médica das cidades: o da lepra[59] (esquema religioso de purificação: segregação do doente do espaço urbano em espaços fora da cidade, como leprosários e manicômios) e o da peste[60] (esquema militar de revista: individualização dos habitantes, vigilância inspeção contínua com registro dos fatos). O modelo da peste, modelo da quarentena, servirá de base ao desenvolvimento da medicina urbana e da higiene pública.

Três objetivos desta medicina das cidades: 1. “analisar os lugares de acúmulo e amontoamento de tudo que, no espaço urbano, pode provocar doenças, lugares de formação e difusão de fenômenos epidêmicos ou endêmicos” (FOUCAULT, 2007c, p. 89); reestruturam-se os cemitérios e os matadouros, afastando-os da cidade rumo às periferias. 2. Controle de circulação das coisas, sobretudo água e o ar: no século XVIII tanto o ar quanto a água eram considerados elementos patógenos graças à noção de miasma, o ar pútrido que cercaria os doentes e os mortos; o ar deve circular, donde uma série de prescrições de reordenação do espaço urbano; a água era vista como dissipadora do miasma: ela o levaria para afora do espaço urbano, cumprindo que houvesse canais. 3. Por fim, o espaço urbano deve ser organizado de modo a garantir a distribuição dos bens necessários á vida comum: fontes de água, esgoto, etc.

A medicalização do espaço urbano contribui apara que a medicina passasse a integrar o discurso cientifico ainda no mesmo século XVIII. Enquanto medicina das condições de existência, do meio, passou-se progressivamente para uma análise dos organismos que compõe o meio, donde se desenvolverá a noção de salubridade — base da higiene pública e da medicina sanitária.

Por fim, a medicina social inglesa, medicina do trabalho, não pode ser entendidade se não for situada no contexto que a nutre: o da revolução industrial e do inchaço urbano. Até o segundo terço do século XIX, os pobres não eram enxergados como risco sanitário na medida em que as mínimas tarefas de limpeza e administração sanitária do espaço urbano eram feitas por eles: recolher dejetos, transportar água, etc.  Contudo, o crescimento populacional e as perspectivas sediciosas que a Revolução Francesa abrem para os pobres fazem mudar este cenário; além do que, uma grande epidemia de cólera tem lugar em Paris em 1832, alterando o espaço urbano em bairros ricos e pobres, dando ensejo para o que será a grande reforma urbana de Hoffman na década de 1870.

A partir da lei dos pobres, a medicina social inglesa tomará corpo com o desenvolvimento de uma assistência controlada que intentava agir tanto sobre a saúde e a pobreza dos pobres, quanto proteger os ricos de fenômenos epidêmicos. Este sistema será completado pelos de health service (vacinação obrigatória, registro de epidemias atuais ou possíveis, obrigatoriedade em declarar-se doente quando se estiver, etc.), que são administrados pelos health officers — 1875. Se a lei dos pobres dirigia-se somente a estes, esta social medicine aplica-se sobre toda a população inglesa. Esta medicalização suscitou uma série de resistências urbanas, muitas das quais assumiram formas religiosas que se mantém hodiernas.

A social medicine objetivava controlar o corpo das classes baixas para torná-las mais aptas ao trabalho e ao mesmo tempo reduzir-lhes a vontade sediciosa. Este sistema inglês ligava assistência médica aos pobres, controle da saúde da força de trabalho e esquadrinhamento médico da sociedade, e fazia a junção entre uma medicina administrativa, uma medicina assistencial e uma medicina privada. Justamente pela sua riqueza operacional e sistemática, a medicina inglesa foi à única a triunfar dentre estas três medicinas sociais.

O hospital
No mesmo turbilhão no qual estas três medicinas se encontram, a medicina terminaria por formular a sua principal tecnologia política: o hospital, entendido como instrumento e suporte da terapia.

O hospital que funciona na Europa desde a Idade Média não era uma instituição médica e de prática médica — não era uma instituição hospitalar, no sentido que damos hoje. Já vimos que até o século XVIII, o hospital é uma instituição de assistência aos pobres e não aos doentes, mas é também uma instituição de exclusão; é uma instituição de caridade destinada a garantir a salvação da alma tanto do pobre quanto do pessoal que nele trabalha. A prática médica, por seu turno, não tinha na instituição hospitalar seu lugar de formação em si e, tampouco, a prática médica supunha a intervenção contínua, própria a prática hospitalar; a intervenção médica dava-s em torno da “crise”: momento em que saúde e doença se enfrentam no doente. O médico deveria observar os sinais, elaborar o prognóstico, buscar ajudar a saúde na luta contra a doença, ou seja, tratava-se de uma relação absolutamente individual entre doente e médico. Em suma, as “séries hospital e medicina permaneceram, portanto, independentes, até o final do século XVIII” ((FOUCAULT, 2007c, p. 103).

Ao longo do século XVIII inúmeros inquéritos sobre o hospital se desenvolvem, com objetivos distintos, mas dentre os quais um se destaca: estabelecer um programa de reforma e reconstrução dos hospitais, pois se considerava que nenhuma teoria esgotava o tema e que somente um exame empírico daria conta da questão — é o hospital deixando de ser simples fato arquitetônico e se tornando fato hospitalar. Não se tratava da descrição de um monumento, muito ao contrário, interroga-se sobre o número de doentes, a relação doentes-leitos, a área do hospital, a estrutura das salas, as taxas de cura e de mortalidade, as relações entre fenômenos patológicos e organização espacial, o percurso dos materiais médico-hospitalares, a taxa de sucesso das operações, etc.

Este processo duplo de medicalização do hospital e de hospitalização da medicina deu-se, primeiramente, com a anulação dos efeitos nocivos, patológicos, que o hospital acarretava. O modelo de partida da reorganização hospitalar são os hospitais marítimos; por meio deles, fazia-se tráfico de mercadoria entre a metrópole e a colônias, o que suscitou o protesto de autoridades alfandegárias, terminando por gerar um regulamento de controle desses hospitais. Os hospitais marítimos e militares tornam-se focos de reforma porque a invenção do fuzil (final do século XVII) encarecera o custo de formação de um soldado, de modo que eles agora não eram tão facilmente obtidos ou dispensáveis; devia-se evitar a deserção dos soldados, devia-se diminuir sua mortalidade por doenças no exército: com alto custo para sua formação, que morressem na guerra, ao menos.

 A reorganização dos hospitais marítimos e militares foi feita a partir das tecnologias políticas disciplinares. Se os mecanismos disciplinares são antigos no Ocidente (mosteiros, empresas escravagistas, empresas coloniais, legião romana, etc.[61]), os séculos XVII e XVIII os aperfeiçoaram enquanto mecanismos de gestão de multiplicidades de homens visando majorar o efeito de seu trabalho. Uma série de coisas emerge:

1. O exército era, até o século XVIII, um amontoado de homens que a invenção do fuzil tratou de organizar espacialmente visando obter o máximo de efeito nos soldado; do mesmo modo nas escolas os alunos amontoavam-se e eram atendidos individualmente, pois o atendimento coletivo pressupõe distribuição espacial, e a “disciplina é, antes de tudo, análise do espaço. É a individualização pelo espaço, a inserção dos corpos em um espaço individualizado, classificatório, combinatório” ((FOUCAULT, 2007c, p. 106).

2. o controle disciplinar é sobre o desenvolvimento da ação, não sobre seus resultados; na oficina aparece a figura do contra-mestre, destinado a observar como trabalho é feito, como pode ser melhorado, bem como o resultado final; no exército surge o sub-oficial, destinado a dirigir os exercícios, as manobras e sua decomposição.

3. a disciplina implica uma vigilância continua dos individuo; no exército a hierarquia somada as revistas, paradas e inspeções destinam-se a tal.

4. a disciplina põe em prática um registro contínuo das ações individuais e uma transmissão vertical desses registros de modo que nada escape do saber e o poder possa agir sobre o detalhe da ação individual; “é o poder de individualização que tem o exame como instrumento fundamental. O exame é a vigilância permanente, classificatória, que permite distribuir os individuo, julgá-los, medi-los, localizá-los e, por conseguinte, utilizá-los ao máximo” ((FOUCAULT, 2007c, p. 107).

O hospital se medicaliza porque adota mecanismos disciplinares que serão centralizados no médico; a medicina passava por mudanças importantes nesta mesma época. O grande modelo de inteligibilidade da doença no século XVIII é a botânica de Lineu com seu método do more botanico: a doença deve ser entendida como um fenômeno natural, como uma espécie com características observáveis e desenvolvimento; o individuo adoece quando exposto a determinadas ações do meio; as ações da medicina devem se dirigir mais ao meio e menos à doença: trata-se de uma medicina do inquérito em substituição a uma medicina da crise. Disciplinarização do hospital e medicina do meio marcam a emergência do hospital como instrumento terapêutico.

Este hospital-médico tem características próprias muito bem marcadas. Pensado com instrumento terapêutico, o local de sua construção atende deve ser pensado nestes termos. Se localizado na cidade deve ocupar um espaço tal que a difusão dos miasmas, da água poluída, etc., não contamine o entorno. Do mesmo modo, organização do espaço interno do hospital é concebida de forma a que a própria arquitetura, ou antes, a própria disposição dos corpos no interior do hospital seja, ela mesma, meio de cura: o leito deve ser individualizado de acordo com o doente, a doença e seu grau de evolução.

Ocorrem mudanças no sistema de poder no interior do hospital, pois, até o século XVIII, o médico estava subordinado ao pessoal religioso — que administrava o hospital e cuidava dos doentes —, sendo sua atuação secundária em relação aqueles. O hospital-médico, o hospital que deve curar, torna o médico responsável pela organização hospitalar e pela administração econômica. O médico torna-se presente no hospital, pois o ritmo de visitas passa a aumentar a partir do século XVIII, de modo que em 1770, deve um médico residir em cada hospital: é o surgimento do grande médico como médico de hospital, em substituição ao médico privado, até então o grande médico; é o surgimento da medicina dos residentes e do hospital com continuidade do corpo do médico.

No cerne deste processo de disciplinarização do espaço hospitalar, organiza-se um sistema de registro permanente no hospital: identificação dos doentes, registro de entradas e saídas, diagnóstico dos doentes que entram e resultados quando saem, registro de retiradas dos medicamentos na farmácia. O hospital torna-se local de registro, acúmulo e formação de saber e se formulam exigências de que o corpo médico confronte seus resultados com suas teorias. Assim, entre 1789-90 o hospital torna-se obrigatório para a formação de um médico, sobretudo na França.

Enfim, o individuo passa a ser o alvo da intervenção médica, devendo ser inscrito em um processo que vai do diagnóstico, passando pela terapêutica e cujo ápice, cujo resultado deve ser a cura, o restabelecimento da saúde do enfermo.

 “O individuo e a população são dados simultaneamente como objetos de saber e alvos de intervenção da medicina, graça a tecnologia hospitalar. A redistribuição dessas duas medicinas será um fenômeno próprio do século XIX. A medicina que se forma no século XVIII é tanto uma medicina do individuo quanto da população” ((FOUCAULT, 2007c, p. 111)

7.2. Pinel, francês
           
Apontamos como a noção de doença mental é recente; na Idade Clássica, a loucura era mais uma dentre as doenças, integrada na racionalidade da medicina geral da época. São os psiquiatras de fins do século XVIII que inventarão este conceito. O regime de internamento dos loucos pautava-se em uma exclusão de cunho moral e social, nunca médico, e que se fazia acompanhar de uma demonização da loucura. O regime de internamento era brutal: os lugares eram insalubres e as condições precárias: o louco era um monstro, uma aberração incurável ligada ao que há de mais pecaminoso na terra, somente lhe restando esperar a expiação da morte.

Pinel teria descido as escadas da masmorra do Hôpital de Bicêtre e libertado os loucos. Se este ato ocorreu ou não, pouco nos importa[62]: Pinel é considerado um dos fundadores da psiquiatria, ao lado de Tuke, Chiaruggi, Wagnitz e Riel. Em fato trata-se de um abuso: o nome psiquiatria é de origem alemã e, ao longo dos séculos XIX, três psiquiatrias com procedimentos, conceitos e operacionalidades distintas disputarão este campo novo: a francesa, a anglo-saxã e a germânica. Por exemplo, os franceses diziam médécin mentale, conquanto os germânicos psychiatrie.

            Ao soltar os loucos de seus grilhões Pinel tratou de forjar outros: estava a aberta a era da medicalização do comportamento. Nem Pinel nem nenhum destes psiquiatras rompeu com o internamento como ele se dava, mas fizeram com que o internamento girasse em torno do louco. No asilo-modelo de York, criado sob os auspícios dos quakers ingleses, Tuke montou um aparato de quase-família, visando impor ao louco uma vida moral que infantiliza e culpabiliza o louco, com castigos, privações e humilhações de toda ordem. Se Pinel considerava que "os alienados, longe de serem culpados a quem se deve punir, são doentes cujo doloroso estado merece toda a consideração devida à humanidade que sofre e para quem se deve buscar pelos meios mais simples restabelecer a razão desviada” (apud PEREIRA, p. 114), em Bicêtre impôs uma lei de ferro.

            O que há de novo em Pinel é a tentativa de estudar sistemática e metodicamente a loucura. Influenciado pela botânica e zoologia, o método de Pinel calcava-se na observação dos pacientes, seguida pela classificação dos sintomas. Pinel considerava que a alienação tinha um substrato essencialmente mental, embora mantivesse relações dinâmicas com o organismo do alienado, quer dizer, ele postula o caráter subjetivo da alienação e sabe distinguir o paciente de seus sintomas, além de conceber uma terapêutica para a loucura e de pensar o asilo enquanto instituição voltada para a cura.

            Sob o pomposo nome de terapêutica moral, Pinel, como de resto toda a psiquiatria emergente, vai se apropriar das técnicas médicas e disciplinares já utilizadas — fundadas em uma fisiologia própria da Idade Clássica — para colocá-las em funcionamento em um regime estritamente disciplinar: duchas, cadeiras giratórias (para fazer movimentar os espíritos animais), gaiolas, etc., que tinham uma conotação médica passam a ser utilizadas como elemento punitivos em um regime moral dentro de um espaço de exclusão. Não medicalização do asilo, mas utilização de técnicas médicas já desatualizadas em um regime moral.

            Lembremos que foi a revolução francesa que fez mudar este quadro. Ora, mera coincidência, ou será que a revolução que ergue a burguesia ao topo do planeta, já não havia começado, em sussurros, a lentamente modificar as formas de a apropriação do corpo? Somente outra pesquisa nos poderá responder.



























8. Conclusões

            Ao longo do texto, vimos, primeiramente, algumas questões de métodos, notadamente, os problemas envoltos na genealogia. Vimos a relação entre Foucault e os epistemológos franceses, sobretudo Canguilhem, e como Foucault herda deles certas concepções epistemológicas. Expusemos os métodos arqueológico e genealógico do filósofo francês, mostrando os débitos deste em relação a Nietzsche, bem como defendemos que a genealogia está ancorada em uma ontologia política do saber, estofo de sua epistemologia política

            Vimos, depois, como Foucault ensaia uma genealogia da psiquiatria, em diversos textos, envolvendo a determinação dos sujeitos criados, os loucos e os médicos, as relações entre o saber psiquiátrico e poder político, na figura do médico que comanda esta instituição de controle que é o hospital. Vimos também como o internamento precede a medicalização da loucura, e como, juntamente com o louco, mendigos, bruxas e sodomitas, dentre outros, foram também capturados na máquina asilar.

            Ao mesmo tempo, passamos em revista, ainda que brevemente, a história da psiquiatria, expondo como os psiquiatras fazem uma história tradicional de sua disciplina, que Foucault e Canguilhem, ao que tudo indica, reprovariam. Introduzimos alguns elementos da psiquiatria contemporânea, nos esforçando para mostrar como os psiquiatras operam, se não atualmente, ao menos no último período.

            E o que concluir? Devemos jogar fora a psiquiatria e buscar outras alternativas para trabalhar com os loucos? O diagnóstico que Foucault e a tradição da antipsiquiatria faz da medicina mental é, no mínimo, alarmante, colocando em xeque, mesmo, suas bases epistemológicas mais profundas. Ao mesmo tempo, conforme parcialmente discutido, a psiquiatria contemporânea tornou-se mais sutil, e os mecanismos de sua atuação se estilhaçaram. Pode-se dizer que Foucault mira uma sociedade disciplinar, quando atualmente vivemos em uma sociedade de controle (DELEUZE, 1992).

            Se a psiquiatria que Foucault mirou não existe mais, tendo ocorrido verdadeira ruptura, tão a gosto de parte da filosofia francesa mais contemporânea, a presença de manicômios ainda assombra muitos lugares, e é o destino de milhares de pessoas no Brasil, em forte sofrimento não só psíquico, como social. As críticas dos antipsiquiatras, Foucault incluso, certamente contribuíram com essa mutação epistemológica e terapêutica da psiquiatria, posto que a velha psiquiatria policial parece incompatível com sociedades modernas e democráticas.

            Dizemos parece, posto que o perigo dos manicômios é constante. Em tempos de retrocesso em muitas áreas, com setores abandonado de mala e cuia as conquistas do iluminismo e dos direitos humanos, a maquinaria asilar pode bem retornar, com os usos políticos que dela foram feitos, como se viu. É necessário manter vigilância contínua sobre este ponto, como em outros. Afinal, se, como vimos, a história dos positivistas do século XIX não existe, periga que velhos fantasmas voltem a nos assombrar.























Bibliografia


ALEXANDER, F.G., SELESNICK, S.T.; História da Psiquiatria, São Paulo: IBRASA, 1966
ARAÚJO, D. N.; Pinel e Tuke, CientiFico, ano II, v. I, agosto-dezembro 2002
BACHELARD, G.; O novo espírito científico, RJ: Tempo Universitário, 2000, 3ª ed.
BAYLE, A.-L.; Pesquisas sobre doenças mentais, Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., São Paulo, v. 12, n. 4, p. 752-758, dezembro 2009
BERLINCK, M.T.; O que é Psicopatologia Fundamental, SP: Escuta, 2000
BINSWANGER, L.; Sobre a psicoterapia, Rev. Latinoam. Psicop. Fund. IV, 1, 143-166
BOCK, A. M. et. al; Psicologias – introdução ao estudo da psicologia, SP: Saraiva, 1999, 13ª ed.
BRUNI, J. C.; Foucault: o silêncio dos sujeitos, SP: Tempo social; Rev. Sociol., USP, n.1, v.1, 1. sem. 1989, p. 199-207
CAMPAILLA, G.; Manual de psiquiatria, SP: Martins Fontes, 1982
CANGUILHEM, G.: Ideologia e racionalidade nas ciências da vida, Portugal: 70, 1977
CAPONI, S.: Para una genealogía de la anormalidad: la teoría de la degeneración de Morel, Scientiæ, Studia, São Paulo, v. 7, n. 3, p. 425-45, 2009
CECHINI, P.; Carta aos "dottores", Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., VIII, 1, 150-156
CHARCOT, J.-M. ; A grande histeria ou hístero-epilepsia, Rev. Latinoam. Psicop. Fund., II, 3, 166-172
CROCE, D., CROCE JÚNIOR, D.; Vocabulário Médico-Forense, SP: Saraiva, 1994
CUNHA, M.C.P.; O espelho do mundo, RJ: Paz e Terra, 1988, 2ª ed.
DELEUZE, G.; Post-scriptum sobre as sociedades de controle in Conversações: 1972-1990, RJ: Ed. 34, 1992, p. 219-226, disponível em http://www.somaterapia.com.br/wp/wp-content/uploads/2013/05/Deleuze-Post-scriptum-sobre-sociedades-de-controle.pdf, acessado em 11/06/2019
ENGUIX, S. C. et al; Manual del residente de psiquiatria, s/l: Smith Beechan, s/d, disponível em www.sepsiquiatria.org/sepsiquiatria/manual/directr.htm, acessado em novembro de 2010
FÉDIDA, P.; De uma psicopatologia geral a uma psicopatologia fundamental. Nota sobre a noção de paradigma, Rev. Latinoam. de Psicopatologia Fundamental v. 1, n. 3, setembro de 1998
FERNANDES, M.I.A., SCARCELLI, I.R., COSTA, E.S. ; Fim de século ; ainda manicômios ?, SP : IP-USP, 1999
FERREIRA, A.P., NETO, V.M. O ensino da clínica psicopatológica: o caso da sessão clínica, Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., São Paulo, v. 12, n. 3, p. 481-496, setembro 2009
FOUCAULT, M; A arqueologia do saber, RJ: Forense, 2007a, 7ª ed.
______________; A ordem do Discurso, SP: Loyola, 2005a, 12 ed.
______________; A verdade e as formas jurídicas, RJ: NAU, 2005b, 3ª ed.
______________; Doença Mental e Psicologia, RJ: Tempo Brasileiro, 1975
______________; É preciso defender a sociedade (1975-1976), Martins Fontes, 1999
______________; Eu, Pièrre Rivière, que degolei minha mãe, meu irmão e minha irmã, 1973
______________;Histoire de la folie à l'âge classique, France: Gallimard, 1972
______________; História da Sexualidade I: a vontade de saber, RJ: Graal, 2007b, 18ª ed.
______________; Microfísica do poder, RJ: Graal, 2007c, 24ª ed.
______________; Nascimento da biopolítica, SP: Martins Fontes, 2008
______________; Nascimento da clínica, RJ: Forense, 2008, 6ªed
______________; Os anormais, SP: Martins Fontes, 2001
______________; O poder psiquiátrico, SP: Martins Fontes, 2006
______________; O que é o iluminismo?, disponível em www.unb.br/fe
­­­_______________; Resumo dos cursos do Collège de France: 1970 -1982, RJ: Jorge Zahar, 1997
______________; Vigiar e Punir, RJ: Vozes, 2006, 31ª ed.
FRAYZE-PEREIRA, J. A.; O que é loucura, SP: Brasiliense, 1994, 10ª ed.
FREUD, S.; A história do movimento psicanalítico, SP: Abril Cultural, 1978
__________; Cinco Lições de Psicanálise, SP: Abril Cultural, 1978
GRAEFF, F.G.; Neurociência e Psiquiatria, Psic. Clin., Rj, v.18, n.1, p. 27 – 33, 2006
GRANDINO, A., NOGUEIRA, D.; Conceito de psiquiatria, SP: Ática, 1985
JASPERS, K.; A abordagem fenomenológica em psicopatologia, Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., VIII, 4, 769-787
LANTERI-LAURA, G.; Leitura das perversões: história de sua apropriação médica, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1994
MACHADO, R.; Ciência e saber: a trajetória da arqueologia de Michel Foucault, RJ: Graal, 1988, 2ª ed.
MADALENA, J.C.; História da Esquizofrenia, RJ : Imago, 1982
MINKOWSKY, E.; A noção de perda de contato vital com a realidade e suas aplicações em psicopatologia, Rev. Latinoam. Psicop. Fund. VII, 2, 130-146
________________; Breves reflexões a respeito do sofrimento (aspecto prático da existência), Rev. Latinoam. Psicop. Fund. III, 4, 156-164
NIETZSCHE, F.; Genealogia da moral: uma polêmica, SP: Companhia das Letras, 2007
PAIM, I.; Curso de psicopatologia, SP: Grijalbo, 1977, 3ª ed.
PAOLIELLO, G.; O problema do diagnóstico em psicopatologia, Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., IV, 1, 86-93
PAPAKOSTAS, I. et al; Eletroconvulsoterapia: critérios e recomendações da Associação Mundial de Psiquiatria, Rev. Psiq. Clín. 33 (5); 262-267, 2006
PENNA, A.G.; Introdução à epistemologia, RJ: Imago, 2000
PEREIRA, L.M.F.; Franco da Rocha e a teoria da degeneração, Rev. Latinoam. Psicop. Fund. VI, 3, 154-163
PEREIRA, M.E.C.; A “loucura circular” de Falret e as origens do conceito de “psicose maníaco-depressiva, Rev. Latinoam. Psicop. Fund. V, 4, 125-129
______________; A perda do contato vital com a realidade na esquizofrenia, segundo Eugène Minkowski, Rev. Latinoam. Psicop. Fund. VII, 2, 125-129
______________; Bayle e a a descrição da aracnoidite crônica na paralisia geral: sobre as origens da psiquiatria biológica na França, Rev. Latinoam. de psicopatologia Fundamental, SP, vol. 12,  nº 4, pgs. 747-751
______________; Bleuler e a invenção da esquizofrenia, Rev. Latinoam. Psicop. Fund., III, 1, 158-163
________________; C’est toujours la même chose: Charcot e a descrição do Grande Ataque Histérico, Rev. Latinoam. Psicop. Fund., II, 3, 159-165
_______________; Cullen e a introdução do termo “neurose” na medicina, Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., São Paulo, v. 13, n. 1, p. 128-134, março 2010
_______________; Formulando uma Psicopatologia Fundamental, Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental v. 1, n. 1, março de 1998
_______________; Kraepelin e a criação do conceito de “Demência precoce”, Rev. Latinoam. Psicop. Fund. IV, 4, 126-129
_______________; Kraepelin e a questão da manifestação clínica das doenças mentais, Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., São Paulo, v. 12, n. 1, p. 161-166, março 2009
_______________; Krafft-Ebing, a Psychopathia Sexualis e a criação da noção médica de sadismo, Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., São Paulo, v. 12, n. 2, p. 379-386, junho 2009
_________________; Minkowski ou a psicopatologia como psicologia do pathos humano, Rev. Latinoam. Psicop. Fund. III, 4, 153-155
_________________; Morel e a questão da degenerescência, Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., São Paulo, v. 11, n. 3, p. 490-496, setembro 2008
_________________; Pierre Janet e os atos psíquicos inconscientes revelados pelo automatismo psíquico das histéricas, Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., São Paulo, v. 11, n. 2, p. 301-309, junho 2008
_______________; Pinel - a mania, o tratamento moral e os inícios da psiquiatria contemporânea, Rev. Latinoam. Psicop. Fund. VII, 3, 113-116, setembro 2004
_______________; Sobre os fundamentos da psicoterapia de base analítico-existencial, segundo Ludwig Binswanger, Rev. Latinoam. Psicop. Fund. IV, 1, 137-142
RODRIGUES, A.C.T.; Karl Jaspers e a abordagem fenomenológica em psicopatologia, Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., VIII, 4, 754-768
ROUDINESCO, E.; Filósofos na tormenta – Canguilhem, Sartre, Foucault, Althusser, Deleuze e Derrida, RJ-RJ, Zahar, 2007
SABBATINI, R.M.E., A História da Terapia Por Choque em Psiquiatria, UNICAMP
SAURI, J.J.; A construção do conceito de neurose (I). Os vapores e os nervos, Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., VIII, 1, 73-85
______; A construção do conceito de neurose (II). Nosologia e neurose, Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., VIII, 2, 289-302
VAN DEN BERG, J.H.; O que é psicoterapia?, São Paulo: Mestre Jou, 1979





[1] Cf FERNANDES, M.I.A., SCARCELLI, I.R., COSTA, E.S. ; Fim de século ; ainda manicômios ?, SP : IP-USP, 1999

[2]BAYLE, A. L., Pesquisas sobre doenças mentais, Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., São Paulo, v. 12, n. 4, p. 752-758, dezembro 2009; PEREIRA, M.E.C., Bayle e a descrição da aracnoidite crônica na paralisia geral: sobre as origens da psiquiatria biológica na França, Rev. Lat. Americana de Psic. Fund., SP, v. 12, nº4, p. 747-71;
[3]GRAEFF, F.G.; Neurociência e Psiquiatria, Psic. Clin., Rj, v.18, n.1, p. 27 – 33, 2006

[4] Ibidem nota 4
[5] CUNHA, M.C.P.; 1988, p. 100
[6] Ibidem.
[7] Cf. MADALENA, J.C.; História da Esquizofrenia, RJ : Imago, 1982
[8] Cf. SABBATINI, R.M.E., História dos tratamentos de choque, Campinas: UNICAMP, 1997
[9] “Falta de oxigênio no sangue. Anoxemia” (CROCE, D., CROCE JÚNIOR, D., 1994, p. 17)
[10] Terapia pelo esfriamento do corpo. Cf. SABBATINI, R.M.E, 1997, p. 7
[11] CECHINI, P.; Carta aos "dottores", Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., VIII, 1, 150-156
[12] (...) “as injeções, por portugueses que nunca jamais em tempo algum viram tubos de injeções. O Dr. Franco da Rocha não vem ás enfermarias, está entregue o hospício sobre a direção de boçais portugueses. A mim me mandaram dormir na rotunda, lugar este que nem as cisternas da capital fedem tanto a urina quanto este quarto” (CUNHA, M.C.P.; 1988, p. 98) e, também, como Lima Barreto descreve uma notícia de jornal, onde havia se publicado um relato de um ex-interno do Juquery: (...)“eu, que ai achei-me internado de março a setembro de 1903, presenciei, por mais de uma vez, de que modo certos portugueses grosseiros, boçais, propiciavam os medicamentos aos infelizes que, receosos de serem envenenado, não queriam engolir os ditos remédios. Derrubavam o paciente, punham um pé (uma pata) sobre o pescoço do mesmo, apertavam-lhe o nariz, etc. Naquele tempo (e quiça agora) a maioria, na vossa presença [enquanto jornalistas e pessoas externas] e na de outros médicos, a maioria daqueles empregados mercenários mostrava-se humilde, comedida; quando se achavam a sós com os infelizes reclusos, que triste ...reverso da medalha” (apud CUNHA, M.C.P.; 1988, p. 91-2)
[13] DAUD JR, N.; Neoliberalismo, luta antimanicomial e pós-neoliberalismo in: FERNANDES, M.I.A., SCARCELLI, I.R., COSTA, E.S. ; Fim de século ; ainda manicômios ?, SP : IP-USP, 1999
[14]SALLEH, M.A.; PAPAKOSTAS, I.; ZERVAS, I.; CHRISTODOULOU, G.; Eletroconvulsoterapia: critérios e recomendações da Associação mundial de Psiquiatria, Rev. Psiq. Clin. 33 (5), p. 262-267, 2006
[15] WEISSMANN, Karl; O hipnotismo: psicologia, técnica, aplicação, RJ-RJ, Prado, 1958
[16] FREUD, S.; SP: A história do movimento psicanalítico, SP: Abril Cultural, 1978

[17] Especialmente depois dos trabalhos de Wundt, mestre de Krafft-Ebing. Wundt é considerado o fundador da medicina experimental i. é, da psicologia considerada enquanto ciência, distinguindo-se, pois, da filosofia. Cf. BOCK, A. M. et. al; Psicologias – introdução ao estudo da psicologia, SP: Saraiva, 1999, 13ª ed.

[18] PAIM, I.; Curso de psicopatologia, SP: Grijalbo, 1977, 3ª Ed; PAOLIELLO, G., O problema do diagnóstico em psicopatologia, Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., IV, 1, 86-93; FÉDIDA, P.; De uma psicopatologia geral a uma psicopatologia fundamental. Nota sobre a noção de paradigma, Rev. Latinoam. de Psicopatologia Fundamental v. 1, n. 3, setembro de 1998; RODRIGUES, A.C.T.; Karl Jaspers e a abordagem fenomenológica em psicopatologia, Rev  Latinoam. Psicopat. Fund., VIII, 4, 754-768

[19] FÉDIDA, P.; De uma psicopatologia geral a uma psicopatologia fundamental. Nota sobre a noção de paradigma, Rev. Latinoam. de Psicopatologia Fundamental v. 1, n. 3, setembro de 1998
[20] CAMPAILLA, 1982, Cap. III, p. 5-15
[21] RODRIGUES, A.C.T.; Karl Jaspers e a abordagem fenomenológica em psicopatologia, Rev  Latinoam. Psicopat. Fund., VIII, 4, 754-768

[22] Cf. PAIM, 1977, p. 78-82
[23] Ibidem, p. 82-83
[24] De pródromo, ou seja, os sinais que indicam a irrupção futura da doença.
[25] Parte mais exterior do cérebro. Cf. CROCE, CROCE JR, 1994, p. 64.
[26]“Cenestesia: sentimento vago da existência sem o auxílio dos sentidos; sensibilidade” (CROCE, CROCE JR, 1994, p. 46)
[27]Cf. MOREL, B.-A., Tratado das degenerescências na espécie humana Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., São Paulo, v. 11, n. 3, p. 497-501, setembro 2008; CAPONI, S.; Para uma genealogia de la anormalidad: la teoria de la degeneración de Morel,  Scientle Studiae, SP, v. 7, no. 3, pgs. 425-45, 2009; PEREIRA, M.E.C., Morel e a questão da degenerescência, Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., São Paulo, v. 11, n. 3, p. 490-496, setembro 2008

[28] Demência precoce com tendência ao isolamento
[29] Demência precoce com alternância entre motricidade e isolamento
[30] A filosofia contribuiu bastante para a psiquiatria, especialmente para a corrente analítico-existencial, cujos principais procedimentos passam pela investigação e compreensão da vida do paciente (distinto de explicação), para mostrar onde o paciente falhou no exercício de sua liberdade e fazendo com que ele experimente-a de maneira radical. Já a teoria da comunicação, baseada nos trabalhos de Bateson (1953), buscava explicar a esquizofrenia a partir do estudo das formas de comunicação e relação afetiva nas famílias dos enfermos, mostrando como paradoxos nestas podem levar ao desate de comportamentos esquizofrênicos futuros. Para a psiquiatria que se apóia tanto na teoria geral dos sistemas quanto na cibernética, o organismo é um sistema de processos em interação e não de funções somadas; defendem os adeptos destas idéias que uma alteração na personalidade é total e não funcional, tese completamente oposta a vários compêndios de psicopatologia, que estruturam-se sob a égide função-afecção. A lingüística seja aquela reinterpretada por Lacan a partir da psicanálise seja em si, contribui para a psiquiatria na medida em que oferece elementos para a análise da fala, inclusive a dos enfermos. Cf. GRANDINO, NOGUEIRA, 1985; CAMPAILLA,1982.

[31] Dos quais já tratamos mais acima.
[32] Szasz defende a inexistência da doença mental, bem como de seu substrato orgânico, com raras exceções laboratorialmente comprováveis.
[33] AMARANTE, P. Uma aventura no manicômio: a trajetória de Franco Basaglia in História, Ciências, Saúde — Manguinhos, I(1), pp. 61-67, jul-out., 1994
[34] Conforme relata FREUD, S.; A história do movimento psicanalítico, SP: Abril Cultural, 1978, p. 44. “Nestes casos parecidos, é sempre a coisa genital, sempre, sempre”. Freud teria se espantado ao ouvir isto da boca de Charcot.
[35] Patologia pode tanto se referir a uma disciplina médica que estuda as afecções quanto ser um sinônimo de fenômeno mórbido, seja psicológico seja fisiológico. Quando utilizarmos o termo no primeiro sentido, ele virá em itálico.
[36] JANET, P.; O automatismo psicológico. Ensaio de psicologia experimental sobre as formas inferiores da atividade humana, Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., São Paulo, v. 11, n. 2, p. 310-314, junho 2008 e PEREIRA, M.E.C.; Pierre Janet e os atos psíquicos inconscientes revelados pelo automatismo psíquico das histéricas, Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., São Paulo, v. 11, n. 2, p. 301-309, junho 2008
[38] BINSWANGER, L.; Sobre a psicoterapia, Rev. Latinoam. Psicop. Fund. IV, 1, 143-166 e PEREIRA, M.E.C.; Sobre os fundamentos da psicoterapia de base analítico-existencial, segundo Ludwig Binswanger, Rev. Latinoam. Psicop. Fund. IV, 1, 137-142
[39] JASPERS, K.; A abordagem fenomenológica em psicopatologia, Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., VIII, 4, 769-787 e RODRIGUES, A.C.T.; Karl Jaspers e a abordagem fenomenológica em psicopatologia, Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., VIII, 4, 754-768


[40] A História da loucura é um livro sui generis, seja em relação aos escritos passados e futuros de Foucault, seja em relação ao que se produzira até então acerca da loucura. Sem dúvida nela encontramos uma análise que liga a formação do mundo psiquiátrico do século XIX com a sociedade de então, e todas as forças em luta. Contudo, Foucault dá ênfase excessiva à questão das mentalidades. Poderíamos chamar o livro de História das mentalidades sobre a loucura na Idade Clássica, sem que, com isto, tivéssemos que alterar uma única linha do livro de Foucault.


[42] (...) “a lettre de cachet não era uma lei ou decreto, mas uma ordem do rei que concernia a uma pessoa, individualmente, obrigando-a a fazer alguma coisa. Podia obrigar alguém até mesmo a casar-se por uma lettre de cachet. Na maiori das vezes, porém, ela era um instrumento de punição” (FOUCAULT, 2005b, p. 95)

[44] Cf. FOUCAULT, 2008
[45] Ministro de Luis XIV e teórico do mercantilismo
[46] Foucault elaborará o tema da Aliança sobretudo na História da sexualidade I: a vontade de saber, RJ: Graal,
[47] No curso de 1973-74, O poder psiquiátrico, Foucault elabora uma pequena história das tecnologias políticas da verdade. A partir de uma exposição acerca da anamnese e do interrogatório clínico, técnicas psiquiátricas, Foucault distingue duas grandes técnicas de obtenção da verdade: verdade-acontecimento e verdade-demonstração. A primeira é muito antiga e parte de um entendimento da verdade como não-universal, e dependente da ocasião para aparecer; disto, alguns operadores especiais que a incitassem, a fizessem sair da toca. A segunda, que não nos interessa no momento, parte de uma verdade universal, que necessita de alguns instrumentos, da ratio correta para ser adquirida; ela é como que um direito universal do sujeito, e teve nas técnicas de inquérito seu grande trunfo, do qual resultou a ciência moderna.
                    A verdade-acontecimento foi central para a medicina por muitos séculos. Pautava-se então, na noção de crise como nodal, como o referencial teórico-prático da operacionalidade médica. Ela era identificada como o momento no qual a essência da doença se manifesta, cabendo, pois ao médico, mostrar sua força contra a crise ao manipular, ao gerir as forças da natureza contra a morbidez. A crise não pode ser gerada; o médico deve estar atento para saber quando ela eclodirá para somente então, já preparado, intervir no curso dos fatos.

[48] Já explicaremos a quantas andava a medicina dos nervos e dos humores nestes tempos de internamento.
[49] TUBINO, P.; Medicina na Grécia antiga, UnB: 2009 e também PEREIRA, M.E.C.; Cullen e a introdução do termo “neurose” na medicina, Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., São Paulo, v. 13, n. 1, p. 128-134, março 2010

[50] SAURI, J.J.; A construção do conceito de neurose (I). os vapores e os nervos, Rev Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, VIII, nº, 73-85

[51] Ibidem, p. 76 e TUBINO, ibidem
[52] Casamentos ajeitados, geralmente mais por questões ou políticas, ou econômicas, muitas vezes pelos dois.
[53] FOUCAULT, 2007c, p. 273-276
[54] SAURI, J.J; A construção do conceito de neurose (II). Nosologia e neurose, Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., VIII, 2, 289-302

[55] Membrana que envolve o cérebro. Cf CROCE, CROCE JR, 1994, p. 83
[56] Falta de tensão das fibras. Cf CROCE, CROCE JR, 1994 p. 25
[57] Excesso de tensão
[58] PEREIRA, M.E.C.; Cullen e a introdução do termo “neurose” na medicina, Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., São Paulo, v. 13, n. 1, p. 128-134, março 2010

[59] Ambos foram fartamente expostos por Foucault em inúmeras oportunidades. Ressaltamos vp, avfj
[61] Cf. FOUCAULT, O poder psiquiátrico, SP: Martins Fontes, 2006

[62] PEREIRA, M.E.C.; Pinel – a mania, o tratamento moral e os inícios da psiquiatria contemporânea, Rev Latinoa. de Psicop. Fund., VII, 3, 113-6


Apontamentos para a genealogia da psiquiatria





















Sumário


 1. Introdução

2. Primeiro capítulo: Pequena notação de método: epistemologia política e genealogia
2. 1. Fontes epistemológicas de Michel Foucault
2.2. Ontologia do saber
Conceito de saber
A ordem do discurso
O regime de verdade
           2.3. O método: a genealogia
3. Segundo capítulo: A situação desta pesquisa: Observações metodológicas e analíticas
4. Terceiro capítulo: Para compreender a psiquiatria
4.1. A psiquiatria (para os psiquiatras)
                                Uma medicina mental 
A terapêutica
Psicofarmacologia
Os tratamentos de choque
As psicoterapias
                4.2. O papel da Psicopatologia
Estudo de caso: Psicopatologia do juízo
Conclusões

4.3. A história da psiquiatria (para os psiquiatras)

5. Quarto capítulo: Fundamentos da crítica de Foucault
6. Quinto capítulo: A formação do mundo psiquiátrico
Proveniência do internamento
Emergência do internamento
                Os desvios religiosos e a medicina
7. Sexto capítulo: Medicina ou psiquiatria?
                                Cullen inventa a neurose e a nosologia
7.1. Rumo à biopolítica: as três medicinas sociais da Ilustração e a tecnologia do hospital
                O hospital
7.2. Pinel, francês
8. Conclusões
Bibliografia


1. Introdução


O século XIX viu raiar uma série de disciplinas que se pretendiam científicas, dentre os quais, pelas analogias possíveis e ligações diretas, salientamos duas: a psiquiatria — medicina mental — e a psicanálise. Além disso, a emergência da figura do doente mental, noção nodal às duas disciplinas, e suas conseqüências sociais, institucionais e epistêmicas somente engrossam nossas inquietações. Afinal de contas, por quais motivos o século de ouro da burguesia, o século do triunfo do capitalismo de mercado, do estabelecimento desta noção confusa embora sensível de modernidade; enfim, por que justamente o XIX inventou esta figura do louco enquanto doente mental? Por que ali as disciplinas médicas ou pretensamente médicas das afecções mentais surgiram, com toda sua parafernália asilar, suas terapêuticas de choque e psicoterapias?

            O objetivo deste curto ensaio é analisar a proveniência e a emergência de uma destas disciplinas, esta pérola ocidental cujo nome é psiquiatria, a partir dos estudos de Michel Foucault sobre a temática. Em fato, o pensador francês elaborou uma maneira peculiar de abordar a questão, apropriando-se de todo um instrumental teórico nietzscheano para mostrar, como, no fim das contas, estas disciplinas — medicina, psiquiatria, psicanálise — responderam a interesses bastante concretos da sociedade capitalista industrial urbana e burguesa em formação.

            Embora nossa ênfase nas elaborações foucaultianas, nossa análise não incorre no erro de esquecer o que o permite. Foucault, em fato, é incluído por muitos autores no rol dos antipisiquiatras (GRANDINO, NOGUEIRA, 1985, p. 33-37), quer dizer, aqueles autores que (...) “questionam a psiquiatria como instituição, assim como o conceito de doença mental e os tratamentos psiquiátricos” (GRANDINO, NOGUEIRA, 1985, p. 34). Dentre Szasz, Basaglia, Laing, Cooper e Castel, a obra de Foucault merece destaque, pela sua inovação e consistência teórica além de sua amplitude temática. Não lançamos mão, contudo, destas obras. Malgrados as semelhanças aparentes, diferem muito entre si.

            Ao mesmo tempo, — para sermos fiéis ao método genealógico de Foucault — buscamos as fontes diretas. Afinal, afora as críticas, como os próprios psiquiatras dizem de sua ciência? E o que Freud, este divisor de águas, o que o pai da psicanálise diz de seu invento? Navegando neste mar de conceitos e práticas psquiátricas, médicas ou pseudomédicas; nesta casuística assombrosa — onde se encontram o imbecil e o uranista, a histérica e o esquizofrênico —; nesses métodos terapêuticos, como a estrapada ou a traumatoterapia; nestas fundamentações psicopatológicas, onde o delírio distingue-se da alucinação e a neurastenia da hebêfrenia; nas distintas tipologias, levantamentos, anamneses e entrevistas morosas, com seus inúmeros formulários destinados a estabelecer quem é o louco e qual sua loucura. Enfim, buscando entender o cerne da psiquiatria singramos por todo um período até pouco bem obscuro e tivemos contato com textos que, ditos médicos, assombram: que cura podem propor, quais doenças e quais curas podem identificar? E, o mais importante, quais práticas eles fundam, quais relações estabelecem — a quais interesses respondem?
           
Insistimos na questão. Ela é, diz Foucault, importante: somente perguntando-nos a origem do presente poderemos retraçar os delicados meandros da histórias, fazendo vir á tona as lutas, o interesses e os interessados, com suas táticas, recuos, avanços e investidas. Foucault, com sua concepção belicista e radicalmente vertiginosa da história (BRUNI, 1989) elabora sua analítica das relações entre poder e saber situando a psiquiatria e a psicanálise no lugar que lhes é de direito: o seu, o de seu aparecimento. Assim, vinca-se o passado e o presente, dando a luz ao processo intenso e multifacetário de origem da psiquiatria.

Nessa confusão, onde ciência e poder se complementam, se demandam e se necessitam, qual o preciso lugar da psiquiatria: onde devemos situá-la? como devemos entendê-la? E, fundamentalmente, o que ela criou, de onde ela criou e de onde ela veio? Enfim, trata-se, para nós, neste pequeno trabalho, estabelecer como foi possível a psiquiatria, o que no impele a desvelar qual correlação de forças a engendrou e a qual correlação ela veio responder.

         No primeiro capítulo, empreendemos uma síntese do método foucaultiano, distinguindo genealogia e arqueologia e algumas heranças nietzscheanas de Foucault.; Também enveredamos no rumo de dar certa sistematicidade às produções metodológicas de Foucault, objetivando aclarar suas produções.

            No segundo capítulo e breve capítulo, situamos esta pesquisa face à nossa démarche, apontando limites, futuros desdobramentos e caminhos passados e vindouros.

            No terceiro, avaliamos criticamente a psiquiatria contemporânea a partir de alguns textos médicos, dando especial ênfase àquilo que se tornou a marca mais conhecida da psiquiatria, o tratamento de choque; mas também analisamos a psicopatologia, a partir de um texto talvez desatualizado, mas que situa esta disciplina na época em que Foucault escreveu e pensou a medicina mental. Também elaboramos um inventario crítico da maneira como os psiquiatras contam a história de sua própria disciplina, contrastando com as posições epistemológicas de Foucault.

            No quarto capítulo, traçamos breve comentário acerca de um estudo epistemológico de Foucault sobre a psicologia, no caso, o primeiro livro publicado de Foucault, depois revisto e alterado.

            No quinto e maior capítulo, entramos propriamente falando em nosso objeto, analisando a formação da psiquiatria, os sujeitos envolvidos e a parafernália medical implicada. Para tanto, nos baseamos tanto em textos de Foucault, quanto em textos de psiquiatras tratando de sua própria disciplinas..

            No sexto capítulo, recapitulamos alguns elementos, mostrando a constituição da psiquiatria contemporânea, a partir de autores como Cullen e Pinel, elaborando também breve conclusão.



2. Pequena notação de método: epistemologia política e genealogia

2.1. Fontes epistemológicas de Michel Foucault
                Chama-se epistemologia àquela disciplina filosófica que estuda e reflete acerca da natureza, forma, características, limites e obstáculos do conhecimento, bem como sobre a verdade; dado isto, a epistemologia pode ser tomada em duplo sentido: teoria do conhecimento ou teoria da ciência (PENNA, 2000). Neste último sentido, como é possível compreender o que é a ciência em sua singularidade senão por meio de sua história e de sua sociologia?

               Estamos a dizer, portanto, das relações entre epistemologia e história das ciências, velha polêmica teórica. A tradição epistemológica que baliza Foucault, que leva de Bachelard a Canguilhem, passando por outros autores franceses (MACHADO, 1988), reflete acerca disto em termos da contribuição de uma para outra e de outra para uma.

               Detalhemos. Dado que muitos historiadores da ciência fizeram seus trabalhos sem referir-se a qualquer epistemologia, eles pensam que esta disciplina mais se aproveita do que provem os trabalhos historiográficos. Canguilhem discorda: a epistemologia mais contribui do que recebe. Uma história das ciências que não se vale da epistemologia se reduz a mostrar as relações lógico-cronológicas de enunciados, de problemas e de soluções; nada distinguiria, a partir deste ponto de vista, a história da ciência da história de qualquer outro campo da cultura e o valor de um historiador ou de seu trabalho historiográfico seria determinado pelo mero acúmulo de saber, por sua erudição. A história de uma ciência seria o inventário de tudo que foi produzido sobre um objeto, quer dizer, o historiador deveria seguir uma linha móvel de progresso que deságua no objeto e na ciência atual.

               Contrário a esta posição, Canguilhem cita Suzanne Bachelard: “Que a atividade do historiador seja retrospectiva é um facto que lhe impõem limites, mas que lhe dá poderes. O historiador constrói seu objecto num espaço-tempo ideal. Compete-lhe evitar que este espaço tempo seja imaginário” (CANGUILHEM, 1977, p. 14). Portanto, o passado não jaz dado: o historiador, na minúcia de seu saber e em seu bailar teórico, cria a memória, altera o passado, torna ele verde ou cinza. Canguilhem está a se opor à concepção metódico-positivista continuísta de história, facilmente perceptível na máxima de Leopold von Ranke, segundo a qual o historiador deve (e pode) apresentar as coisas tal qual elas realmente se passaram (CANGUILHEM, 1977, p. 12).

               Exemplificando, Canguilhem cita o caso da botânica. No século XVIII, os botânicos baseavam-se na fisiologia animal, dividindo esta área em fisiológos-químicos e fisiólogos-físicos. A botânica atual, ao contrário, baseia-se na bio-química e na biofísica. Quer dizer há uma descontinuidade radical entre uma e outra; há, em termos bachelardianos, um corte epistemológico: duas racionalidades diferentes, que balizam ciências diferentes, e cujos objetos são diferentes.

               No jogo desta relação, três personagens e suas diferentes relações com o saber: o cientista, aquele que efetivamente gera ciência; o epistemólogo, o que constrói um meta-saber, isto é, saber crítico do próprio saber; e o historiador das ciências, que faz construir o passado, nos termos já por nós dito. Cabe ao cientista conhecer o passado das investigações da mesma ordem que a sua, com um preciso fim heurístico, dado ser o objetivo do cientista o progresso de sua teoria; apesar disto, o próprio Canguilhem reconhece como são relativamente raros os cientistas com conhecimento do passado de suas disciplinas, o que demonstra como a história das ciências não é originária, mas complementar à prática científica propriamente dita. Já quanto ao epistemólogo, seu problema é abstrair o processo por detrás dos enunciados científicos que se pretendem verdadeiros, visando encontrar nos atos do saber os meios que permitiram a este maior eficácia; para tanto, o epistemológo deve instalar-se no interior dos enunciados científicos, imitando a prática do cientista, quer dizer, sabendo como cientista pode produzir o que produziu e porque o fez. Fica explícito, assim, que como se trata da análise de um processo, a história da ciências é central, fundante ao ofício do epistemólogo.

               Vemos, portanto, que nesta tradição filosófica — a mesma de Foucault — a história das ciências ocupa papel fundamental em relação à epistemologia. O historiador das ciências trabalha com o passado de uma determinada produção cultural cuja especificidade é buscar a verdade. Passado: designação dos antecedentes das atuais condições de exercício. Com isso, o historiador das ciências corre um risco, o de aplicar os atuais modelos científicos ao passado; quer dizer, perguntar o passado porque lhe falta a maturidade lógica alcançada pela ciência atual. Compete ao epistemólogo impedir que o historiador das ciências proceda desta forma, deixando claro que o que baliza a história da ciência é a descontinuidade; quer dizer, cabe ao epistemólogo reativar o sentido da história de uma ciência: ruptura epistemológicas entre normas científicas distintas. A partir disto, o historiador das ciências, se valendo da epistemologia, não pode confundir “a persistência dos termos com a identidade dos conceitos, a invocação dos fatos de observação análoga com parentesco de método e de problematização” (CANGUILHEM, 1977, p. 20).

               Portanto, Canguilhem, orientador e fonte de Foucault, elabora, a partir de Bachelard, uma história epistemológica, onde epistemologia alimenta a história e a história alimenta a epistemologia, em análises balizadas nos conceitos de ruptura, corte epistemológico, descontinuidade. Seu método se chama, então, da recorrência: “jurisdição crítica sobre a anterioridade de um presente científico, que está isento, precisamente porque científico, de ser ultrapassado ou retificado” (CANGUILHEM, 1977, p. 20).
*
               São estas as maiores influências histórico-epistemológicas de Foucault. Já veremos como elas se refletem nas análises do filósofo francês.

               Compreenderemos como epistemologia política toda aquela análise que situa esses ditos elementos acerca do conhecimento em face da política, das relações de poder entre os homens, das condições sociais de produção, circulação e armazenamento do saber. Dado nosso recorte, e mais especificamente, por epistemologia política entendemos as elaborações realizadas por Foucault, a partir de uma interpretação tanto da filosofia de Nietzsche quanto da epistemologia francesa, que redundaram em uma teoria política do saber e em um método de análise que permite tomá-lo como forma de poder.  Em suma, o objetivo de tal teorização é mostrar que “por trás de todo saber, de todo conhecimento, o que está em jogo é uma luta de poder. O poder político não está ausente do saber, ele é tramado com o saber” (FOUCAULT, 2005b, p. 51). Trata-se, assim, da constituição tanto de uma ontologia do saber quanto de um método analítico — a genealogia — e de um modelo teórico do poder. Analisemos cada uma destes elementos componentes.

2.2. Ontologia do saber


            Por ontologia do saber compreenderemos: um conceito de saber; conceito de ordem do discurso (por conseguinte, ordem do saber); e, conceito de regime de verdade. Que desde já fique claro que conhecimento e saber são, para nós, sinônimos neste texto.

            Embora esta distinção um tanto quanto rígida, estes três conceitos estão fortemente imbricados: um supõe e baseia o outro, etc. Quer dizer, a separação que ora fazemos tem como base tanto a necessidade de explicitar com máximo de rigor o que caracteriza um e outro conceito, e, também, o fato de suas fontes serem diferentes. Não há nenhum texto onde Foucault una esses conceitos, dando-lhes a necessária correlação com fins analíticos. É exatamente isto que pretendemos fazer neste tópico.            

Conceito de saber
Para Aristóteles o conhecimento é um impulso natural presente em todos os humanos. De onde que, se conhecer é natural, por extensão também é natural o conhecimento, os objetos e os sujeitos. Para estes, não há história, senão aquela que leva do mais simples ao mais complexo, do menos lógico ao mais logicamente refinado. Foucault discorda. 

            Na série de conferências editadas sob o nome A verdade e as formas jurídicas, M. Foucault elabora uma teoria política do saber ou, o que ele chamou então de política da verdade. Trata-se, para ele, de mostrar como o saber não é natural, como os objetos, os campos de saber, os sujeitos de conhecimento e a verdade não estão dados, mas são produzidos pelas práticas sociais, notadamente as práticas jurídicas.

            É a partir da filosofia de Nietzsche que o epistemólogo de Poitiers buscará elaborar tal teoria. Nietzsche, diz ele, “faz a análise histórica da própria formação do sujeito, a análise histórica do nascimento de um certo tipo de saber, sem nunca admitir a preexistência de um sujeito de conhecimento” (FOUCAULT, 2005b, p. 13). De fato, para Nietzsche o conhecimento é uma invenção, Erfindung, em alemão. Erfindung se contrapõe a Ursprung, origem ou fundamento originário, termo este que terá bastante importância também no método de Foucault.

            Toda Erfindung é uma ruptura cuja origem é baixa; quem faz solenes as origens são os historiadores. Também é assim com o conhecimento. Se ele é uma invenção, ele não é inerente ao homem: não se trata de um instinto ou de um desejo natural. Para Nietzsche, diz Foucault, “o conhecimento é simplesmente o resultado do jogo, do afrontamento, da junção, da luta, do compromisso entre os instintos” (FOUCAULT, 2005b, p. 16). O conhecimento é um efeito de superfície da batalha entre os instintos: ele é contra-instintivo, é contra-natural. Entre as coisas e o conhecimento não há ligação necessária, assim como também não há nada que ligue a priori natureza humana e conhecimento. 

“É contra um mundo sem ordem, sem encadeamento, sem formas, sem beleza, sem sabedoria, sem harmonia, sem lei, que o conhecimento tem de lutar. É com ele que o conhecimento se relaciona. Não há nada no conhecimento que o habilite, por um direito qualquer, a conhecer esse mundo. Não é natural à natureza ser conhecida” (FOUCAULT, 2005b, p. 18)
           
            A relação entre conhecimento e natureza é “uma relação de luta, dominação, subserviência, de compensação (...) de poder e de força, de violação (...) e não percepção, reconhecimento, identificação delas ou com elas” (FOUCAULT, 2005b, p. 18).

            Foucault, asseverando Nietzsche, rompe com toda a tradição filosófica ocidental para a qual haveria uma unidade, uma continuidade que levaria do conhecimento às coisas e vice-versa; mas, se entre coisas e conhecimento há uma batalha, vemos a dita unidade esfarelar-se no ar. Além disso, trata-se de dissolver outra unidade, a do sujeito: o conhecimento e o instinto não são a marca da soberania e da força unitária do sujeito; eles estão em guerra, é a violência da batalha que caracteriza a relação de um com outro, e não a de uma calmaria do Mesmo que se reencontra consigo.

            Para explicar a origem do conhecimento Nietzsche retoma Spinoza para marcar sua posição. Este último pensava que para compreender (inteliggere) as coisas, é necessário que se evite rir (ridere), deplorar (lugere) e odiá-las (detestari). Nietzsche diz que não: o conhecimento seria resultado da guerra entre os instintos, como que resultado parcial da luta entre eles, momento de trégua, estabilização temporária da luta entre as três paixões. Compreender o conhecimento implica parar de tê-lo como beatificado, puro; é por meio da compreensão do jogo de interesses, das relações de força, de poder, de dominação que podemos compreender o conhecimento. O conhecimento é fruto da luta de três más relações que não respeitam, não aproximam, mas riem do objeto; que não o acolhem, mas deploram, lamentam-no; que não o amam, mas o odeiam, buscam destruí-lo.

 O fato de advir da luta explica algumas características do conhecimento. Primeiro, o fato de ele ser generalizante: como ele é violência, ele esquematiza, solapa o que é diferença nas coisas em benefício de si mesmo. Segundo, o fato de ele, paradoxalmente, ser particular: como o conhecimento é maldade, ele se desenvolve como duelo, relação de força aplicada sobre cada coisa particularmente. Terceiro, o fato do conhecimento ser perspectivo: por perspectivo Foucault entende o fato do conhecimento não possuir essência, unidade ou condições universais; como a luta entre os três instintos não terminou, mas somente estabilizou-se temporariamente, resultando no conhecimento, este é, portanto, rearranjo ou trégua temporária advindo de relações precárias; ou seja, “o conhecimento é sempre uma relação estratégica em que o homem se encontra situado (...) Pode-se falar do caráter perspectivo do conhecimento porque há batalha  e porque o conhecimento é efeito dessa batalha” (FOUCAULT, 2005b, p. 25). Por fim, e como decorrência desta última característica do conhecimento, o fato do interesse; bem sabemos que há toda uma tradição filosófica que compreende o conhecimento, mais precisamente, o conhecimento científico, como desinteressado, como a relação de candura que faz a verdade brilhar em sua pureza criadora. Ora, se, para nós, o conhecimento é fruto de relações estranhas, externas a si, ele é sempre interessado, pois fruto da luta de outrem; conhecimento não exclui desejo: é fruto destes; o conhecimento não desata as maldades do poder, mas muito ao contrário, não só as aplica, como ele mesmo é, uma relação de poder contra as coisas; o conhecimento não é independente, autônomo ou livre, mas dependente, subserviente e interessado. 

*
            Se quisermos aclarar os motivos que levam Foucault a tomar todo saber como poder devemos ir mais longe e buscar as bases filosóficas do pensamento deste, ou seja, recuperar Nietzsche. Trata-se de uma hipótese o que estamos a dizer.
           
            Na Genealogia da moral, Nietzsche distingue entre procedimento e sentido. A propósito do castigo, diz ele que:

“Há que distinguir nele dois aspectos: o que nele é relativamente duradouro, o costume, o ato, o ‘drama’, uma certa seqüência rigorosa de procedimentos e o que é fluido, o sentido, o fim, a expectativa ligada às realização desses procedimentos” (NIETZSCHE, 2007, p. 68, grifos nossos)

            Polemizando com os psicólogos ingleses, Nietzsche busca mostrar como há uma diferença entre a coisa material, queremos dizer, o procedimento, e o campo de significações na qual as inserimos, o sentido. Por exemplo, o castigo não foi feito para dar exemplo, ao contrário do que diz; é impossível dizer, precisamente, porque ele surgiu já que há uma série de sentidos nos quais ele foi inserido; o castigo foi, na verdade, “alternadamente submetido às necessidades de se vingar, de excluir o agressor, de libertar a vítima, de aterrorizar os outros” (FOUCAULT, 2007c, p. 22). O mesmo procedimento, castigar, teve, portanto, pelo uma dezena de sentidos, que Nietzsche cita neste mesmo 13º aforismo.

            Analogamente, o saber é o sentido que se dá às coisas do mundo. Só que esta relação que designa, que interpreta, não é solta; dizer o sentido de algo significa conformá-lo: se uma árvore é uma estrutura orgânica ou um a encarnação de um deus, isto implica em mudança nas ações que se desenvolverão em relação a ela.  Nietzsche bem sabia disso, tanto é que ele define como regra de método que “o conceito denotador de preeminência política sempre resulta em um conceito de preeminência espiritual” (NIETZSCHE, 2007, p. 23); os que dominam politicamente dão o sentido as coisas.

            Disto Foucault extrai — é precisamente nossa hipótese — a base de sua epistemologia política. O poder gera saber, ou seja, a dominação política gera sentido sobre as coisas do mundo, sobre os procedimentos, visando se manter e fortalecer-se. O saber gera poder, isto é, dizer o que algo é adequar-lhe a determinado estado de coisas político, seja atual seja um projeto ou proposta.

A ordem do discurso
            Em suma, saber é poder: fruto de relações de luta, gerador de relações de poder, instrumento de guerra, meio de dominação, etc.

            Deve-se notar, no entanto, que até agora consideramos o saber em si, se com isto entendermos que não o situamos em suas condições de circulação e de produção, mas somente naquilo que o caracteriza precisamente enquanto saber. É o que faremos agora.

            O ano de 1970 marca uma importante inflexão teórica de Michel Foucault. É neste ano que, a propósito de sua aula inaugural no Collège de France, ele tomará o discurso — que, lembremos, é a parte material do saber, a escrita ou a fala — nas precisas condições que acabamos de dizer. Façamos uma breve exposição da metodologia de M. Foucault para que possamos compreender melhor o que há de novo nesta aula.

            Até então, seu método, a arqueologia, caracterizava-se pela análise do campo discursivo, isolado em si mesmo, ou, antes, da análise da fronteira entre o discursivo e o não discursivo.  Assim, o filósofo de Poitiers tomava como possível um recorte analítico que se debruçasse sobre o discurso sem levar em conta outros aspectos, como aqueles sociais, políticos, econômicos, etc, mas, também, sem achatar o discurso sobre si mesmo: trata-se de analisar o limiar entre discursivo e o não-discursivo. Deleuze: “Ele criou uma nova dimensão, a que poderíamos dar o nome de dimensão diagonal” (apud DOSSE, 1994, p. 274)

             Aproximando-se dos historiadores da Terceira Geração dos Annales, a chamada Nouvelle histoire (cf. BURKE, 1997, p. 117), Foucault punha em prática uma história estrutural, de long durée, que busca a sistematicidade das formações discursivas, em detrimentos de análises psicologizantes ou individualizantes, que fariam uma história das obras, dos autores. Problematizando o naturalizado, Foucault se propôs a fazer a história das coisas inusitadas: a loucura, o olhar médico, o campo do saber imediatamente antecedente ao surgimento das humanidades, etc.

            O documento é, então, o centro da problemática teórico-historiográfica foucaultiana, e não o devir, e, apesar de tudo, nem mesmo a questão da estrutura propriamente falando, apesar da aproximação Foucault-estruturalismo levado a cabo pela mídia do establishment intelectual francês; trata-se, pois, de saber como levar a cabo a

“constituição de corpus coerentes e homogêneos de documentos (...); o estabelecimento de um princípio de escolha (...); a definição do nível de análise e dos elementos que lhe são pertinentes(...); a delimitação dos conjuntos e subconjuntos que articulam o material estudado (...); a determinação das relações que permitem caracterizar um conjunto” (FOUCAULT, 2007a, p. 12).

            O método de Foucault então posto em prática, a arqueologia, se baliza nas supracitadas posições histórico-filosóficas; podemos dizer, grosso modo, que trata-se de um método estrutural de história do pensamento. Cada discurso é constituído por elementos chamados enunciados – signos relacionados a um conjunto de objetos, que prescrevem determinada posição aos sujeitos e que podem ser repetidos em sua materialidade. A arqueologia busca desvelar os enunciados considerados a partir de seus sistemas de formação, que definem um discurso. Em outros termos, trata-se de analisar a lei de formação de enunciados, buscando as formações discursivas que constituem objetos, sujeitos, temas, etc., que permitiram a articulação de diversos enunciados em um discurso ou conjunto de discursos.

            Para o arqueólogo, não existe necessidade no mundo, ou seja, tudo deve ser problematizado já que poderia ser de outra forma. A história, ou elementos seus, tomados como continuidade ou evolução é o principal inimigo do arqueólogo e é justamente este ponto que mais separa Foucault dos historiadores da Terceira Geração dos Annales; pelo continuísmo que era próprio a estes historiadores, Foucault queria destruí-los, queria destruir a forma hegemônica como então se praticava o ofício do historiador na França (cf. DOSSE, 1994, p. 267-292).

            Existem várias formas de continuidade. Além daquelas propriamente históricas, como compreender a história como continuidade, evolução, progresso, etc., existem outras não imediatamente visíveis: o livro, o autor, a obra, etc.; são formas de continuidade, pois supõe unidades naturais, ou seja, desconsideram o próprio devir, em se focando na permanência do Mesmo, do sujeito tomado como dado. Afora o fato de serem conceitos operacionais continuístas, Foucault os considera, além disso, unidades fracas para fundarem uma arqueologia. É no enunciado, tomado ele mesmo como acontecimento, que uma empreitada teórica de tipo arqueológica deve fundar-se. O enunciado não pode ser descrito enquanto as formas de continuidade continuarem a ser tomadas como originárias: a linguagem, os objetos, os temas, o estilo. A unidade do discurso, a sistematicidade de diferentes enunciados, somente pode ser buscada no enunciado considerado enquanto acontecimento – portanto, dotado de um espaço e de uma geografia que lhe singularizam na história. A unidade do discurso deve ser buscada nas formações discursivas: as regularidades definíveis, a partir da correlação de diferentes objetos e conceitos, em um mesmo funcionamento e ao mesmo regime de transformações; e nas regras de formação: condições às quais se submetem os elementos de uma formação discursiva, ou seja, as condições de existência, coexistência, manutenção, transformação e desaparecimento de uma formação discursiva. São estes os dois focos que imprimem a unidade ao discurso.

*
            É graças a esse enfoque no enunciado tomado enquanto acontecimento que Foucault deve isolar o saber do resto da sociedade, sem, contudo, considerá-lo de forma ensimesmada, tal qual acima expusemos.

            O que há de novidade na aula inaugural, A ordem do discurso, são duas hipóteses. A primeira consta logo nas primeiras páginas:

(...) suponho que em todas as sociedades a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e terrível materialidade” (FOUCAULT, 2005 p. 9).

            A segunda, um pouco mais adiante, considera que o discurso não é neutro, não é desinteressado, mas está vinculado ao poder e ao desejo. O discurso não apenas manifesta ou esconde desejo: é objeto de desejo; não apenas descreve ou traduz as lutas e as dominações: é objeto de luta, luta-se para dominar o discurso.
                       
*

            Da primeira hipótese, uma série de conclusões. Há uma ordem do discurso, um regime discursivo que seleciona “quais discursos”: controle da produção, circulação e aplicação do discurso. No campo discursivo há, portanto, procedimentos de controle, os quais Foucault divide em internos e externos. Como estes últimos darão ensejo para a teorização de um regime de verdade, abordemos, em primeiro lugar, os procedimentos internos de controle.

            Os procedimentos internos de controle são exercidos pelos discursos sobre si mesmos, funcionando, marcadamente, “a titulo de princípios de classificação, de ordenação, de distribuição como se se tratasse, desta vez, de submeter outra dimensão do discurso: a do acontecimento e do acaso” (FOUCAULT, 2005a, p. 21). Foucault passa, então, a considerar diversos procedimentos, os quais citaremos de maneira quase sumária, dividindo-os, contudo, em princípios de coerção e de rarefação.

Procedimentos de coerção: são os procedimentos de controle da aparição do discurso, quer dizer, que fixam regras de surgimento e significação. O comentário: desnível entre os discursos que são proferidos e desaparecem e aqueles que são permanentes, quer dizer, que duram além de sua enunciação; estes dão ensejo a textos segundos, discursos que se acumulam sobre outros discursos e cuja novidade “não está no que é dito, mas no acontecimento de sua volta” (FOUCAULT, 2005a, p. 26), portanto, limitar o acontecimento aleatório do discurso por meio da repetição do mesmo. O autor: este entendido como principio de coerência, significação e agrupamento do discurso; ainda que móvel ao longo da história, nas sociedades contemporâneas o autor cumpre a precisa função de reduzir a multiplicidade do discurso á forma identitária do eu. A disciplina: trata-se de um corpo de proposições, regras, técnicas e métodos constitutivos de uma sistematicidade anônima; esta relação de sistema permite que se agrupe tudo que pode ser dito de verdadeiro ou aceito  sobre determinada coisa; a disciplina determina uma série de princípios restritivos (objetos, técnicas, conceitos, instrumentos) que determinarão a pertinência ou não de uma proposição a si; “a disciplina é um princípio de controle da produção do discurso. Ela lhe fixa os limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reatualização permanente das regras” (FOUCAULT, 2005a p. 36).

 Procedimentos de rarefação dos sujeitos: são aqueles que controlam não tanto as condições de aparecimento do discurso, mas, sim, de sua circulação, de funcionamento dos discursos. Ritual: qualificação dos sujeitos que falam, quer dizer, prescrição de posições, gestos, comportamentos e fixação dos efeitos que cada discurso terá. Sociedades do discurso: “cuja função é conservar ou produzir discursos, mas para fazê-los circular em espaço fechado, distribuí-los somente segundo regras restritas, sem que seus detentores sejam despossuídos por essa distribuição” (FOUCAULT, p. 39, 2005a). Rituais da palavra: trata-se de sociedades do discurso difusas, mais amplas, cuja função é também produzir discursos, mas de forma a não permitir a sua permutabilidade: são funções, como o escritor e o sistema que o apóia, ou formas prescritas ao discurso, como a do segredo técnico. Grupos doutrinários: se eles assemelham-se à disciplina pelas condições que exige (verdades comuns e regras de conformidade com os discursos válidos), a doutrina questiona o sujeito que fala a partir do enunciado, excluindo todo conteúdo inassimilável como heresia, justificando-se a partir da ortodoxia; o sujeito que fala, carrega o sinal de uma pertença prévia, que a doutrina questiona também. Apropriações sociais: trata-se da “maneira política de manter ou de modificar a apropriação dos discursos com os saberes e os poderes que eles trazem consigo” (FOUCAULT, 2005a, p. 44).

O regime de verdade
A primeira hipótese da Ordem do discurso é a de que existem procedimentos externos de controle do discurso, os procedimentos de exclusão. Aquele que Foucault aborda mais detalhadamente chama-se vontade de verdade, mas há outros, como a interdição e a separação/rejeição. Interdição: restrição de enunciação, quer dizer, “não se tem o direito de dizer tudo, que não se pode falar de tudo, em qualquer circunstância, que qualquer um, enfim, não pode falar de qualquer coisa” (FOUCAULT, 2005b, p. 9); três tipos principais de interdição: tabu do objeto, ritual da circunstância e privilégio ou exclusividade do sujeito que fala. Separação/rejeição: Foucault dá o exemplo do louco, que nada mais é senão aquele cujo discurso não deve circular, quer dizer, cuja materialidade de seu discurso deve, ao mesmo tempo ser seccionada das demais, rejeitada em um aparato de saber, constituído de uma rede de instituições, que escutam esse discurso, e lhe retira os poderes. 

Mas é a vontade de verdade que mais nos importa. Ela rege nossa vontade de saber desde o século VI a.C. Olhado por dentro, um discurso verdadeiro ou falso não guarda semelhança com os demais procedimentos de exclusão, pois estes devem ser arbitrários, dotados de aporte institucional; mas vista de fora, a vontade de verdade se mostra como um procedimento de exclusão: histórico, arbitrário e institucionalmente apoiado. Institucionalmente apoiado, pois há os sistemas de livros, de edição, as bibliotecas laboratórios, universidades, etc...; embora isto, o que reconduz a vontade de verdade é, sobretudo, a maneira pela qual uma sociedade aplica o saber: formas de valorização ou não, formas de distribuição de repartição, de atribuição. Encarada por estas vias, a vontade de verdade mostra-se como sistema de coerção: exerce, sobre os demais discursos, pressão e poder de coerção: os discursos buscam autorizar-se pelo discurso da verdade. Há séculos que a vontade de verdade só faz crescer; tanto é que outros procedimentos de exclusão – interdição, sujeição e rejeição – se orientam no sentido da vontade de verdade: esta os toma, os modifica, os reorienta, ao passo que ela mesma se fortalece e se torna, mais e mais, incontornável.

            Histórico, porque remete ao surgimento da filosofia platônica, à separação entre poder e saber no Ocidente, ao fim do sofista e ao surgimento da distinção verdadeiro / falso, que dará a forma a mais total de nossa vontade de saber. É a partir da separação entre saber e poder e da distinção — instituída pela filosofia platônica e pelo saber das testemunhas, próprio à prática judiciária grega — entre verdadeiro e falso que nossa vontade de saber tomará a forma que tem até hoje; forma geral, que funcionou historicamente como procedimento de exclusão do discurso.  Passou por diversas mudanças durante os séculos que nos separam de Platão, de Aristóteles, etc, mas não deixou, nunca, de funcionar como sistema de exclusão, como atestam aqueles que ousaram opor-se a ela.

            Por que se fala tão pouco dessa vontade de verdade? Desde os gregos, na verdade, desde Platão, o discurso verdadeiro não corresponde, não pode corresponder ao desejo e ao poder; a verdade existe, no mundo das idéias, imutável, é este mundo que é a corrupção das idéias; se a verdade não está em jogo, somente o desejo e o poder estão. A verdade não pode reconhecer que uma vontade a guia, portanto, mascara-a, e o faz de tal maneira, que a verdade aparece a nós como rica, fecunda, doce, universal. Por isso não a vemos como sistema de exclusão, tal como de fato ela se fez exercer.
            A vontade de verdade, que faz girar, em torno de si, os demais discursos, funciona como procedimento de exclusão. E isto porque, se em todas as sociedades há um regime de verdade. Na nossa, ocidental, este toma proporções imensas. Por regime de verdade devemos entender os discursos que funcionam como verdade, regras de enunciação da verdade, técnicas de obtenção da verdade, definição de um estatuto próprio daqueles que geram e definem a verdade; portanto ligação circular entre verdade e poder: poder que produz verdade e a sustenta, verdade que produz efeitos de poder. (cf. FOUCAULT, 2007c, p. 14).
            Esta concepção, que permite à Michel Foucault conceituar a verdade de um ponto de vista estritamente discursivo, toma esta como um “conjunto das regras segundo as quais se distingue o verdadeiro do falso e se atribui ao verdadeiro efeitos específicos de poder” (FOUCAULT, 2007, p. 13) ou como um “conjunto de procedimentos regulados para a produção, a lei, a repartição, a circulação e o funcionamento dos enunciados” (FOUCAULT, 2007 p. 14).
            Um regime de verdade ou, o que interpretamos como o mesmo, uma economia política da verdade indica as maneiras, os procedimentos de troca, de mudança, de atribuição, de produção, de incitação, de cessão, de constituição da verdade. Cinco características dessa economia em nossas sociedades: o discurso científico e as instituições que o produzem centralizam a verdade; esta é incitada constantemente pelos campos político e econômico; há um grande consumo e uma grande difusão da verdade; há grandes aparelhos de produção e difusão da verdade: universidades, exército, escritura, mídia; por último, ela é objeto de debates políticos e confrontos sociais.
*

Portanto, “por trás de todo saber, de todo conhecimento, o que está em jogo é uma luta de poder. O poder político não está ausente do saber, ele é tramado com o saber” (FOUCAULT, 2005, p. 51). O discurso deve ser analisado em termos de estratégia, em termos de guerra, de política, de interesse, como objetivo e meio de luta, mesmo porque, na constituição mesma do conhecimento, e, por conseguinte, do discurso está uma relação de força. Da mesma forma a verdade não existe fora das relações de poder, pois ela mesma é uma relação de poder, fruto de relações de poder, exercendo efeitos de poder. A verdade não só faz, integra as relações de poder como, ela mesma, é uma relação de poder.

2.3. O método: a genealogia
               A genealogia é um método inspirado em Nietzsche. A obra de Nietzsche analisou elementos os mais variados buscando estabelecer-lhes a genealogia, quer dizer, sua história não- metafísica. Dentre estas obras talvez a mais famosa seja a Genealogia da moral, na qual o filósofo alemão empreende uma pesquisa genealógica dos valores cristãos (como humildade, piedade, etc.) mostrando buscar sua origem, ligada ao modo de vida dos escravos de Roma, e seu desenvolvimento que somente pode ser pensado em relação ao poder que os sacerdotes adquiriram desde então. Nietzsche foca-se no corpo, na vivência dos escravos, submetidos pelos bárbaros germânicos, para mostrar como os valores não surgem fora do mundo, e depois caem do céu à guisa de pingos de chuva; ao contrário, os valores vêm dar sentido, vêm fundamentar determinados modos de vida. Portanto, colocar as coisas no mundo dos homens, pensá-las em sua própria história, através da análise documental que busque a vida, o corpo daqueles que viveram, e não as letras mortas nos livros (cf. NIETZSCHE, 2007).

               O genealogista não se contenta com o azul dos sonhos metafísicos, com aquilo que se diz desde sempre dado; a genealogia, diz Nietzsche prefere “o cinza, isto é, a coisa documentada, o efetivamente constatável, o realmente havido” (NIETZSCHE, 2007, p. 13). A genealogia é um método, portanto, que busca saber, na acepção dada pelo filólogo-filósofo, o valor dos valores, o peso próprio, a real importância, a origem e o contexto da origem dos valores; não qualquer saber: deve-se demonstrar documentalmente, para não ficar na mera verborragia bíblica.

               Todos estes elementos são resgatados por Foucault em seu famoso texto, Nietzsche, a genealogia e a história. Em se tratando de um método de análise histórica, a genealogia funda-se na análise de documentos, conforme o dito, que situa as coisas na história de forma anti-metafísica. “A genealogia não se opõe à história como a visão altiva e profunda do filósofo ao olhar de toupeira do cientista; ela se opõe, ao contrário, ao desdobramento meta-histórico das significações ideais e das indefinidas significações. Ela se opõe à pesquisa de 'origem'” (FOUCAULT, 2007c, p. 16). Em alemão há, ao menos, três palavras para origem: Ursprung, Entestehung e Herkunft.
           
            Ursprung é origem no sentido de essência metafísica, sendo que uma pesquisa deste tipo busca o fundamento originário das coisas, anteriores ou mesmo fora da história. É a esta “origem” que a genealogia se opõe.

            Lendo Nietzsche, Foucault interpreta que o genealogista não deve buscar a essência das coisas, porque nada tem essência – o que é indicado por este nome foi construído pouco a pouco, por acidentes externos as coisas; é que “o que se encontra no começo histórico das coisas não é a identidade ainda preservada da origem – é a discórdia entre as coisas, é o disparate” (FOUCAULT, 2007c, p. 18). Não existe uma verdade tal querem os platônicos; não existe nenhum eidos. O genealogista compreende que “a história com suas intensidades, seus desfalecimentos, suas grandes agitações febris, com suas síncopes, é o próprio corpo do devir. É preciso ser metafísico para lhe procurar uma alma na idealidade longínqua da origem” (FOUCAULT, 2007c, p. 20), é preciso ser metafísico para empreender uma pesquisa de Ursprung.

             Por isso, o objeto da genealogia é indicado mais fidedignamente pelas palavras alemãs Herkunft e Entstehung, que, ainda que ordinariamente traduzidas por origem, tal como Ursprung, indicam, mais exatamente, outras coisas.

            A melhor tradução para Herkunft é “proveniência”, pertencimento a um grupo, povo, clã ou tradição. Trata-se de fazer aparecer o acontecimento que permitiu a formação de um conceito ou caráter; portanto, em dissociando o que hoje se dá, pesquisar o que se perdeu. Sem nenhum traço evolucionista, a Herkunft quer “descobrir que na raiz daquilo que nós conhecemos e daquilo que nós somos – não existem a verdade e o ser, mas a exterioridade do acidente” (FOUCAULT, 2007c, p. 21). Pesquisa de herança, das falhas, da heterogeneidade, da instabilidade, que dissocia o que é dado como uno. Como é em um corpo que as marcas se inscrevem, que os acontecimentos se fazem sentir, é justamente na articulação entre corpo e história que a Herkunft se situará.

            Quanto a Entstehung, a melhor tradução seria “emergência”: análise do ponto e da lei de surgimento de algo. “A genealogia reestabelece os diversos sistemas de submissão: não a potência antecipada de um sentido, mas o jogo casual das dominações (...) [e é por isso que] a emergência se produz sempre em um determinado estado das forças” (FOUCAULT, 2007c, p. 23). Portanto, a análise da Entestehung deve mostrar o combate entre as forças ou o meio pelos quais elas buscam se perpetuar quando já decadentes. A Entstehung se dá na distância entre as forças em combate, pois não existe emergência que não se dê no âmbito da luta entre dominadores e dominados. Se a dominação é histórica, alterando-se na história, ela sempre “impõe obrigações e direitos; ela constitui cuidadosos procedimentos. Ela estabelece marcas, grava lembranças nas coisas e até nos corpos; ela se torna responsável pelas dívidas” (FOUCAULT, 2007c, p. 25); a dominação estabelece regras, que são a violência da guerra na qual tudo está imerso; é por meio de regras que se violenta aqueles que violentam, e serão os mais astutos aqueles que souberem usar as regras contra quem as inventou; neste sentido, a interpretação das regras liga-se ao devir da humanidade: ele próprio nada mais é senão uma série de interpretações. A genealogia deve fazer aparecer as sucessivas interpretações que vincaram as coisas; deve mostrar os sentidos que se fizeram pesar sobre os diversos procedimentos, sobre os diversos corpos, sobre as coisas todas do mundo, pois qualquer coisa pode ser tomada objeto da genealogia: tudo tem uma história, que lhe é idiossincrática.

            A genealogia é método histórico anti-metafísico que visa mostrar a proveniência e a emergência das coisas, através da dissociação das unidades naturalizadas. Contrastar as diferenças, mostrar as forças em jogo em cada menor coisa, expulsar os interesses de suas tocas, eis o que faz o genealogista. Quebrando as unidades, Foucault também quebra o telos, as finalidades, terminando por opor o homem, os homens, entre si, ou seja, vincando as diferenças, salienta-se a historicidade das coisas – de todas as coisas, até mesmo daquelas que se mostram as mais naturalizadas.
*
            Neste ponto, devemos fazer uma observação sobre o percurso teórico de M. Foucault. Até A ordem do discurso, 1970, a obra de Foucault é marcada pela análise do campo discursivo, isolado em si mesmo, ou antes, da análise da fronteira entre o discursivo e o não- discursivo; é que discurso é o nome dado ao saber no que há nele de mais físico: a fala, a escrita; queremos dizer, assim, que o filósofo de Poitiers tomava como possível um recorte analítico que se debruçasse sobre o discurso sem levar em conta outros aspectos, como aqueles sociais, políticos, econômicos, etc, mas, também, sem achatar o discurso sobre si mesmo; trata-se de analisar o limiar entre discursivo e o não-discursivo.

            É graças a esse enfoque no enunciado tomado enquanto acontecimento que Foucault deve isolar o saber do resto da sociedade, sem, contudo, considerá-lo de forma ensimesmada, tal qual acima expusemos. A genealogia é, assim, um deslindar da arqueologia; ao passo que o discurso continua sendo o foco, busca-se mostrar seu caráter político. Ou seja, ligam-se os sistemas e as regras de formação às disputas de poder entre os homens: às urgências históricas, as guerras, aos projetos políticos, etc. O genealogista como que dá um passo além, em relação ao arqueólogo desde nossa interpretação: se o arqueólogo considerava o discurso, limiar entre o saber em forma e em ato, o genealogista aumenta esta fronteira: mostra como todo fato discursivo, como todo fato epistêmico é, simultaneamente, fato político.O genealogista aborda o fato discursivo como acontecimento, mas acontecimento político, que vem responder às injunções do poder. É na intersecção entre saber e poder, entre discurso e política (interesse, desejo, cf. FOUCAULT, 2005a) que se deve buscar as verdadeiras regras de formação, o real significado epistêmico das teses e seu real fito.

            Neste sentido, tanto As palavras e as coisas, o grande livro arqueológico de Foucault, quanto Vigiar e punir, a grande obra da genealogia foucaultiana, ambas abordam o mesmo objeto, a partir de vieses diferentes. Naquele, considera-se como foi possível o objeto de saber homem, como as ciências humanas foram possíveis; mas o foco são as articulações discursivas: quais problemáticas propriamente epistemológicas, quais as mudanças na estrutura mesma do saber – chamada por Foucault de epistemê – tornaram possível o homem enquanto objeto de algo como uma série de ciências que nós chamamos Humanidades, fazendo com que ele emergisse, ao mesmo tempo, como sujeito (cf. BRUNI,1989, p. 199-200).

            Em Vigiar e Punir trata-se da mesma coisa em se tratando de outra. O objetivo é, também, mostrar como foi possível que um setor das ciências se focasse sobre esse objeto emergente, o homem. Mas todas as diferenças são observadas. É partir da disciplina que Foucault levará a cabo essa análise, mostrando como o homem tornou-se objeto e sujeito a partir de uma série de mecanismos de poder postos em funcionamento pela máquina emergente da sociedade industrial. Foi como espelho de um projeto de domesticação que as ciências humanas foram tornadas possíveis.

             No curso O poder psiquiátrico, Foucault conta, entre as transformações advindas com a industrialização, a formação de um tipo de relações de poder chamado poder disciplinar ­– esboço daquilo que Foucault desenvolverá mais apuradamente em Vigiar e Punir. A disciplina organiza aparelhos de apropriação total do tempo, dos corpos e das condutas, de forma a submeter os homens a mecanismos contínuos de vigilância e registro do comportamento. Estabelece-se uma norma, que deve ser posta em jogo por meio do exercício, que cria, faz surgir, engendra um corpo ou comportamento. Quando constatado elementos desviantes em relação ao normal, faz-se rodar medidas corretivas, medidas de punição. O objetivo da disciplina é, em último caso, anular-se a si mesma, já que ela busca criar um corpo, quer dizer, dispensar os elementos disciplinadores. A sociedade industrial fez surgir uma rede de aparatos disciplinares que se completam entre si. Os mecanismos da disciplina são intercambiáveis e articuláveis, já que as relações que uns e outros exercem ao invés de se excluírem se complementam em sua diferença.

            O indivíduo não é originário: ele emerge como realidade no final do século XVIII, como conseqüência do desenvolvimento do capitalismo e dos mecanismos disciplinares. Por meio destes, procedeu-se a acumulação de homens, correlata historicamente necessária à acumulação de capital: distribui-se a multiplicidade da força de trabalho, se lhe torna utilizável na multiplicidade dos homens, aperfeiçoando-a. Por isso a disciplina emerge exatamente no momento da constituição da sociedade industrial. Quando de então, o indivíduo era tematizado sobre duas formas predominantes, ou indivíduo jurídico ou indivíduo histórico. É da junção entre estas tematizações e dos aparatos disciplinares que emergirá as ciências humanas.

               É que os mecanismos disciplinares tornam cada corpo, considerado separadamente, um sujeito, pois é por meio da atomização somática que a vigilância, o registro, a punição, a dicotomia normal-anormal opera. Poder disciplinar: “uma série constituída pela função-sujeito, a singularidade somática, o olhar constante, a escrita [dos comportamentos] o mecanismo de punição infinitesimal, a projeção da psique e, finalmente, a divisão normal-anormal” (FOUCAULT, 2006, p. 69). Em seu exercício, a disciplina cria uma individualidade, uma psique. São estes elementos conjugados que tornaram possível historicamente a constituição de algo como uma ciência do homem.

            A ciência clássica realizava classificações diante da multiplicidade do mundo empírico – já se tratava de expressão da verdade-demonstração. A acumulação de homens desenvolveu outra forma de operação, também fundada na verdade-demonstração, que é a tática: distribuição de singularidades de modo a maximizar a eficácia produtiva de singularidades; novamente, é da tática, e das questões que ela suscita que emergem as ciências humanas.
             
*
               Fizemos breve exposição do método arqueológico que pode ser resumido, em poucas linhas, como um método de pesquisa de história do pensamento, que busca desvelar e descrever as formações discursivas, constitutivas de discursos, grupos articulados de enunciados, que são, por sua vez, acontecimentos, ou seja, são singulares — tem seu tempo e seu espaço.

               A genealogia acrescenta elementos às análises arqueológicas, em articulando saber (discursivo) com o político, tornando o saber resultado-objeto das guerras sociais, que envolvem a tudo e a todos. Assim, ainda que se trate de um mesmo projeto, de análise histórico-epistêmica do saber, a genealogia inova ao mostrar como o saber responde à urgências históricas, à interesses determinados; a genealogia mostra como as relações de poder engendram saber, discurso, massa documental, seja em decorrência de seu próprio exercício, seja como condição de sua existência.

               Em suma, a genealogia é um método de análise histórica de um conceito, de um corpo ou de um caráter, que busca mostrar a proveniência e a emergência destes no âmbito da luta entre dominadores e dominados, articulando a constituição de formas de saber com o exercício do poder. Vigiar e Punir, por exemplo, é a análise da proveniência da disciplina e da emergência de suas formas contemporâneas em escolas, prisões, asilos, exército, etc., que levou a constituição de uma série de ciências conhecidas como Humanidades. Como a genealogia sempre supõe a luta entre dominadores e dominados, cumpre dissolver as unidades (esculpidas pacientemente pelos dominadores) para mostrar a baixeza (“o que há de humano”) da proveniência e da emergência – aquilo que foi intencionalmente apagado seja do campo do poder seja do saber.


















3. A situação desta pesquisa: Observações metodológicas e analíticas Observações metodológicas e analíticas
           
            Nosso objetivo inicial com este projeto era cobrir o período que iria desde o principio da modernidade — quando seus principais elementos são dados — até quando os primeiros discípulos de Freud começam a traçar seus próprios caminhos, um tanto quanto distintos de seu mestre vienense. Pretendíamos aplicar a mesma genealogia, utilizando a obra de Foucault como linha mestre e fonte última, mas, ao mesmo tempo, incluir novos elementos, articulando, pois, uma genealogia plena das ciências da vida e da saúde.

            Teríamos, pois, quatro períodos a cobrir, quer dizer, quadro séries distintas no quadro estes estudos. A primeira cobriria um período pré-psiquiátrico da loucura, desde o fim da Idade Média até o gesto fantasioso onde Pinel teria rompido as cadeias dos loucos de Bicêtre. A segunda série deveria cobrir o período francês deste novo sentido aplicado a loucura, desde o tratamento moral até, aproximadamente, os dois trabalhos que apontam para o fim desta era: Charcot e Morel. O terceiro deveria cobrir a saída de cena da médécin mentale, com sua metodologia confusa, para a aparição das duas grandes figuras da psichiatrie alemã, a primeira maior que a segunda: E. Kraepelin e R. Krafft-Ebing. Por fim, deveríamos englobar esta psicopatologia nova, surgida da intersecção dos trabalhos de Charcot, e seu sussurro sexual da origem das afecções ,e com a preocupação de origem de Kraepelin: Sigmund Freud. Fechando nossa pesquisa, acompanharíamos seu trajeto até algumas escolas dissidentes, como Reich, Jung e Fromm. Com isto, teríamos empreendido uma série dentro de um quadro geral, mais amplo, da biopolítica.

            Contudo, o caráter de nossa metodologia tornava impossível esta pesquisa. Em fato, uma pesquisa genealógica implica uma dupla analítica que, na caneta do pesquisador, reencontram-se: uma de caráter epistemológico, no campo do sentido; outra de caráter político-histórico-social, pesquisa de procedimento. Portanto, tivemos de reorientar nossos estudos, e isto, pois, por motivos:

            1. metodológico; pois a genealogia nos requereria uma bibliografia consideravelmente mais ampla e que desse conta de um amplo espectro;
            2. epistemológico; já que, para empreender uma epistemologia política faz-se necessário um amplo conhecimento do campo que ora queda como objeto da série;
            3. sociológico; que envolveria o rigoroso conhecimento das sociedades francesa e alemã do período, dificultado pelo fato das agitações, revoluções e dos fervilhamentos pelos quais passavam estas sociedades no período. Em suma, uma sincronia diacrônica poderosa.
            4. histórico: teríamos de colocar estas distintas perspectivas dentro de um rigoroso marco histórico, que, apesar das distintas músicas pelas quais bailam as teorias e as práticas, conseguisse lhes achar o compositor comum. Quer dizer, uma diacronia precisa que fizesse vir a tona o dispositivo ou, antes, a série de dispositivos envolvidos.

            Estes pontos implicariam uma análise bibliográfica de muito vulto afim de empreender uma pesquisa plena. Assim, tivemos de cortar partes, realocar documentos, abrir a gaveta para que outros esperassem o momento certo de adentrar esta marcha teórica. Nosso período diminuiu em dois, deixando Freud e os seus para uma pesquisa futura, ao mesmo tempo em que muitos textos, fundamentais para uma analítica completa, não puderam entrar nesta genealogia. Também sentimos a mais plena necessidade de incluir um texto explicativo sobre a psiquiatria e o que os próprios psiquiatras dizem de si. Com ele, impediremos que outros passem pelas dificuldades que passamos, e, ao mesmo tempo, permitiríamos que, enquanto falamos de psiquiatria se saiba em fato o que queremos dizer.

            Assim, o que é este trabalho? Diante de nossa explicação, muitos pensarão que se trata de um monstro horrível e que, talvez, na hora da leitura encontrarão passagens e, quem sabe, até mesmo capítulos inteiros, onde a perna que se deixou de fazer fará falta, ou onde a cabeça prematura confundirá o azul com o vermelho, contrastando e fazendo vir a tona o contrário do que deveria ser.

            Não está assim. Este trabalho buscou estabelecer notas para a genealogia da psiquiatria e da psicanálise. Bem dito: elaboramos algo cujo melhor nome não pode ser outro senão notas. Notas para a genealogia de um grupo de ciências ou, antes, como preferimos, notas para a epistemologia política das ciências da vida e da saúde. São elas que seguem.





















4. Para compreender a psiquiatria

4.1. A psiquiatria (para os psiquiatras)
         Os psiquiatras consideram que a doença mental é um fato do mundo: ela não varia de acordo com as sociedades, tampouco as distintas culturas influenciam o modo como ela há de se dar. Não: lidando com o fato complexo da doença mental — substrato comum de todas as escolas psiquiátricas —, decorrem também teorias complexas e heterogêneas, fruto de tendências e autores distintos. Todas postulam, contudo, que doença mental, que ela, sob as camadas meramente lingüísticas do nome, permanece igual, indistinta desde que existe, desde que raiou sobre o mundo o animal que faz promessas.

            Pretende-se uma ciência ou um discurso cientifico (intersecção de saberes científicos de origens diversas) unificada por seu objeto, a doença mental. Assim, a psiquiatria elabora teorias a fim de organizar, com fins epistêmicos e médicos, a complexidade do real, na verdade, de uma realidade, o doente mental, que a psiquiatria instrumentaliza por meio de conceitos visando elaborar uma terapêutica — pois a psiquiatria é um ramo da medicina.

            A psiquiatria não interpreta a doença mental enquanto fato místico ou religioso. Ela é um discurso científico sobre fatos mentais patológicos. Costuma-se confundir o anormal com o patológico: o anormal refere-se ao desviante em relação a uma regra, enquanto que o patológico refere-se a uma patologia. O anormal pode ser estabelecido a partir de métodos quantitativos de ocorrência de determinados fenômenos; o patológico diz respeito a emergência de uma nova racionalidade, diz respeito a um desvio na vida do individuo — portanto, uma patologia, ou, em nosso estudo de caso, uma psicopatologia, estabelece esta divisões e delineia o que distingue o louco do são. O patológico é, enfim, qualitativo.

Leriche (1878-1955): “[a saúde é] ‘a vida no silêncio dos órgãos’ enquanto o patológico implica sentimento concreto de sofrimento e impotência” (apud  GRANDINO; NOGUEIRA, 1985, p. 11).  O sofrimento, contudo, não define a patologia, pois existem patologias assintomáticas, outras que não provocam nenhum sofrimento e algumas que o provocam. A doença é, pois, entendida de maneira geral como esta alteração de racionalidade, como um rearranjo dos elementos da psique que, dependendo de suas características, levarão ao desenvolvimento de distintas patologias.

            As doenças são idéias desenvolvidas pelos médicos para compreender e tratar processos patológicos; ou seja, trata-se de conceitos operacionais. A causa, a etiologia de uma doença, é composta de inúmeros fatores, e o que determina algo como um nome é a repetição das formas de seu aparecimento, portanto, uma constância. Nas doenças mentais, ao contrário das orgânicas, as formas de aparecimento não são tão claras; as doenças mentais são produzidas por condições de vida particulares, embora sua sintomatologia seja estereotipada. Diagnóstico é o nome de um agrupamento de sintomas; um conjunto de diagnósticos tem por nome nosografia, e seu estudo de modo, digamos epistêmico, tem como epíteto a alcunha de nosologia. A busca pela cura da doença, com todos os processos que implica, é chamada de terapêutica.

A terapêutica

Inúmeros recursos terapêuticos foram desenvolvidos na história da psiquiatria. Por exemplo, os hospitais psiquiátricos. Atualmente, eles não são como os asilos dos séculos precedentes, mas clínicas comuns. Indica-se a hospitalização somente em casos agudos; a internação deve ser breve, pois o hospital não é, atualmente, depósito de gente. Hoje em dia a internação deixou de ser compulsória tornando-se, pois, voluntária — esta era uma das reivindicações daquele movimento que se convencionou chamar de antipsiquiatria. Com o tempo, entre o não internamento e o internamento desenvolveu-se uma série de recursos intermediários que o hospital pode oferecer: pensão protegida, quando os pacientes residem próximos ao hospital; hospital-dia, o paciente passa o dia em tratamento e retorna à noite para casa; hospital-noite¸ o próprio hospital é o dormitório; e ambulatório psiquiátrico, consultas periódicas de reavaliação.

            Na atualidade, os principais ramos da terapêutica são: a psicofarmacologia, os tratamentos de choque e as psicoterapias.

Psicofarmacologia
Por volta da década de 50 desenvolve-se a psicofarmacologia, nome do ramo da farmacologia que estuda as drogas que atuam no sistema nervoso central, modificando as funções mentais por meio de substâncias nomeadas de psicotrópicos: os barbitúricos foram sintetizados em 1913 e ametilanfetamina em 1938; contudo, embora seu uso terapêutico, somente com a clopromazina, na segunda metade do século XX, as substâncias psicotrópicas ganharam importância psiquiátrica.

Dentre inúmeras classificações, a de J. C. Madalena (apud GRANDINO; NOGUEIRA, 1985), para o qual existem seis grupos de psicotrópicos:

 1. Ataráxicos, que atuam sobre manifestações psicóticas em geral; seu principal grupo é o dos neurolépticos (efeitos: indiferença, controle das agitações e excitações, ação subcortical, influência nos delírios e alucinações), recomendados em casos de agitação motora, delírios, alucinações, manias, manutenção de períodos assintomáticos e contra a insociabilidade.

2. Tranquilizantes: atuam sobre a ansiedade,comum em estados neuróticos; a principal família é dos benzodiapezínicos (efeitos: queda da tensão e da ansiedade; sonolência; ação depressora sobre o sistema límbico; ausência de ação nos fenômenos psicóticos).

3. Antidepressivos: para a psiquiatria depressão “é um estado patológico caracterizado por inibição das funções psíquicas e restrição do campo existencial” (GRANDINO, NOGUEIRA, 1985, p. 43); os antidepressivos combatem este estado; dividem-se em dois tipos: timerépticos (ação antidepressiva unida a ação desinibidora) e os timolépticos (regulam o humor); são estimulantes, anti-hipnóticos e invertem o humor depressivo; sua atuação é eficaz somente em casos de depressão endógena,i.é,sem fatores externos com doenças.

4. Hipnossedativos: induzem ao sono; podem ser hipnóticos ou euípnicos; dentre os primeiros, os barbitúricos, que inibem o sistema nervoso central; dentre os últimos, derivados de benzodiazepnícos, miorrelaxantes; atualmente prefere-se os euípnicos, pelo número menor de efeitos colaterais, menor ação sobre sistemas vitais, e menor índice de dependência.

 5. Anticonvulsivos: muito heteróclitos quimicamente para serem descritos, sua ação fundamental é controlar as manifestações paroxísticas da epilepsia, sendo a mais notável a convulsão tônico-clônica.

6. Psicodislépticos: alteram a percepção em favor de um estado de “estar acordado”; seus efeitos são múltiplos e, devido a isto, seu uso terapêutico é escasso, restrito, sobretudo, à diminuição de algumas aminas biogênicas (como serotonina e dopamina).
           
Os psiquiatras avaliam, ao menos nas fontes que nos consultamos, que os psicotrópicos melhoraram a ação psiquiátrica, possibilitando o atendimento ambulatorial e o controle de inúmeros sintomas. Eles permitiram, também, uma melhor compreensão dos fundamentos biológicos das doenças, e a emergência de novas preocupações como a relação corpo-mente.

A psicofarmacologia marca a abertura de um novo período da história da psiquiatria, onde aquela de cunho anglo-saxã desbancará a psiquiatria alemã, dominante desde os trabalhos de Kraepelin e Krafft-Ebing. A partir da utilização da clorprocacina no tratamento da esquizofrenia (1952), dos derivados iminodibencilo como arma contra os sintomas depressivos (1950), os barbitúricos — até então vivamente recomendados — caem por terra e abre-se a porteira: toda uma nova série de substâncias são ministradas aos loucos, como a reserpina e as butirofenonas (neurolépticas) e os tioxantenos. Em breve inúmeros antipsicóticos terão sido desenvolvidos e hoje muitos psiquiatras questionam os efeitos da farmacologia na psiquiatria, especialmente o aumento do leque de comportamentos patologizáveis e patogênicos; questiona-se mesmo se, com isto, o sonho moreliano de algo como uma sociatria, medicina do corpo social (cf. CAPONI, 2009, p. 425-6, e também, CAMPAILLA, G., 1982, p. 343-368), não estaria se tornando mais e mais realidade.

A utilização dos fármacos está ligada não somente a uma nova sociedade na qual uma vida acelerada requer tratamentos acelerados, e onde mecanismos brutais de normalização, postos em jogo por inúmeras instituições, discursos e práticas, pressionam o individuo a um controle interno rigoroso — Foucault nos descreve este mecanismo muito bem em Vigiar e Punir e em O poder psiquiátrico. Os psicofármacos são recomendados porque, do ponto de vista psiquiátrico, funcionam. Os fármacos fazem cessar o sintoma. Tarda, um (ou uma?) psiquiatra, cita algumas vantagens: não sedam necessariamente o paciente para serem efetivos, acabam ou atenuam os sintomas, alguns (como os antipsicóticos) não levam a dependência e a tolerância desenvolve-se somente com efeitos secundários, além de haver baixa letalidade em sua utilização (ENGUIX, s/d, pp. 1320-1353).

Para uma compreensão epistemológico-politica da psicofarmacologia, contudo, não devem nos enganar: o fim da sociedade de massas fordistas tem, como uma de suas marcas, a emergência de mecanismos de controle muito mais sutis. Contra aquela psiquiatria dos asilos enormes, contra a polícia psiquiátrica, e todas as conseqüências — e resistências — políticas que dele advinham, os novos métodos sutis de psiquiatrização da conduta e, mais importante, a auto-psiquiatrização do próprio comportamento. Assim, esvazia-se a crítica antimanicomial, ao menos se tomada nos termos de luta contra a instituição, o que não parece ser o caso do movimento antimanicomial contemporâneo[1]. Mas, se o manicômio diluiu-se em mecanismos de subjetivação — muito distinto do cinza dos manicômios, com seus pisos de um verde que enlouquecem qualquer um e tetos altos que isolam no isolamento—, bem, esta luta torná-se um tanto mais difícil.

Os tratamentos de choque

            É muito difundida a imagem segundo a qual teria sido o regime de Mussolini que inventou o tratamento de choque, o que é somente meia-verdade. O tratamento de choque deve ser inscrito naqueles grandes debates, muito antigos na psiquiatria (desde as teses de Bayle, ao menos[2]), acerca da etiologia da patologia — se biológica ou psicológica, de onde decorreria, por uma lógica frouxa, que a terapêutica deve ser ora biológica ora psicológica, respectivamente[3]

            Os tratamentos de choque contam-se dentre aqueles biológicos: assumindo uma doença sediada no cérebro, também os tratamentos devem aplicar-se aqui. Nos grandes debates localizacionistas, Bayle sem dúvida ocupa um papel fundamental. Ao descrever a aracnoidite crônica[4] como vetor para a paralisia geral, ele iniciaria toda uma série de pesquisas que iriam se interrelacionando até que Noguchi e Moore descrevessem, em 1913, a origem sifilítica da paralisia geral, agora denominada demência sifilítica — e cuja história passa pela descoberta do Treponema pallidum como vetor da sífilis, em 1905, por Schaudinn; pela prescrição de métodos piréticos contra a sífilis, por K. Landsteiner; e pela invenção do método do soro fisiológico como instrumento de diagnóstico da doença, elaborado por Wasserman em 1908.
           
            Desde há muito, desde Hipócrates, os tratamentos piréticos eram indicados, juntamente com outros procedimentos de choque — como convulsões e traumatismos cranianos — para tratar a loucura: não nos esqueçamos dos banhos alternados, das duchas circulares, das cestas de vime, das camisas-de-força, da estrapada, etc. Ao mesmo tempo, muitos psiquiatras defendiam, com base em estatísticas clínicas, que havia uma incompatibilidade entre muitas doenças mentais e as convulsões, conforme veremos.

            A partir deste solo epistemológico fecundo, J. Wagner Jauregg iniciará a moderna malarioterapia[5], contaminação intencional dos doidos com malária a fim de provocar-lhes febres, que tinham um valor terapêutico positivo. Se há muito já eram prescritos os tratamentos piréticos, a diferença consiste em que, durante o ano de 1917, este jovem médico vienense inoculou malária extraída de soldados da Grande Guerra no corpo de alguns loucos, diagnosticados como dementes sifilíticos, doença bastante comum naquele período.

Jaregg abria, pois uma série histórica que desembocará diretamente no eletrochoque. Sua malarioterapia, amplamente difundida no mundo (utilizada no Brasil, inclusive[6]), com seus resultados terapêuticos tidos como positivos, malgrado fossem apenas de caráter sintomatológico (como se postulará mais tarde), colocam a psiquiatria biológica na vanguarda dos tratamentos, em detrimento, pois, da psicoterapêutica, freudiana ou não.

Deste modo é que Sakel encontrará terreno livre para tratar uma mulher viciada em morfina com insulina, em 1927, obtendo resultados animadores. A técnica de Sakel utilizava as recentes descobertas (1921) acerca da insulina (seu isolamento; a descoberta de suas funções no organismo) com o objetivo de provocar hipoglicemia em seus pacientes, levando-os, pois, ao coma, a febre e as convulsões, estas últimas descritas como recursos terapêuticos, tal qual vimos. Aplicando seu método na esquizofrenia, Sakel o descobriu brutalmente eficaz no controle dos doidos, o que popularizou sua técnica quase que imediatamente, no mundo todo. Não se pode perder de vista que a esquizofrenia era, então, um dos carros-chefe da problemática psiquiátrica, tendo assumido este papel desde os trabalhos de Kraepelin[7].

            Na direção rumo ao eletrochoque, outro psiquiatra contribuiu bastante; trata-se de L. von Meduna, húngaro — curiosamente, a Hungria vivia uma forte ditadura protofascista no período — que, por meio de estudos estatísticos postulou que a ocorrência de epilepsia impossibilitava a ocorrência de esquizofrenia. Assim, Meduna passa a elaborar testes clínicos visando encontrar uma substância que levasse a convulsões, concebidas em um sentido, dizia, terapêutico. Neste caminho, Meduna testou inúmeras substâncias, como a cânfora (1934), estricnina, tebaína, pilocarpina e pentilenotetrazol (metrazol ou cardiazol), por meio de injeções intramusculares, por vezes associadas ao uso de insulina.

            Meduna conseguiu o que queria quando procedeu por meio de injeções intravenosas de metrazol, que levavam a convulsões rápidas e violentas. Comunicando seus achados em 1937, a comunidade psiquiátrica se dividiu entre o choque insulínico e o choque por metrasol: o primeiro mais caro, trabalhoso (9h de internação!!!) e com poucos efeitos colaterais, era, contudo, mais controlável que o choque por metrasol (47% de casos de fraturas espinhais! Tamanha a violência das contrações)[8]. E. Bennet, 1940, buscou contornar este problema combinando metrazol com curare (paralisante que bloqueia a ação da acetilcolina) e, depois, com escopolamina e curare, visando sedar os pacientes.

O metrazol acabou se mostrando mais eficiente que a insulina somente em casos de psicoses afetivas — o eletrochoque mostrou-se o mais adequado para os casos de esquizofrenia. Seu desenvolvimento está ligado ao trabalho de Cerletti, que havia se convencido que, malgrado sua utilidade terapêutica, o metrazol tinha muitos inconvenientes, como a incapacidade de controlar as convulsões e o medo que os pacientes tinham dele. Sendo especialista em epilepsia, já havia utilizado eletrochoques em animais para provocar crises epilépticas. Ajudado por L. Bini e L. B. Kalinowski terminou por desenvolver um novo invento para utilizar o eletrochoque em humanos — havia nascido esta técnica que tanto sucesso fez nos asilos.

            O método de Cerletti-Bini, como ficou conhecido, produzia amnésia retrógrada (o que levava os pacientes a não temerem a terapia) e permita um controle e segurança maior, apresentando baixas taxas de mortalidade. Aos poucos se passou a utilizar, conjuntamente com ele, o curare e a escopolamina, substituindo, assim, as terapêuticas pautadas na insulina ou no metrazol. O método Celetti-Bini também se mostrou eficaz, especialmente no tratamento de distúrbios afetivos, o que o levou a hegemonia dos tratamentos de choque, mesmo diante de outros novos, como indução pirética por microondas, anóxia[9] cerebral induzida pela inalação de oxigênio-hidrogênio e crioterapia[10].

Progressivamente vozes se insurgem contra o eletrochoque. Seu uso era compulsório, independentemente da vontade dos loucos, além do que, se a própria criação do método sob um regime fascista já levaria os mais desconfiados a criticas, a prática psiquiátrica e os relatos dos pacientes davam conta de sua utilização estritamente disciplinar, ao contrário do que afirmava publicamente nossos dottores[11]. Afinal, quantas enfermarias não foram tomadas pelos boçais[12]?

Se é verdade que as criticas, sobretudo dos movimentos por direitos humanos e antimanicomiais[13], fizeram recuar a utilização do eletrochoque, ainda há quem a recomende. Rebatizada de eletroconvulsoterapia (ECT), diz-se dela como uma terapêutica efetiva para algumas afecções graves, como: depressão, catatonia, mania, esquizofrenia. A própria associação mundial de psiquiatria faz jus a sua história e a faz vivas loas ao método[14], descrito como eficaz e, mesmo como mais eficiente em alguns casos!

            Para concluir esta breve exposição sobre a terapêutica de choque, devemos ser justos com o produto nacional, com a mais pura flor tupiniquim da medicina psiquiátrica:

“Pacheco e Silva [sucessor de Francisco Franco da Rocha como diretor do Juquery], por exemplo, refere-se orgulhosamente a uma descoberta cientifica de Franco da Rocha, quando uma paciente ‘melancólica ansiosa’, ao irritar suas companheiras de pavilhão, sofreu uma violenta paulada na boca do estômago, acordando ‘curada’ do coma decorrente da pancada: estavam lançadas as bases da futura traumaterapia, tornando Franco da Rocha — segundo as palavras de seu sucessor— um ‘precursor das modernas terapias de choque’” (CUNHA, 1988, p. 98)

As psicoterapias
            Por fim, devido aos trabalhos ligados ao mesmerismo, ao bradismo, à hipnose[15], ao método catártico — sintetizados por Freud na talking cure[16] — veio ao mundo a psicoterapia. Esta consiste em terapêuticas que se desenrolam somente por meios psíquicos; ela distingue-se dos métodos farmacopsicológicos, pois o efeito destes é fundamentalmente oriundo de ação metabólica de seus componentes químicos. A psicoterapia é um conjunto de métodos de saber acessíveis por diversos meios; dentre elas conta-se a terapia comportamental de B. F. Skinner, o psicodrama,de J. L. Moreno; as terapias bioenergéticas, inspiradas em Reich, dentre outras.

            Dentre todas as psicoterapias, a psicanálise é a mais difundida e estudada. Após superar a utilização da hipnose como método — desenvolvida por J. Breuer sob o nome de método catártico —, a psicanálise teve um desenvolvimento teórico-metodológico que permitiu sua autonomia frente à psiquiatria. O analista não descreve remédios: ele somente propõe-se a ouvir e intervir ocasionalmente. Este método simples faz vir à tona conteúdos inconscientes, primeiramente disfarçados, esperando para serem decifrados. Aos poucos, conforme o paciente faz emergir o censurado, a verdade tende a se sobrepor sobre os elementos de repressão.
*
Vejamos como se dá a prática psiquiátrica. O estudo de um conjunto de sintomas determinado serve de guia para a elaboração do diagnóstico, variável conforme o estágio de conhecimento em que se encontra o médico. Médicos diferentes podem fazer análises distintas dos sintomas, elaborando diagnósticos distintos, embora ambos visem à objetividade. É o diagnóstico que permite se descubra a natureza da doença e os meios mais eficientes de tratá-la.

            Em relação à cronificação da doença, hoje a psiquiatria postula que a internação prolongada somente contribui para este fato. Por isso, ao contrário do que ocorria á cinqüenta anos, mudou-se o caráter da intervenção: desapareceu o antigo asilo, “depósito de gente”, em benefício do hospital psiquiátrico. Hoje a internação persiste somente para casos graves de crise, agitação ou depressão com risco de suicídio; quer dizer, o papel fundamental do hospital reside nas situações de emergência psiquiátrica, tornando a internação e o hospital como estratégias possíveis dentre outras, como aquelas ambulatoriais.

            Vários elementos contribuem para as limitações práticas da psiquiatria, sendo o mais óbvio aqueles econômicos, que restringem a atuação hospitalar (mais cara) em beneficio da ambulatorial, bem como o acesso a remédios e outros bens. Outro elemento é quando a psiquiatria é chamada para resolver casos que não são de sua alçada (médica), especialmente aqueles sócio-econômicos, como internações famélicas. Não se descarte também, a utilização política da psiquiatria, da qual o estalinismo e o fascismo, mas também o capitalismo liberal ou não, mostraram tão bem; e, ainda, os interesses econômicos envolvidos na indústria da loucura, que terminam por levar a prescrição de estes ou aqueles tratamentos em detrimento, sempre, do louco.

4.2. O papel da Psicopatologia
Sem dúvida, nesta analítica que fazemos dos fundamentos da psiquiatria, seria uma traição não nos determos naquilo que lhe serve de fundamento: a psicopatologia. Assim como todo discurso que busca tornar-se ciência também a psiquiatria buscou mimetizar outras ciências na busca do estabelecimento de seus princípios positivos, que fundamentassem suas operações, na qual a medicina aparecia como alvo predileto.

            Por volta do fim do século XVIII, com a Inquisição arrefecida em mundo em entrando no turbilhão industrial, desenvolve-se na França uma nova medicina, pautada em outra racionalidade médica.  “Muito cedo os historiadores vincularam o novo espírito médico à descoberta da anatomia patológica” (FOUCAULT, 2008, p. 136). Sob o impulso de X. Bichat um campo analítico novo se dava a conhecer e isto se refletia nas formas como se praticava a medicina e no seu entendimento no conjunto da sociedade.

            A psiquiatra, como se sabe, surge na mesma época e rapidamente uma inquietação epistêmica passa a preocupar seus aderentes. Conforme a psiquiatria buscava se tornar ciência, seguia o caminho rumo a algo como física médica da alma, e, assim, pareceu aos dottores que, se a fisiologia estava para a medicina como a psicologia deveria estar para a psiquiatria[17], do mesmo modo, haveria de existir a contraparte espiritual da anatomopatologia. Somente com Jaspers, na sua monumental Allgemeine Psychopatologie, esta ciência almejada se tornará independente, pautada na fenomenologia germânica de então, o que não significa que ela não estivesse presente na derrière dos alienistas. Certamente, tratava-se de outra coisa, e somente a fenomenologia poderia dar a ela o caráter contemporâneo — pois a psicopatologia é, antes de tudo, uma grafia semiológica do fato mórbido-mental, com uma casuística, que devem pautar a prática terapêutica psiquiátrica.
           
Esta disciplina, ao menos nas fontes por nós consultadas[18], é extremamente dispare, como todo o restante da psiquiatria, com autores distintos defendendo posições, por vezes, irreconciliáveis. Neste ponto, há de se notar que um dos manuais que consultamos K. Jaspers, considerado por alguns como aquele que colocou a questão da psicopatologia[19], é citado como tendo apenas propugnador de uma metodologia antropológico-analítica e a psicopatologia como desvalorizadora da experiência do Outro-paciente em benefício do Eu-médico[20].

            Se para uns é assim, para outros, não. “Existiria uma abordagem especializada do humano que, sem ser nem uma psicologia nem psiquiatria, tenha os meios metodológicos de observar e descrever os distúrbios psíquicos e compreender seu acontecimento fenomenal singular no cerne da generalidade das experiências?” (FÉDIDA, 1998, p. 108). Esta questão, posta por Jaspers, seria para Pierre Fédida o ato de fundação de psicopatologia geral.  Senão isto, no mínimo Jaspers merece um papel destacado na história da disciplina, pelo momento em que escrever sua obra e pelo caráter que ele teve[21].

            É fato que reinava, então, no campo da psiquiatria e também no da psicopatologia uma confusão generalizada. A psicanálise estava se tornando conhecida e os debates entre organicistas e psicologistas se acentuavam. Além disso, as próprias ciências humanas debatiam vivamente qual método tomar, qual caminho seguir. A obra de Jaspers não poderia, pois, passar despercebida. Fruto de grandiosa observação empírica proporcionada pela clínica em Heildelberg, Jaspers sistematiza estes conhecimentos ao mesmo tem em que elabora furiosa critica metodológica. No curso de dois anos, publicará duas obras que darão uma reviravolta nesta área.

            A psicopatologia já não podia mais ser nem uma psicologia do patológico nem uma psicologia patológica. Quer dizer, nem, de um lado, se ater a uma psicologia objetiva — de cunho naturalista — que desprezaria seu objeto próprio, a psique; e, de outro, não tinha como se manter uma psicologia meramente subjetiva se quisesse manter pretensões cientificas — como criticar os dados psicológicos alheios pautados somente na empatia (por ele compreendida como a representação para si da experiência alheia)? 

Assim, a solução de Jaspers passava por uma critica metodológica. A tarefa da psicologia subjetiva seria, justamente, distinguir, descrever e nomear os fenômenos subjetivos a fim de que pudessem ser criticáveis: esta é a própria fenomenologia para Jaspers, ou psicopatologia descritiva. Nesta tarefa descritiva, Jaspers definia alguns parâmetros objetivos, visando diminuir as limitações do método, embora os limites continuassem a existir — justamente por isto, não negava outras formas de abordagem do afigurado, dos fenômenos psíquicos do paciente. Jaspers dava assim uma ancoragem empírica e criticável à psicopatologia, pois as descrições deveriam ser feitas em uma linguagem comum, em um referencial simbólico único, ou seja, intersubjetivo.

            Esta é a primeira parte da proposta jasperiana: a compreensão empática. O método de Jaspers pode parecer reducionista, isto é, tomar o subjetivo somente por suas manifestações internas; em fato, para Jaspers, este método deve ser como que o anteparo que permitirá uma psicopatologia, ao apontar os fenômenos de seu campo claramente. Tratava-se de apreendê-los por meio de uma compreensibilidade estática — para Jaspers, sinônimo de fenomenologia. Após este seria possível uma psicopatologia propriamente falando, que estabelecesse uma compreensibilidade genética dos fenômenos ao estabelecer conexões compreensíveis entre eles.

            A fenomenologia de Jaspers parte de uma psicologia descritiva que deve fundamentar o acesso do subjetivo, de modo, pois, a conciliar uma psicologia objetiva com outra descritiva — assim, garante-se a cientificidade da disciplina, ao mesmo tempo em que não se dissolve o objeto que lhe é próprio, o campo subjetivo de experiências.

Desse modo, o objeto da psicopatologia é o estudo descritivo dos fenômenos mentais tomados como anormais a partir da experiência dos doentes. Embora etimologicamente o termo signifique “doença do espírito”, não existem, a rigor, doenças psíquicas, pois toda doença é do corpo; aquelas psíquicas serão doenças se e somente se estiverem condicionadas a alterações patológicas do corpo.

            Para Jaspers, o objetivo da psicopatologia é estudar a vida psíquica anormal independentemente da clínica, ou seja, ser uma descrição da experiência do enfermo, tomada como adaptação á enfermidade. A psicopatologia deve fornecer as bases para a atuação dos psiquiatras, dando-lhes o instrumento para que a psiquiatria elabore o “diagnóstico, o tratamento e a profilaxia das doenças mentais” (PAIM, 1977, p. 12).

            O fato dos psiquiatras buscarem a fenomenologia como método proveio das dificuldades causadas pela interpretação então majoritária do delírio e da alucinação como erros. Somente a compreensão de que o enfermo vive em um mundo diferente, levada a cabo por Jaspers, sobretudo, fez com que os psicopatólogos buscassem, primeiro, compreender o fenômeno mórbido, e depois explicá-lo. Quer dizer, estudar a vivência objetiva subjetiva do enfermo para dar-lhe uma explicação objetiva pautada nas descrições observadas da vivência.

            Assim, a metodologia fenomenológica — malgrado parta de um arremedo da noção de solidariedade orgânica, algo como uma unidade dinâmica do psiquismo, donde uma indissolubilidade do fenômeno da consciência — divide o aparelho psíquico em inúmeras funções, mais ou menos arbitrárias, e, após, procede pela descrição dos fenômenos mais básicos, de suas características psicopatológicas determinadas em função da alteração das funções psíquicas elementares; disto decorre uma analítica do valor semiológico dos fenômenos, com uma fisiopatologia quando possível. A doença queda definida, mesmo que de maneira tácita, como uma alteração funcional.

            Em português claro: trata-se de uma análise psicológica das funções, das quais se determina uma operacionalidade psíquica normal ou saudável. A partir deste, descrevem-se as alterações na racionalidade deste funcionamento, fenômenos que somente podem ter, assim, um caráter patológico. Quando estes fenômenos determinam alterações de cunho bio-quimíco, descreve-se sua fisio-patologia. E, após, arrola-se a ligação destes fenômenos com as distintas afecções, tomadas como espécies, em uma casuística da morbidez: como se, à visão de listras, concluíssemos que somente pode se tratar ou de um tigre ou de uma zebra.

Estudo de caso: a psicopatologia do juízo
            Em seu Curso de psicopatologia, I. Paim divide o conjunto do psiquismo humano em algumas funções: percepção, representação, conceitos, juízos, raciocínio, memória, atenção, orientação, afetividade, atividade voluntária, linguagem e consciência. Esta última é como que o fio condutor de todas as demais ciências, unificando-lhes. Diante de cada uma das funções, faz as determinações necessárias e procede como descrevemos.  

Vejamos um exemplo:

AS ALTERAÇÕES NOS JUÍZOS:
Para elaborar a psicopatologia dos juízos, Paim parte da abordagem lógica — aristotélica, devemos dizer — do juízo, entendido em seu aspecto formal enquanto afirmação ou negação de uma relação entre dois conceitos, sendo sua peculiaridade o fato de asseverar, de enunciar. Sujeito: de quem se afirma. Predicado: aquilo que se afirma do sujeito. Os termos, expressão lógica de conceitos, são ligados por meio de um termo cópula que estabelece, pois, a relação entre sujeito e predicado.  A forma do juízo na linguagem é a proposição, enquanto que a palavra é a expressão dos conceitos. Hegel, segundo Paim, apontaria que a principal contradição do juízo é fato de nele o singular ter de ser geral ou reduzível à generalidade; esta contradição mostra o caráter dialético do juízo, nele unidos o contraditório e o diferente por meio de um ato noético vinculador. Um juízo expressa a verdade ou o erro conforme sua correspondência na prática, sendo este seu único critério de verdade: consonância com a realidade.

            Na psicopatologia dos juízos, Paim inclui os delírios, tratado de praxe como formas de alteração do conteúdo do pensamento. Para ele, nos casos de delírios esquizofrênicos os juízos se formam sem ter uma pedra de toque empírica, isto é, sem balizamento na realidade referindo-se a sujeitos ou predicados inexistentes; contudo, afora isto, o pensamento funciona de maneira normal. Por isso ele considera delírio como integrante da patologia dos juízos.

            Além disso, por muito tempo os delírios eram nomeados, de forma equivocada, sempre segundo Paim, de idéias delirantes e, deste modo concebido pelos clássicos, eram definidos como um erro incapaz de ser corrigido — concepção impossível de ser sustentada hoje em dia. Salientamos que para nós o delírio é uma alteração na formação dos juízos, não das idéias, dos conceitos ou das representações, que Paim considera como funções de outra ordem. Um delírio é uma alteração profunda da consciência, que leva ao proferimento de juízos falsos; se desenvolve em condições patológicas pré-existentes.

CLASSIFICAÇÃO DOS DELÍRIOS
            De acordo com Paim, Jaspers considerava o delírio como um estado no qual os juízos são enunciados com certeza inabalável, mesmo pela experiência ou pela lógica muito embora seu conteúdo e modo de formação sejam falsos. Quando sua causa é compreensível, chamam-se idéias deliróides; quando as causas são primárias, incompreensíveis, chamamos idéias delirantes verdadeiras. K. Schneider conta três modalidades de delírio:

1. Percepção delirante: atribuição aleatória e arbitrária de uma significação anormal a uma percepção normal; a significação exótica é experimentada como imposição exterior, mas que permite acesso a uma realidade superior incompreensível para outrem. A percepção é alterada dada a vivência delirante, que resulta em perturbação do pensamento, de modo que o objeto percebido adquire significações inusitadas e insólitas, em geral autorreferentes. Trata-se, pois, de transtorno no ato de integração significativa, deformação que ao invés das intenções estarem nos sujeitos, elas tornam-se parte dos próprios objetos: as significações dadas por estes passam a subjugar toda a existência da pessoa.

As percepções delirantes geralmente indicam psicose esquizofrênica. Há três posições: para alguns, elas instauram uma nova vivência; para outros são alterações do juízo (Jaspers) e para outros ainda são alterações do pensamento (K. Scheneider). Há ainda outras concepções: para C. Del Pino, sendo  a percepção delirante a atribuição de significações caprichosas a fenômenos, ela é, então, patologia da significação; na pegada da analítica existencial, Kunz defende que a chave primária da percepção delirante é a completa transformação do ser-no-mundo[22].

2. Ocorrência delirante: trata-se de um fenômeno onde a crença delirante é puramente subjetiva e a significação anormal é indistinguível do enfermo. De difícil diagnóstico, tem pouca importância nestes termos embora revele a natureza da psicose do enfermo. Seu conteúdo em geral refere-se à política, religião ou qualidade especial, colocando o paciente em uma posição distinta das demais, como rei ou imperador. Weitbrecht[23] alerta que a ocorrência delirante nunca tem lugar isoladamente,o que marca-lhe posição no diagnóstico; além disso, sempre acompanham psicoses endógenas e somáticas.

3. Reação deliróide: O estado de ânimo do enfermo é a raiz que dá sentido às alterações de significação e de referência. A partir de sentimentos de angústia e desconfiança, bem como de distimia, desenvolvem-se reações deliróides, cujo tema geralmente é secundário, embora valiosos para a Psicopatologia Forense.

TIPOS DE DELÍRIO GENUÍNO
            Delírio de perseguição: Seu início é bastante variável conforme a casuística, embora sempre marcado pelo sentimento de certeza absoluta. Seu início pode ser súbito, originado em um ato considerado singular, ou, quando não, desenvolve-se a partir de um estado de inquietação interna; nomeado humor delirante, ele é marcado por desconfiança excessiva de todos e um comportamento demasiadamente crítico e áspero, donde brotarão os delírios como certezas irremovíveis. Quando completamente maturado, todos poderão fazer parte da conspiração, inclusive o médico.

Delírio de revelação: todos os fatos externos, inclusive os menores, passam a ter relação com a pessoa do doente. O conteúdo do delírio geralmente negativo e tem relação com a vivência psíquica do enfermo antes da emergência da afecção.

Delírio de influência: o paciente sente influenciado por ondas, telepatia, radiações, choques, etc., que advêm de máquinas ou aparatos inventados por seus inimigos para controlá-lo ou machucá-lo. Em alguns casos, assume a forma do envenenamento, percebido nos alimentos, o que pode levar a sua recusa. Geralmente este delírio é prodrômico[24] de alteração grave da personalidade.

Delírio de ciúme: Manifesta-se em esquizofrênicos paranóides geralmente com grande valor do ponto de vista médico. Se manifesta-se sob a forma conjugal, todos passam a fazer parte de uma conspiração onde o cônjuge o trai com diversas pessoas;e m casos extremos pode-se desenvolver rumo a um delírio de envenenamento; em outros, termina em homicídio ou uxoricídio (assassinato da mulher pelo marido).

Delírio de grandeza: Pode assumir várias formas de acordo com o contexto sócio-histórico do paciente, como riqueza, poder, eróticos, fisiológicos, etc. Quando ambicioso, o delírio assume a forma de exagero da própria personalidade com respectivos exageros comportamentais. Quando de invenção, o delírio faz o doente crer que descobriu maravilhas científicas de ordens distintas — é forma rara de delírio. Se de reforma, o delírio constitui variação daquele de grande, tomando conotações sócio-políticas; distingue-se militantes normais daqueles delirantes por três características, quais sejam: crença na originalidade, ilogismo, ausência de senso para propagá-las. A forma erótica manifesta-se sob forma de paixão — sexual ou platônica — normalmente por celebridades.

FISIOPATOLOGIA DOS DELÍRIOS
             Paim refere-se à Pavlov para considerar que a retenção dos processos excitatórios no córtex cerebral[25] desencadeia o desenvolvimento dos delírios pela diminuição da capacidade crítica no enfermo. Essa retenção pode advir tanto do meio como de estados patológicos cenestésicos[26] 

VALOR SEMIOLÓGICO
            Em relação ao valor semiológico, Paim defende que o mais importante nos fenômenos de delírio é o fato de servirem como índice de uma agressão profunda na personalidade, geralmente processos de alterações esquizofrênicos, senis ou advindos de intoxicações. As psicoses sintomáticas, maníaco-depressivas e psicopáticas são terreno fértil exclusivo para as idéias deliróides.

            Com isto, exposta a psicologia do delírio, suas alterações patológica, sua fisiopatologia e seu valor semiológico, mostramos o proceder elementar da psicopatologia. Poderíamos mostrar de todas as funções — mas de nada nos serviriam para entender não cada menor parte, mas a racionalidade por meio da qual opera a psiquiatria.

Conclusões parciais
Esta síntese da psiquiatria e de seus métodos há de nos servir para nossa exposição histórica. A elaboramos a partir de textos médico-psiquiátricos a fim de permitir que, conforme nosso olhar deslize pelo jaleco dos dottores, tenhamos claro a história que os marca, o pensamento que o define e a prática que empreendem

A psiquiatria, em termos gerais, ciência que leva os traços marca da sociedade que a criou, não pode escapar desta. Veremos que em sua busca por se tornar ciência médica, tomou o caminho mais curto, a reta. Se reconhecia a proposição de Euclides, contudo lhe faltava as ferramentas próprias para cultivar o terreno que se propunha e, ao mesmo tempo, de acordo com as teses de Foucault, que já veremos, incorria em um erro epistêmico fundamental.

Assim, tal qual a medicina obtinha da fisiologia o substrato próprio para a ação do médico, também a psiquiatria quis que a psicologia, tornada ciência a partir dos trabalhos de Wundt — germânico, lembrem-se —, lhe proporcionasse a fisiologia da alma — com instrumentos que a psicologia nunca contou. Assim como Bichat deu as bases da anatomopatologia, também a psiquiatria quis uma psicopatologia, um manual das morbidades mentais que servissem como a bússola para a aplicação de sua terapêutica de efetividade, eficácia e procedências duvidosas.

Esta trajetória, que em nada deve à Comte, é trajetória de um corpo de discursos em busca de sua cientificidade, assim como os cristãos fundaram a teologia para refutar sua falta de fé. Ou, senão, e talvez também, de uma pseudo-ciência buscando a capa do saber cientifico para fundamentar seus próprios desígnios, justificar suas relações de poder — base de todo saber, conforme vimos. 

Sem perceber, o que lhes era impossível, sem saber sua própria história e seus próprios fundamentos; sem dar em si das relações de poder que lhes permitiam, a psiquiatria passou por todo seu período de ouro atrás de um substrato tão firme que lhes colocasse no primeiro plano da saúde pública e parte integrante da higiene pública. Se é fato que a “a psiquiatria manobrou para ser reconhecida como parte da higiene pública” (FOUCAULT, 2007c, p. 255), não é menos concreto que somente pôde ser o que pretendia quando reconheceu seus fundamentos históricos, quer dizer, sua dupla base moral e política: é Morel[27], na fronteira entre a médécin mentale francesa e a psychiatrie alemã, que permitirá isto, animando novas questões e dando o leit motif de Hoffmann e Pereira Passos.

Pretendemos, pois, a partir desta breve exposição sobre os rudimentos da psiquiatria de hoje, mostrar as condições de surgimento desta — antes da aparição da própria noção de psiquiatria e de doença mental —, seu desenvolvimento em seus maiores autores e praticadores, sobretudo até que um jovem neurologista de Viena propusesse um modo de superar as problemáticas postas rumo a uma nova ciência, uma nova psicopatologia...
















4.3. A história da psiquiatria (para os psiquiatras)


“O alienado mais violento e mais temível se tornou, por vias suaves e conciliatórias, o homem mais dócil e digno de interesse por uma sensibilidade tocante.”
Philippe Pinel
Tratado médico-filosófico sobre a alienação mental
               
Se F. Nietzsche tivesse tido a oportunidade de ler a forma como os psiquiatras fazem a história de sua própria disciplina, sem dúvida não saberia distingui-los dos ingleses, estes que gostam da suave história azul do Mesmo, da semente plantada na aurora dos dias que se desenvolveu até o estalar de nossas horas.

Para os psiquiatras (cf ALEXANDER, SELESNICK, 1966; GRANDINO, NOGUEIRA, 1985; CAMPAILLA, 1982; PAIM, 1977) sua ciência possui um objeto positivo. A loucura é um fato do mundo e acompanha o homem desde que este surgiu no planeta. A doença mental e os loucos, os enfermos, os alienados, enfim, estavam ali expostos ao nível cultural e cientifico das distintas civilizações, e, assim, tinham o tratamento adequado à evolução do saber em sua época. Dependendo dos dias de seu nascimento, o louco poderia ser desde uma divindade a objeto de profunda repulsa; podia ser tratado com as honras do Cristo redivivo que retorna ao mundo da carne ou exposto às sevícias mais horripilantes para nossa sensibilidade contemporânea.

Os doentes mentais, dizem os psiquiatras, tiveram de aguardar a psiquiatria surgir, quer dizer, a ciência avançar em seus conhecimentos objetivos sobre as coisas para, só então, serem compreendidos e poderem vislumbrar as possibilidades do cessar de seu sofrimento através de diagnósticos e terapêuticas.

Este positivismo, esta teleologia historiográfica dos psiquiatras alcança tamanha proporção que, segundo eles,

“Três tendências básicas no pensamento psiquiátrico podem ser traçadas até os tempos mais antigos: a tentativa de explicar as doenças da mente em termos físicos, isto é, o método orgânico; a tentativa de encontrar explicação psicológica para as enfermidades mentais; e a tentativa de lidar com acontecimentos inexplicáveis por meio de magia” (ALEXANDER, SELESNICK, 1966, p. 28)

            Os mais astutos facilmente poderão deduzir o restante: a abordagem mágica seria como que a pré-história da psiquiatria, ainda imberbe e insuficiente em termos de recursos descritivos, analíticos e conceituais adequados para dar conta da complexidade do fato mórbido-mental. Pautados no embotamento de pensamento que lhes é próprio, os primitivos buscariam respostas divinas ou anímicas para compreender a doença mental, e, naturalmente, também os processos de cura seriam pautadas no mesmo primitivismo de cunho tribal, com métodos de sugestão utilizados sobremaneira pelos feiticeiros, oráculos e afins.

Aos poucos, contudo, teria o homem através de uma fina observação do meio, passado a compreender a regularidade dos fenômenos naturais e, assim, descrevê-los em termos racionais, embora pré-científicos: o corpo emergia como uma realidade físico-química para os gregos, helenos e romanos. Este desenvolvimento foi atrasado pelas trevas medievais e a ressurreição das já ultrapassadas “tendências demonológicas e religioso-mágicas” (ALEXANDER, SELESNICK, 1966, p. 32), somente combatidas no Renascimento, onde se principia a última fase deste processo suave que desemboca na moderna ciência e na moderna medicina, a de X. Bichat, C. Bernard e A. Fleming. A psiquiatria, enquanto especialidade médica, obviamente fez parte desde processo de amadurecimento, desde o xamã de aldeia aos modernos dottores com todo seu aparato técnico. Quer dizer, o método racionalista-moderno, físico enfim, de descrição e compreensão do mundo seria plenamente utilizável em psiquiatria, sendo o método orgânico sua forma psiquiátrica contemporânea.

Do mesmo modo, o método psicológico de diagnóstico e terapêutica também já estava embrionário desde os despertares da civilização. Se os primeiros homens descreviam as formas de sofrimento mental em termos de espírito maus que atormentavam o pobre enfermo, teve-se de esperar até Hipócrates — do qual falaremos um tanto — para que a epilepsia perdesse seu caráter divino e se tornasse mais uma moléstia, embora de cunho orgânico. Somente Cícero, na Antiguidade, teria reconhecido seu caráter psicológico, tendo ele, inclusive lançado os alicerces da psicoterapia! Neste redemoinho de precursores, Sto Agostinho torna-se o maior psicólogo até Freud, Montaigne, Maquiavel, Boccacio e Rabelais aparecem como os descritores da psique enquanto realidade do homem. Todos eles, psicólogos; todos eles, predecessores da psiquiatria moderna.

*
           
Embora o termo doença mental seja contemporâneo, sempre se reconheceram, dizem os psiquiatras, este mesmo fenômeno, o do distúrbio mental. Malgrado as distintas interpretações do fenômeno, o reconhecimento das perturbações mentais é universal, constando desde em civilizações paleolíticas até os incas, passando pelos egípicios, chineses, judeus. Hipócrates (460-375 a.C.) criou uma classificação dos distúrbios mentais; no sec. I, o romano Celso faz constar em sua enciclopédia médica os distúrbios mentais. Durante a Id. Média, distinguiu-se entre loucura natural e loucura fruto do pecado. No Renascimento, alguns elogiavam e outros tratavam a loucura como bruxaria.

            Juntamente à desdivinização do homem empreendida pelos naturalistas no séc. XVIII, situando o homem junto aos demais animais, passa-se a pensar seu comportamento não em termos divinos, donde o conceito de doença mental pode ser expresso como patologia da liberdade. O francês Pinel destaca-se neste contexto, ao libertar os loucos das masmorras, providenciando, por um lado, higiene, alimentação e desenvolvimento das qualidades morais; por outro, vale-se dos métodos naturalistas de classificação para elaborar uma nosografia das doenças mentais, divididas em conjuntos de sintomas. Com Pinel, teria iniciado a humanização do tratamento da loucura.

            Contudo, a nosografia pineliana era confusa e ineficaz. A partir de estudos biológicos operou-se, contudo, uma nova abordagem dos fenômenos patológicos. Em 1822, Bayle individualizou a paralisia geral ao mostrar que as origem era devida a inflamação da aracnóide,uma das glândulas que revestem o cérebro. Em 1879 Fournier liga a paralisa geral progressiva com a sífilis.

A partir disto, os psiquiatras passaram a buscar as causas específicas de outras doenças. Emil Kraepelin (1856-1926) elaborou durante 20 anos a base da nosografia psiquiátrica a partir do conceito de unidade nosológica, ao qual se vincula uma doença com causas, sintomatologia, desenvolvimento e anatomopatologia equivalente. Kraepelin agrupou a psicose maníaco-depressiva, a demência precoce (e suas três formas clínicas: paranóide, hebefrênica[28] e catatônica[29]) e esclareceu o campo teórico-prático de atuação do psiquiatra, definindo seu objeto, marcando a importância das classificações para uma disciplina científica e permitindo à união do saber clínico com o de demais áreas e disciplinas. Tratado de psiquiatria, 1909, E. Kraepelin: “A psiquiatria é o estudo das doenças mentais e seu tratamento (...) [ela é] o conhecimento científico da natureza das doenças mentais” (apud GRANDINO, NOGUEIRA, 1985, p. 66). Kraepelin leva as últimas conseqüências a posição biologista, que busca o fundamento biológico da doença, e analisá-la de maneira causal. Sem dúvida, pois, podemos chamar sua psiquiatria de positivista.

            Dentre os fatores que fizeram fracassar a classificação de Kraepelin conta-se a crítica de Jaspers a ele. Na Psicopatologia geral (1913), K.Jaspers aponta que a noção de unidade nosológica demanda um amplo leque de conhecimentos então indisponíveis. Em 1907, Bonhoeffer mostrou como Kraepelin errou ao catalogar duas doenças com causas distintas, que concordavam em todo o restante. Bleuler, em 1911, se propõe a rever o conceito de demência precoce utilizado por Kraepelin; para ele a alteração mental não é quantitativa, mas qualitativa, com um reordenamento das funções; ressaltou as diferenças de evolução entre distintos doentes; além disso,privilegiou, no diagnostico,a sintomatologia ao invés de critérios clinicoevolutivos.

            Além destes, as propostas de Freud e do existencialismo[30] fizeram tremer o conceito de unidade nosológica. A teoria da psicose unitária (há uma doença mental com inúmeras formas de apresentação), as propostas de Hoche (a noção de síndrome, com origem especificada pelos sintomas mutáveis) e os que continuaram classificando, deram a tônica da psiquiatria no período.

            Contudo, pode-se dizer que a psiquiatria organizou-se, depois, em torno da noção de síndrome e de seus grupos: exógenas, originárias de lesões demonstráveis, doenças somáticas e intoxicações; endógenas, cujo diagnóstico é puramente psicopatológico, baseando-se tanto nos sintomas como na reação do pacientes, conta-se a esquizofrenia e a psicose maníaco depressiva aqui; e psicogênicas¸ grupo grande, que inclui todas as patologias dependentes de vivências e somente compreensíveis a partir da forma como o sujeito organiza sua própria vida.

            Há dois tipos de tratamento das doenças mentais: os psicoterapêuticos (talking cure, etc.) e os biológicos; estes buscam corrigir problemas metabólicos e neurofisiológicos por meio de remédios, tratamento de choque, etc. Freud é um dos fundadores da psicoterapia, através da psicanálise, principal corrente desta modalidade. Ligada diretamente ao tratamento das histéricas, Freud as estudara juntamente com Charcot. Aprendeu os benefícios e os malefícios da hipnose como técnica terapêutica, logo substituída pelo método da associação livre; este permite a vinda à tona de atos psíquicos reprimidos, revelando, pois, a existência do inconsciente, mérito da psicologia freudiana; estes atos terminam por retornar sob a forma de sonhos, sintomas e atos falhos. Outro pilar da teoria freudiana é a da sexualidade, sob suas diversas formas.

            Jung e L. Binswanger, próximos a Freud, deram outro rumo as suas teorias, com Binswanger aproximando-a do existencialismo de Heidegger. Outros buscaram as causas orgânicas das moléstias bem como tratamentos: o choque insulínico de Sakel, o eletrochoque de Cerletti e Bini, ambos visando reequilibrar o funcionamento do organismo por meio do choque[31]. Além disso, os farmacopsicotrópicos também passaram a ser utilizados (P. Chapontier, 1950, clorpromazina, anestésico): remédios que atuam na bioquímica cerebral.

            Na década de 1960, quando a psiquiatria de fato encorpa-se enquanto disciplina médico-científica não especulativa surgem as críticas mais severas.  Em 1961 são lançados História da loucura e O mito da doença mental[32], de Foucault e Szasz, que questionam a psiquiatria e o conceito de doença mental. Laing, Cooper, Basaglia, Castel, dentre outros, também partem para o ataque. Laing e Cooper defendiam a inexistência da esquizofrenia, sobretudo considerando-a uma viagem interior à uma realidade mais ampla; o tratamento é visto como tortura a serviço da ordem burguesa. Basaglia[33] propõe a união entre doentes mentais e grupos revolucionários, devendo a terapêutica ser realizada pela comunidade. Alguns dentre eles tentaram por em prática suas teorias, a maior parte, contudo, fracassando.

*
Algumas notas historiográficas antes de debatermos as contestações propriamente psicológicas de Foucault a estas teses comuns na psiquiatria. A forma como os historiadores da ciência tradicionais tocam seu trabalho foi inúmeras vezes comentada por Foucault. Não há de se estranhar, portanto, que nossa orientação na elaboração deste trabalho seja eqüidistante da de nossos historiadores da psiquiatria, sejam os descritos acima, sejam todos aqueles os quais lançaremos mãos neste texto.

            Também não deve causar espanto que os psiquiatras busquem em grandes pensadores do Ocidente o tenro broto de sua disciplina. Quando expõe os motivos pelos quais quis estudar a psiquiatria, parece-nos que o próprio Foucault aponta uma das causas desta identificação tão bem apreciada pelos psiquiatras: não será porque (...) “o perfil epistemológico da psiquiatria é pouco definido, e porque a prática psiquiátrica está ligada a uma série de instituições, de exigências econômicas imediatas e de urgências políticas de regulamentações sociais?” (FOUCAULT, 2007c, p. 1). Quer dizer, uma ciência tão frágil e tão contestável diante da analítica histórica tem de se agarrar em algo um tanto mais fixo para se manter científica.

Já expusemos as teses historiográficas de Foucault, e que cotejadas com o modo como os psiquiatras escrevem seu destino progresso, não deixa dúvidas do caráter da disciplina.

Portanto, antes de sermos contra ou a favor da psiquiatria, somos contrários aos métodos que nossas fontes utilizam para traçar a história de sua própria disciplina. Afinal, como considerar que se trata da mesma ciência quando seu objeto é distinto, pois as formas de apreendê-lo, quer dizer, conceituá-lo, opõe-se tanto? A título de exemplo, basta citarmos que para Hipócrates (460-377 a.C.) a histeria era causada pelo desprendimento do útero da bacia; em compensações, já no séc. XIX, Charcot dirá que “dans ces cas pareils, c’est toujours la chose génitale, toujours, toujours[34].Trata-se, pois, de uma mesma medicina, que amadurece com o tempo, ou de medicinas distintas, uma sucessão de racionalidades estranhas entre si, com formas epistêmicas completamente opostas de apreender as coisas?




5. Fundamentos da crítica de Foucault

Doença Mental e psicologia ocupa um papel importante em nossa reflexão. Obra de um Foucault ainda influenciado pelo marxismo e pela analítica existencial de cunho fenomenológico-heideggeriano de L. Binswanger, e sem método próprio; neste texto encontramos uma problematização profunda das patologias mental e orgânica[35] e a saída diagonal de Foucault ao problema.

Na análise foucaultiana, o pensamento psicológico do século de XIX pautara-se na identificação do que é a doença mental e de qual sua relação com a patologia orgânica. Para Foucault, a patologia mental foi então abordada com os mesmos métodos e critérios daqueles das doenças orgânicas, quer dizer, a psiquiatria e psicologias do século XX agiam como se houvesse uma metapatologia, uma doença existente enquanto ser abstrato, que se manifesta em patologias mentais e orgânicas

Assim, as duas patologias moveram-se no sentido de fundamentar uma essência da doença: estabelecer uma etiologia a partir da sintomatologia obtida na observação clínicas; estas duas devem fundamentar uma nosografia que, por sua vez, dê os subsídios para o estabelecimento da terapêutica. Ou seja, a doença série uma espécie, algo que existe organicamente e independentemente dos critérios de avaliação, cabendo ao psiquiatria, tanto quanto ao médico — sendo a medicina e a psiquiatria as duas faces do mesmo Janus —, sua descrição tal qual o faria um historiador natural ou um biólogo. Podemos dizer, sem dúvida, que se tratava de aplicar o more botanico inventado pelos naturalistas das Luzes ao campo da doença mental.

            Foucault nos descreve, contudo, outro momento da psiquiatria: a doença passa a ser entendida como desorganização em uma maturação do individuo; como se a personalidade desenvolve-se rumo a uma finalização totalizante e a doença fosse a grande interrupção, a pedra que cerra o caminho do desenvolvimento, forçando a abertura de um novo caminho, aquele da morbidez. Assim, desenvolve a clássica distinção entre neurose e psicose. Sendo a doença desorganização de uma personalidade dada, há de se fazer uma distinção qualitativa do grau de alteração da personalidade; serão neuroses todas aquelas patologias que alterarem uma faculdade do aparelho psíquico, mantendo as demais intactas; ao mesmo tempo, serão consideradas psicoses as doenças mentais que mudarem o conjunto da personalidade tornada mórbida.

*
Malgrado esta diferença entre os dois procedimentos psicopatológicos presentes no século XIX — uma psicopatologia unificadora e uma psicopatologia da personalidade — , a psicologia de então tinha como base que a doença desagrega as funções mentais e “suprime as funções complexas, estáveis e voluntárias, exaltando as funções simples, instáveis e automáticas” (FOUCAULT, 1975, p. 25) como se doença desencadeasse um estado de retorno ao passado individual, fazendo com que determinadas faculdades se percam ou se desorganizem e que funções inteiras da psique se transformem. Mesmo Freud tomava que a neurose é uma forma de regressão a um nível de estruturação libidinal ultrapassado.
A análise de Foucault segue adiante, interpelando a psicologias evolucionistas de Janet[36] e de J. H. Jackson[37] e questionando-as por meio da psicopatologia fenomenológica de Biswanger[38] e de Jaspers[39]. A partir destes dois autores — particularmente Binswanger, leitor atento de Heidegger — Foucault elaborará uma tese bastante interessante para nós: para que assome como possibilidade algo como uma medicina mental — se ela for possível — ela deve se pautar em uma compreensão histórica das relações entre homem louco e homem normal. Para nós isto equivale a dizer que a base da psicopatologia, ou, melhor, da psiquiatria, não pode ser reduzida a uma dicotomia ou psicológica ou orgânica, tal como querem nossos historiadores da psiquiatria. Para nós, a tese de Foucault neste texto, e que ele desenvolverá em História da Loucura, e em toda sua obra, conforme veremos, toma que a base da psiquiatria é histórica e variável de acordo com distintas culturas.
A partir disto, nosso objetivo neste trabalho é acompanhar: 1º a formação das bases para uma apropriação médica da loucura; e 2º os desenvolvimentos da medicina mental e da psiquiatria — que são distintas, ao menos no século XIX, já veremos porque — no século retrasado.
Para tanto, lançaremos mão da obra magna de Foucault sobre o tema, a História da loucura, especialmente para o primeiro objetivo; mas também, vez ou outra, de seus principais textos genealógicos sobre o tema, quais sejam Poder Psiquiátrico e Os anormais. Ao mesmo tempo, contudo, tentamos ser rigorosamente fieis ao próprio pensamento de Foucault; afinal, como os psiquiatras pensavam sua ciência e como ainda hoje fazem esta história de si mesmos e de seu saber? Ou seja, lançamos mão da leitura de textos psiquiátricos e de historiadores da psiquiatria, na tentativa de entender melhor esta disciplina e suas escaramuças metodológicas e teóricas.








6. A formação do mundo psiquiátrico

Proveniência do internamento
            Na História da Loucura na Idade Clássica[40] Foucault trata de nos descrever como a loucura, que até então tinha uma vida ativa e livre no imaginário e cotidiano da Europa, foi, aos poucos, apreendida por uma consciência médica até redundar na formação da médécin mentale inaugurada por Pinel.

Na Alta Idade Média organizou-se na Europa toda uma rede de leprosários, destinados a receber, enquanto espaços de exclusão, a encarnação do mal, os lázaros do continente. Quando Luis VIII regulamenta os leprosários no século XIII, eles já são mais de 2000 em toda a França. Contudo, a partir do século XV os leprosários esvaziam-se — com o fim das Cruzadas, rareiam as fontes de contágio —, embora a função que ocupavam permanecerá, mas agora assumida por outras figuras.

As maladrièries passam a receber pobres, desnutridos, mendigos e soldados estropiados. Se desde o século XVI a monarquia busca reorganizar as maladrièries, em 1672 e em 1693-5, o rei terminará por unificar todos os estabelecimentos hospitalares (maladrièries, instituições assistenciais e hospitais) sob um só regulamento e controle.

Em dois séculos, pois, a até então central lepra regredirá, bem como os leprosários em toda a Europa. Vários motivos e nenhum é médico. Contudo, a função do leproso continua: sinal da fúria e da salvação de deus, o leproso é o instrumento divino na luta pela purgação dos pecados, em um movimento que unifica exclusão social nos leprosários e reintegração espiritual com os desígnios da divindidade. Em um primeiro momento, serão as doenças venéreas que ameaçaram ocupar o lugar da lepra, mas o baixo número de infectados e a existência de terapêuticas — a utilização do azougue, por exemplo — farão com que seja a loucura que ocupe este espaço. O louco, contudo, não era figura nova, estando presente desde antes da Idade Média como figura central.

Na Renascença havia a figura da Nave dos Loucos, Narrenschaft. Se, por um lado é uma figura artística, por outro é real: navios que carregavam os loucos de uma cidade a outra, malgrado as leis locais e os distintos procedimentos já existentes, bem como a existência de espaços reservados aos loucos nos hospitais. Se é verdade que a Nave expulsa os loucos, livrando a cidade de mantê-los ou de lidar com eles; ao mesmo tempo, a Narrenschaft tem forte caráter simbólico. Estar na Nave significa que o louco é prisioneiro de seu destino; se é a água que trará e levará os loucos para os distintos lugares de peregrinação e contraperegrinação, ao mesmo tempo, a água purifica. O louco é aquele que está preso na liberdade de vagar, prisioneiro da viagem. Enfim, o louco é, na Idade Médica, "posto no interior do exterior" (FOUCAULT, 1972, p. 22)

Ao final da Idade Média, o louco tornar-se uma figura maior e ambígua: "ameaça e derrisão, vertiginosa desrazão do mundo, e mince ridícula dos homens" (FOUCAULT, 1972, p. 24). Se na crítica o louco é denunciado, na arte ele detém a verdade. A loucura é o vício do qual ninguém escapa. Dubiedade que não deixa dúvidas: é o tempo de Erasmo, mas também de Bosch.

A loucura ocupa, nesse sentido, o papel outrora ocupado pela morte na mentalidade medieval da Europa: peso de vida embora destino do homem. É a loucura que ocupará o lugar ambíguo da morte, ou seja, do vazio existencial. O louco é aquele que não se preocupa com a morte, desarmando-a: a invasão da loucura é outro sinal do fim das eras.

O aparecimento da loucura no final da renascença marca o fim das formas góticas de simbolismo. As coisas, sobrecarregadas de sentimento perdem a sua unidade e sua imediaticidade, escancarando o vazio entre o saber e a forma. A loucura, em imagens e sentidos, vem ocupar este vácuo: o louco vaga entre o animal e a coisa, o sonho e o pesadelo. O mundo sobrecarregado de sentidos faz com que o saber pare de ensinar, dando lugar à fascinação, ao imaginário, ao sonho e à loucura, que são mais atraentes que o mundo duro da carne.

Com a Renascença a animalidade, até então presa no simbolismo cristão do Nome dado por Adão, transborda, fascinando justamente por escapar ao homem, sendo, pois, símbolo da loucura. Este saber esotérico é próprio do louco que, com sua ingenuidade vence, para Dürer[41], tanto deus como o diabo. No louco, o homem vê seu destino nas profundezas do inferno.

Na literatura filosófica e moral, há outro espaço da loucura. Na Idade Média, a loucura é um vício, uma das doze dualidades da alma humana, oposta à prudência. Na Renascença, a loucura é o próprio vício, tendo inúmeras expressões, todas elas ligadas a fraqueza, a soberba e a ignorância humana. "A loucura não tem somente caso com a verdade e o mundo que tem com o homem e verdade dele mesmo, que ele sabe perceber” (FOUCAULT, 1972, p. 36). A loucura diz de uma conduta, ou seja, é moral. Como o vício é a irregularidade da conduta, a loucura é pecado

Dupla experiência da loucura: uma trágica, que a experimenta com um fascínio cósmico; outra, crítica que a observa como vício moral. Se é verdade que houve trocas entre estas duas posições, com o tempo elas dividirão a experiência até então unitária da loucura. O humanismo, ao situar a loucura como moral, diz que ela dirige a conduta dos homens: a loucura se opõe à verdade e ao essencial. Ao final da Renascença, ao final do século XVI, contudo, haverá somente uma experiência da loucura: como vicio, erro que sucumbe no confronto com a verdade.

A consciência crítica da loucura passa medi-la em relação à razão. A loucura é identificada com a imediaticidade e aparência das coisas, em contraposição a sua essência; a ordem dos homens, imperfeita e efêmera, contra a essencialidade de deus e da verdade eterna das coisas: ‘medida à verdade das essências e de deus, toda ordem humana não é senão loucura" (FOUCAULT, 1972, p. 42).

A razão do homem é louca perto daquela divina, mas esta não abandona o homem: está nele, e deus se comunica com os homens desta forma; ou seja, a loucura não tem existência positiva, mas relacional à razão de deus.

Reinscrita como figura da razão, a loucura logo se vê capturada. Ela torna-se ensejo da afirmação da razão. Não sendo mais trágica, a loucura torna-se alvo da crítica: ela é o erro e a ilusão: "ela [a loucura] toma o falso pelo verdadeiro; a morte pela vida; o homem pela mulher, o amoroso por L'Erynnye e a vítima por Minos" (FOUCAULT, 1972, p. 51); assim, a loucura revela a verdade, pois ela é sempre ilusão.

Como a Idade Clássica prende a loucura na razão, também a Nave tomará outra forma: a do Hospital dos Loucos. Lá, a desordem tomará ordem. Novas exigências formulam-se e os loucos as saberão na pele.
           
Se a Renascença controlou a loucura pela repressão, a Idade Clássica a controlará pelo mutismo. Para Montaigne a loucura é sempre a dúvida que paira sobre qualquer um, Para Descartes, a loucura é a impossibilidade de pensamento; duvidar da própria sanidade é índice de racionalidade, i. é, a certeza da existência de si, o cogito implica não-loucura.

Emergência do internamento
Extravasando o campo teorético, a Idade Clássica cria casas de internamento para os desrazoáveis: na França, o instrumento das lettres de cachet[42]; na Inglaterra, as workhouses; na região que se tornaria a Alemanha, as Zuchthäusen. Quando a psiquiatria se formar, o louco já estará internado, pois foi por meio do internamento que a Idade Clássica experimentou a loucura, fazendo com que esta desaparecesse da cultura européia.
           
Em 1656 o Rei Sol, Luis XIV, cria o Hôpital Général, em Paris, como parte de uma reforma de diversas instituições. Apesar do nome, o Hôpital não é uma instituição médica; administrado por um gérant, é de sua competência assistir os pobres, inválidos, mendigos, doentes e alienados de Paris.

“Soberania quase absoluta, jurisdição sem apelação, direito de execução contra o qual nada pode prevalecer — o Hôpital Général é um estranho poder que o rei estabelece entre s polícia e a justiça, nos limites da lei: a terceira ordem de repressão” (FOUCAULT, 1972, p. 61).

O que há de médico no Hôpital é a visita de um profissional destes não mais que duas vezes por semana; de resto, não se trata de uma instituição médica, mas de uma instância da ordem absolutista francesa.
           
Ligadas ao estabelecimento do poder real, em 1676, outro decreto real dispõe a criação de um Hôpital em cada cidade do reino; em 1789 existem 32 cidades com estas instituições em toda França. Também a Igreja encabeçava este movimento com instituições próprias, reformando-as e adaptando-as às novas necessidades da ordem Bourbon. No próprio Hôpital há um duplo caráter variante entre o laico e o confessional. Se os bispos participam da administração, são les principaux citoyens que exercem o papel fundamental. Se a vida dos internos tem um caráter monástico, ao mesmo tempo as lettres de cachê[43] — operação do poder monástico — são um dos instrumentos fundamentais do internamento. Mescla-se o duplo caráter da caridade eclesiástica com os pobres com o impulso burguês de pôr este mundo do desregramento, da miséria, nos limites da ordem mercantil-urbana emergente. Serão nos edifícios dos antigos leprosários que se colocarão estas novas instituições da ordem.
           
Este movimento é europeu. Na Inglaterra elisabetana criam-se as houses of correction, 1575, em cada condado; adiante, dada a falência inicial, prescreve-se o trabalho dos internos como forma de custear a manutenção da instituição. Já em 1697 é a vez da emergência das worhouses, a primeira em Bristol, mas logo estendida a todo o país. Na futura Alemanha, Hamburgo cria em 1620 a primeira Zuchthäusern, casas de reprodução ou prisões. Enfim em toda a Europa, seja anglo-saxã, latina ou germânica surgem prisões, hospitais, casas de força, etc, que em poucos anos formarão uma rede de instituições onde jovens, condenados, miseráveis e insensatos grassaram como população própria. Enfim, por trás do internamento destas figuras distintas encontra-se a emergência de outra percepção da miséria, de resposta aos problemas econômicos do desemprego e da ociosidade aliadas a uma nova ética do trabalho.
           
Para os Reformadores protestantes, a riqueza e a pobreza são sinais de deus, sendo a primeira sinal de eleição divina e a segunda castigo. Isto esvazia a caridade medieval católica: é a fé que aproxima de deus, não suas obras, pois as obras devem ser produtos da fé não o contrário. Por isso é o Estado que deve assumir este papel, não associações civis, donde a laicização da caridade, movimento característico da Idade Clássica. Se antes a loucura tinha um caráter ambíguo, entre o sagrado e o profano, agora, sob a égide protestante, ela se torna fonte da desordem social, assim como a miséria torna-se castigo divino e desregramento moral.
           
No seio do catolicismo, dá-se a laicização por outros meios; no Concílio de Trento — realizado de 1545 a 1563 as idéias do humanista de origem ibérica J. L. Vives influenciam os rumos da Contra-Reforma; este Concílio defende a designação de magistrados com a tarefa de arrolar os pobres da cidade, investigando suas vidas e moral, para enquadrar-lhes e internar os mais obstinados em casas de trabalho. Embora muitos tenham resistido a estas idéias, aos poucos o catolicismo aproxima-se delas, muitas já em voga nos países protestantes: os pobres deixam de ser enviados de deus para estimular o exercício da caridade e da piedade tornando-se o rebotalho espiritual da sociedade, devendo se lhes dispensar compaixão somente por suas misérias corporais.

Dividindo os pobres em dois tipos bons e maus — quer dizer, submissos ou não ao internamento e à assistência, influenciados por deus ou pelo demônio, não merecedores do castigo ou merecedores — a Igreja entra nesse movimento de desmistificação da miséria, no qual o pobre é previamente valorado enquanto sujeito moral e a pobreza tornada objeto que cumpre ao estado organizar. Esta assunção da pobreza não mais como objeto de uma experiência mística e sim como experiência social passível de medidas de saneamento social, colocará os pobres ao lado do louco e dos desempregados, nestes espaços de exclusão que a Idade Clássica criou.
           
O internamento é uma medida de polícia[44] no sentido Clássico: medidas que ligam o trabalho às necessidades daqueles que não trabalham. Antes de qualquer imperativo médico ou filantrópico é o imperativo do trabalho que torna o internamento necessário. Isto explica porque o decreto de 1656 toma a mendicância e a ociosidade como fonte de desordens.
           
Em 1559, 30% da população de 100.000 habitantes de Paris é mendicante. Desde o século 16, a administração da cidade tentava enquadrar esta massa urbana: em 1532 um edito do Parlamento citadino obriga os mendigos a trabalharem limpando os esgotos da cidade; em 1534, outro edito sanciona que os pobres (camponeses, sem terra, desertores, desempregados, doentes, etc.) abandonem a cidade; um decreto de 1606, completando o de 1534, legisla que os pobres devem ser marcados e ter a cabeça raspada antes de serem expulsos, sendo impedidos de retornar por arqueiros.
           
Neste contexto de guerras religiosas, de um mercantilismo emergente e de impossibilidade de organização do movimento operário; de luta entre Igreja e Parlamento, o Hôpital — criação parlamentar — vem banir a exclusão simples, em troca da criação de uma rede de internamento, que postula obrigações aos internos. Em quatro anos, serão 11000 os internos do Hôpital Général de Paris. Nos interstícios do século XVII, o Hôpital se encarrega dos primeiros efeitos da crise econômica originada do arrocho salarial, inflação e descenso da economia espanhola, então a mais importante da Europa. Se nestes períodos de crise, o Hôpital assegura a ordem internando desempregados e vagabundos, nos tempos de crescimento seu papel é oferecer trabalho, garantindo a prosperidade.  “A alternância é clara: mão-de-obra barata, em tempos de pleno emprego e de salários altos; e, em períodos de desemprego, reabsorção dos ociosos e proteção social contra a agitação e os motins” (FOUCAULT, 1972, p. 79).
           
Pelas condições de trabalho e produção, os internos recebem menos que os não-internos, o que leva, progressivamente, a uma concorrência muito aguda com as manufaturas. Diante do perigo da concorrência, aos poucos o trabalho é extinto nas instituições de internamento. Enfim, a significação que Colbert[45] quis dar ao internamento — econômica, laborial e de controle — falhou em seus termos econômicos, embora tenha conseguido evitar os levantes sociais da massa urbana miserável da época. No fim do século XIX o fechamento das casas de internamento na Europa deixará patente o fracasso destas enquanto resposta aos problemas da nascente sociedade industrial.
           
Contudo, o internamento possui um sentido ético também. Se na Idade Média o pior pecado é a soberba e na Renascença, a avareza; na Idade Clássica é a preguiça que vem assumir este papel: ela é esperar a generosidade da natureza mesmo após a queda de Adão. Nos interstícios entre trabalho e sua significação ética, o louco sofre a condenação moral enquanto ocioso, que redunda em seu internamento prático no mundo burguês da produção então em formação.
           
Na realidade este sentido ético do Hôpital é o mais fundamental. A pobreza é fruto não da escassez, mas do desregramento moral, da falta de modos e da preguiça. Compete ao Hôpital tornar toda essa massa urbana moralmente libertina em força útil à sociedade. O trabalho aproxima-se da ascese, e as casas de internamento sintetizam o imperativo moral do trabalho com a lei civil que regulamenta as relações sociais. O sonho da cidade burguesa se estabelece: o estado produzindo verdade, administrando-a e fazendo-a majorar suas forças; seja na Europa protestante ou na católica, o objetivo é evitar o pecado e buscar a beatitude ética para manter a ordem moral da sociedade. Nos primórdio de nossa experiência da loucura, a Idade Clássica; a loucura como impossibilidade do trabalho e da integração social; e o internamento, mudando seu sentido em relação à Idade Média, torna-se instrumento econômico e social de manutenção da ordem ético-política-econômica do mundo mercantilista e absolutista.

*

O início do século XX viu o desenvolvimento de uma corrente historiográfica da psiquiatria situar o internamento como o ápice de uma finalidade social, tal seja, a da sociedade eliminar de si os elementos nocivos. Supondo uma loucura que foi sempre a mesma, tomam que no momento do internamento, momento do mercantilismo, o que ocorria era que a ciência médica positiva trazia à tona a verdade da loucura, perdida de si mesma; por baixo da sensibilidade social, que percebia o louco como associaux, a consciência médica fez brilhar a realidade da loucura ela mesma..

            Falta-lhes história: o internamento não foi dirigido aos loucos e sequer visa eliminar os associaux. O reconhecimento do louco como Outro foi criado, e é esta criação que permitiu interná-lo. A loucura não deitou imóvel na história; uma série de operações a fez deixar de ser familiar e a tornou passível de banimento. A experiência que o homem da Idade Clássica teve da loucura foi a que possibilitou a mesma experiência que temos dela hoje: nós do lado de fora, o louco no hospício.
           
Dentre os passíveis de serem internados, não só os loucos, mas os mendigos, os miseráveis, os desempregados, os velhos, os incorrigíveis. Esta unidade, estranha para nós, é a base de nossa experiência da loucura; e é por isso que é a experiência que a Idade Clássica teve da loucura que deve ser interrogada, não a psiquiatria — mais recente que o próprio internamento. O internamento criou todo um novo campo de experiências, um novo mundo ético e novas formas de integração social. Se o fim do século XVIII conseguirá enxergar um parentesco entre os magos, os alquimistas, os profanadores e os loucos, foi a Idade Clássica que o possibilitou.
           
Os doentes venéreos, por exemplo. Antes do Renascimento, eram somente um grupo dentre os vários doentes, e, assim, deles se exigia o mesmo: uma confissão, e, após, seriam tratados. Com o advento do Ressurgimento, eis que os venéreos tornam-se alvo da punição divina destinada aos libidinosos. Expulsos do Hôtel Dieu, será no Hôpital Général que encontrarão abrigo. Ou seja, a doença deixa de ter um caráter apocalíptico para tornar-se índice de culpabilidade por um pecado. No caso dos venéreos, a terapêutica envolvia sangrias, purgações, banhos, confissões e fricções com hidrargírio; terminava com uma longa sangria, para que os humores mórbidos vazassem. Fica claro como medicina e moral se complementavam, como uma trabalhava para a outra, e como ambas se intercalavam nesta estranha terapêutica, que não teme, de forma alguma, ser dolorosa e marcar a carne.

Ocupando o mesmo espaço por mais de cem anos, veremos esta terapêutica ser aplicada também aos loucos: a Idade Clássica havia constituído os parentescos entre desrazão e pecado, e o louco também deveria ser purgado. O racionalismo, pois, sobrepunha cura e castigo: a repressão na terra era como que o prelúdio da ira divina do pós-vida. Curar o corpo e purificar a alma; já os gregos o faziam, mas somente o século XVII, somente a razão cristã dará a esta união entre moral e medicina tome a forma da repressão, cujo ápice será, sem dúvida, o tratamento moral de Pinel, de Esquirol e de Leuret.

Vejamos o caso da sodomia. Até o século XVIII o tratamento a se dispensar ao louco é o ignis et incendium: o sodomita, o mago e o herege tem a mesma sorte. A Idade Clássica terminará mesmo com toda uma literatura erudita libertina, que havia passado incólume pela Renascença. Se o platonismo dividia o amor, tomado como uma forma de saber, em diversos tipos, a Idade Clássica dividi-lo-á em dois tipos, o amor de razão e o de desrazão, este último sendo aquele do sodomita. Eis aqui a origem da ligação entre loucura e sexo. Da mesma forma as prostitutas e la débauche são experimentadas, e o destino é o mesmo, as casa de força.

Em uma época onde a ética sexual é submetida a moral familiar, a polícia pode prender muitos desrazoáveis da genitália sem processos, a fim de salvaguardar a  moral pública. A moral burguesa fará cair o amor cortês: o sagrado é a aliança[46], não os sentimentos. É no interior do casamento que deve dar-se o amor; fora dele, prolifera a loucura, a desrazão amorosa e sexual. A ordem familiar é implacável na luta contra a desrazão sexual; e, aqui neste tempo, os conflitos entre família e individuo são questões públicas. Somente com Breteuil (ministro), 1784, é que se principiará o movimento de torná-las questões privadas. Para o classicismo todas as irregularidades do sexo têm como denominador comum a loucura; sendo culpada por todas estas desrazões, esta culpabilidade servirá como substrato para o desenvolvimento da psicopatologia.

Também os sacrílegos, blasfemadores e profanadores têm sua vaga reservada nas casa de internamento, bem como suas punições descritas nos códices penais-corporais, como era a prática da época; por exemplo, cortar fora as línguas daqueles que mal-diziam o deus e o divino. Toda uma série de outros comportamentos, até então encarados a partir de um viés religioso, perderão a ligação com o divino; continuarão a ser condenados, mas de um ponto de vista moral: suicidas, magos, alquimistas, bruxos. Cumpre que sejam condenados, cumpre castigá-los, mas por suas infrações morais, por representarem um perigo para a ordem social.

Todas estas práticas representavam, na sensibilidade clássica, ilusões. E forçar à verdade é o primeiro sentido do internamento. Se compete ao estado velar pelas crenças e pela verdade, é porque esta faz parte da ordem. Dentro da maison d’internement é impossível fugir da verdade.

“Estranha área de aplicação, portanto, das medidas de internamento. Venéreos, débauches, dissipadores, homossexuais, blasfemadores, alquimistas, libertinos: toda uma população de estranhas matizes se encontra de um golpe, na segunda metade do século XVII, rejeitada, doutro lado de uma linha de divisão, e reclusa nos asilos” (FOUCAULT, 1972, p. 116).

Os desvios religiosos e a medicina
Em La vida de los hombres infames, Foucault nos descreve outro momento, senão chave, ao menos interessante na história da formação da psiquiatria e do internamento: o caso dos desvios religiosos. No século XVI o diabo ainda habitava o mundo e, vez ou outra, assumia o controle dos incautos, tornando-se senhor do corpo e da alma de alguns. Neste contexto, a bruxaria ocupa um papel fundamental na mentalidade e na articulação desta com as relações de poder.

A medicina pode ser analisada a partir de seu funcionamento social: o papel e posição do médico, a forma da sua prática e os objetos de seu campo de ação (os objetos medicalizáveis). Não existe algo como uma medicina universal: as distintas culturas definem formas próprias, o campo dos sofrimentos e dos desvios, e lhes medicaliza sim ou não — isto partindo do pressuposto de que medicalizam algo. A medicina do século XIX buscou estabelecer uma divisão universal entre o normal e o patológico. A medicina atual deu-se conta da relatividade do normal e o do patológico: variações dentro do saber médico, o sistema de valores de uma sociedade, a forma de vida da população, sua relação com a morte, as formas de trabalho, etc.
           
Assim é que a medicina do limiar entre o Renascimento e a Idade Clássica, orientada por toda uma lógica própria de diagnósticos e terapêuticas — o regime da crise[47] — tinha como um de seus principais objetos de estudo a questão da bruxaria e dos sacrilégios. Molitor (sec. XV), Erastus e Weyer (sec. XVI) defendiam que as bruxas não tinham poderes reais, e que se deveria confiar em deus; contudo, defendiam punições capitais para as acusadas de feitiçaria, não pelos poderes que afirmam ter, mas pela aliança que fizeram com o diabo. Nem estes médicos de então, nem Sprenger, Scribonius ou Bodino questionam a existência do demônio: as polêmicas envolvem suas formas de ação.
           
Outros debates se desenrolavam então:

1. Acerca do diabo: este é um anjo, malgrado tudo, tendo, pois somente ascendência sobre os espíritos, nunca sobre os corpos, submetidos a soberania de deus; assim Erastus conclui que o diabo tem pouco poder sobre os corpos e as coisas, embora seja muito poderoso em relação as almas.

2. Assim, o diabo tende a agir sobre os espíritos mais frágeis de vontade e menos piedosos: as mulheres (que é inconstante, impaciente, melancólico e malicioso: Meyer apud FOUCAULT, 1996, p. 14), os melancólicos (Crisóstomo: o diabo submete a todos que domina por meio da irritação ou da tristeza) e os insensatos (que, tendo o pensamento ofuscado pela ação dos humores, tem maior possibilidade de serem corrompidos pelo diabo). O diabo, pois, sem poder alterar a ordem do mundo, submetida a deus, consegue se aproveitar dos defeitos que a ordem provoca nas almas.

3. O diabo atua por meio do engano, sobretudo; não podendo atuar nas próprias coisas, atua na forma como as imagens se transmitem à alma: os sonhos pertencem ao diabo, este agindo nas fronteiras entre o mundo e o homem.

4. Se o diabo pode intervir no corpo, ele o faz por toda uma intrincada rede de ligações, de cumplicidades e coisas em comum; se a imaginação é a faculdade localizada precisamente na fronteira entre o corpo e a alma, juntamente com os sentidos, os nervos e os humores, é certo que o diabo tem ascensão sobre eles. Assim, o diabo sabe operar e colocar em sintonia as distintas faculdades do corpo e do espírito para ludibriar e fazer real suas ilusões.

5. O maior logro de Satã é conseguir enganar mesmo os crentes, mesmo aqueles que, no ato que denunciam as bruxas, afirmam tê-las vista no sabbat, são ainda servos do Belzebu, por sua descrença e por trazer as maquinações do Caído para o seio da igreja (Weyer). Outros diziam o contrário, inclusive acusando Weyer de bruxo: Scrigonius afirma que o Satã sabia como seria ridicularizado se sua influência se reduzisse a sonhos e fantasmas; assim, o máximo da ilusão é acreditar que os poderes das bruxas são somente ilusão. Em último caso, Satã coloca aos homens em um círculo: quem condena Satã reafirma seus poderes, e quem o nega faz o mesmo.
           
O diabo permanece em uma ausência perpétua: age por meio de imagens falsas que são fantasias, pois. O demoníaco está, assim, próximo e distante; os médicos lhe reduzem a ação às coisas animadas, à alma, à imaginação, na fronteira entre mundo e interior; estes médicos do séc. XVI, reduzindo assim a ação do diabo ao corpo, fronteira entre mundo interior e exterior, abriam caminho para a redução naturalista dos séculos posteriores. Situado aí, Satã se converte no porteiro do acesso à verdade: próximo do erro, mesmo quando se denuncia a ação do diabo, ainda não se sabe se ela, a verdade, já não está no próprio ato que a denúncia. Enfim, estas discussões sobre o diabo podem ser reduzidas aos debates entre verdade e erro, ser e não ser, aparência e verdade.
           
A partir destas discussões para-religiosas elaborou-se algo como uma medicalização que buscava demonstrar a existência a partir de uma análise da ação demoníaca sobre as almas e corpos, sem nenhuma explicação que chamaríamos psicológica ou, mesmo, qualquer noção, ainda que embrionária, de uma divisão médico de tipo normal-patológico: sua referência é ilusão e erro.
*
            A medicina do século XVI não se desenvolve a partir do estabelecimento do normal ou do patológico, mas do que afeta ao corpo, à alma e à imaginação, em sua fronteira; não há enfermidade, mas, antes, uma artimanha do diabo para submeter os outros a seu logro. Por isso todos que se equivocam terminaram por ocupar o mesmo lugar de exclusão.
           
Se em relação a questão da bruxaria e da possessão, a medicina, em sua abordagem clássica, tomava estes fenômenos como patologias que não haviam sido reconhecidas como tais: histéricas, paranóicas, psicóticos alucinatórios, etc; o que importa, contudo, é como foi possível que a bruxa e o possuído, perfeitamente integrados mesmo em sua exclusão, como eles puderam ser medicalizados?
           
O juiz, o cura, o rei, o médico e a população. Todos concatenados para perseguir os possuídos e os feiticeiros, adeptos de Satanás. No século XVIII, contudo, dominará a medicina dos humores[48], onde estes excluídos se perderão, conquanto no século XIX reencontrarão seu lugar sob o nome de histéricas.
           
No século XVI já o médico contava entre os que levavam adiante a luta contra a possessão. Atritando com a igreja, os médicos acreditavam que, em fato, o diabo conduzia as bruxas ao sabbat, e atuava sobre os corpos, sobre os humores e as mentes, para ganhar-lhes a seu culto. Assim é que J. Meyer defende que a enfermidade advêm da ação do diabo. A Igreja era conta, no que os juízes lha apoiavam com reticências.
           
Já no século XVII ocorrem mudanças. Os casos de bruxaria que tiveram destaque no período não são, como se pensa comumente, frutos da ação da Igreja e da Inquisição no contexto da Contrarreforma. Os processos revelam que neles sempre havia um conflito entre o parlamento e a igreja.
           
Em 1598 o tribunal de Angers condenou um jovem, Roulet, por haver se transformado em lobo e comido várias crianças, o que o jovem concordava e assumia a culpa; o tribunal de Paris apelou e o jovem foi considerado louco e conduzido a um hospital e condenado a conhecer deus. Outro caso parecido ocorreu em Bordeaux, poucos anos depois: um jovem afirmava haver comido várias crianças sob o estado de lobo; o tribunal lhe condenou a passar o resto da vida em um convento, por ter obviamente menos razão que uma criança de oito anos e desconhecer a deus devido à pobreza.         
           
Estas decisões opunham-se a jurisprudência e as recomendações de Bodino e de Meyer; estes defendiam que os casos de licantropia deveriam ser tratados como corrupção da imaginação, e que a ação do diabo resumia-se a corrompê-la e colocar lobos reais no caminho das vitimas. Não era esse o interesse dos tribunais: lhes importava pouco os fatos ocorridos ou a possessão demoníaca, mas, sim, a imputabilidade do autor por irresponsabilidade — imbecilidade ou demência —, seguindo, pois, uma a tradição romana. Esta situação se inverteu rápido: a Igreja passou a ser mais critica em relação aos casos suspeitos de bruxaria, estabelecendo, no Sínodo de Reims, inúmeras precauções a se tomar antes de exorcizar os suspeitos; neste sentido, intervieram no caso de Marta Brossier, 1583, proibindo que qualquer sacerdote a exorcizasse. Os parlamentos, por seu turno, queriam ser severos na aplicação das leis.

Esta oposição entre o ceticismo eclesiástico e a obstinação dos tribunais se agrava: no séc XVII a maior parte das condenações por bruxaria são contra padres, o que era muito incomum até então.  Isto indica os poderes ambíguos que o sacerdote adquiria, no final do Renascimento, na mentalidade popular. Se, como afirmava De Lancre, do tribunal de Bordeaux, os mais sábios são mais perigosos, o sacerdote ocupava, pois, uma dupla posição: sendo o mais sagrado, deveria estar o mais longe dos atos de bruxaria. A burguesia tinha claro que o sacerdote não pode ser perdoado de forma alguma dos casos de bruxaria: era o sacerdócio tendo de se submeter ao bem da sociedade, quer dizer, à razão de estado; tendo este aval, os tribunais buscaram purificar a igreja dos elementos bruxos, ao mesmo tempo que combatiam as influências do sacerdote sobre o povo.
           
Foi dúbia a atitude da igreja. Sua fração espiritual (que combatia a interferência religiosa em assuntos temporais) apoiava as ações para combater a fração secular da igreja, justamente a maior vítima da depuração penal. A fração temporal da Igreja era muito cética quanto os casos de bruxaria e de possessão: muitos defendiam que não se tratava senão de casos de melancolia, ligada, assim, a bílis negra.

“Enfim, foram as  autoridades eclesiásticas que pediram as Faculdades de Medicina consultas e informes periciais (...) [já que] as autoridades eclesiásticas da igreja manifestavam um a grande desconfiança malgrado o zelo mostrado pelo clero regular e que, em numerosas circunstâncias, os bispos apelaram aos médicos para evitar a ingerência conjunta dos tribunais e das ordens religiosas” (FOUCAULT, 1996, p. 27)

            Nesse conflito entre a Igreja secular de um lado, e os tribunais e as ordens religiosas de outro, venceu a Igreja com o apoio do poder real. Se no começo do século XVII ainda o poder real mantinha alguns casos de bruxaria, estes foram diminuídas no correr dos anos, ao ponto de, já na metade do século, 1670, o rei mandar intervir em condenações de bruxos à fogueira pelo tribunal de Rouen, que havia se mantido fora desse processo. Os juízes de Rouen defendem sua posição; a Igreja intervém e não trata de religião: seus argumentos são civis e devem ser inscritos no contexto da razão de estado.
           
Em 26 de abril de 1672, o conselho de estado manda soltar todos os acusados de bruxaria na Normandia e ordena que tal seja a jurisdição a ser seguida por todos os tribunais de França. De agora em diante, bruxos, sortílegos, magos e afins tem um destino: o internamento no Hôpital Général. Não importa tanto mais sua responsabilidade acerca dos crimes eventualmente conhecidos. “A bruxaria é já considerada unicamente em relação com a ordem do estado moderno: a eficácia da operação é negada, mas não a intenção que implica, nem tampouco a desordem que suscita. O âmbito de sua realidade transferiu-se a um mundo moral e social” (ibidem, p. 29-30).

            A última fase deste processo envolve as lutas religiosas em França. Com efeito, já em fins do século XVII, os protestantes e os jansenitas, oprimidos pela monarquia católica, começam a pregar a partir de um forte sentimento religioso profético, com milagres e êxtases religiosos. A Igreja e o estado, para combatê-los, intervém nos tribunais: traça-se um paralelo entre fanatismo e loucura; difunde-se que os ditos milagres são naturais, não divinos. Enfim, as oposições religiosas conheceram o internamento.
           
A igreja buscava a medicalização destes fenômenos religiosos dos protestantes para mostrar que não eram milagrosos, mas frutos de mentes insensatas. Brueys, em sua Histoire de Le fanatisme dans notre temps diz que

"se não se conhece ‘a máquina do corpo humano’, se podem confundir os fenômenos de fanatismo com as ‘coisas sobrenaturais’... ‘bem é verdade que estes fenômenos são geralmente apenas uma verdadeira enfermidade’” (apud  FOUCAULT, 1996, p. 31).

Aqui enfermidade tem outro sentido aqui: é maldade, mentira e superstição.

*

Nem ciência nem o direito dão coerência a esta população, a população dos internatos de então. Somente a forma como são percebidos, isto é, enquanto desrazoáveis. Se a Idade Média e o Renascimento pressentiam o louco como perigo, a Idade Clássica o localizará. Aos poucos, o louco passará a ser medido em relação à norma social; até então, particularmente no campo da arte, o louco também era isolado, mas de maneira abstrata. Tornado concreto, chegara o momento de alienar os alienado, de isolá-los.

Todo o campo de objetividade epistêmica que se insinuará mais e mais sobre o louco somente será possível depois deste movimento que o isolou a partir de uma oposição ética, de uma divisão entre razão e loucura; eis aqui a base de nossa moderna experiência da loucura.





7. Medicina ou Psiquiatria?

Antes de Pinel, de Tuke e de Chiaruggi, tidos como os fundadores da psiquiatria, já existia, pois, o internamento, conforme vimos. O louco, tornado parte de uma população urbana muito mais ampla, já tinha seu lugar reservado nos estabelecimentos de força. Vimos também que inúmeras problemáticas, que a medicina de hoje, no mínimo, tomaria como ridículas, ocupavam um papel importante nos debates científicos de então: o caráter da bruxaria, a posição do Caído na ordem das coisas e sua influência nos insensatos, as profilaxias, os rituais a empreender, etc.

Com as teses de Newton e a difusão do pensamento de Galileu, uma série de correntes de pensamento viram-se subitamente alçadas a um primeiro plano na Europa. A Iatroquímica, por exemplo, que defendia um diagnóstico e uma terapêutica pautados no controle de substâncias.  Identificava-se a origem das doenças ainda por meio das velhas teorias dos humores, de origem galenico-hipocrática, quando não por outros tipos de substâncias, como ácidos e bases. Do mesmo modo, a iatromecânica, da qual trataremos mais a frente, tomava que as fibras, e não os humores, eram os principais elementos do corpo e que a alteração de seu estado de tensão, como seu afrouxamento conduziriam á aparição das doenças mentais[49].

Apesar disto, era ainda a teoria dos humores muito utilizada em medicina. Formulada por Hipócrates, defendia uma tese segundo a qual haveria quatro humores no corpo humano, correspondentes a sua parte líquida, sendo eles, o sangue, a bile amarela, a bile negra e o flegma. A saúde ou a doença dependeriam do correto equilíbrio entre os humores; por meio da noção de crise, o médico deveria intervir no momento certo, no oligokairos, para restabelecer o equilíbrio, por meio de duchas, purgativos, lavagens, sucções e sangrias — já tratamos de tudo isto.

As escolas vitalistas, especialmente a de Montpelier, que formou inclusive Pinel, pipocavam e, neste sentido, não havia absolutamente algo como uma medicina mental ou, mesmo, o conceito de doença mental. A medicina de então atuava sobre dois outros campos: o das doenças vaporosas e das doenças nervosas.

Para o contexto da Ilustração, o comportamento correto era aquele que se adaptava às normas vigentes; além do que, havia a noção do déspota esclarecido, aquele que capaz de formular leis protetoras do corpo social. As filosofias da época, malgrado suas belas teorias, tinham uma inaplicação evidente. Naquele momento mesmo o campo médico valia-se de analogias de cunho mecânico, sendo o intento do médico conhecer as causas naturais da doença, à moda newtoniana. O campo científico-filosófico cindia-se dentro de uma oposição de método: de um lado, o homem racional buscava estabelecer o quadro hierárquico e natural, sobremaneira influenciados pelas experiências de Newton; de outro, buscava-se também explicar a ordem da natureza, salientando-se a sensibilidade como porta para o mundo interno. Para ambos, tratava-se de ordenar os conhecimentos, de forma hierárquica e distributiva — é o século de Lineu e de seu more botanico. Colocar as coisas em relação à era o procedimento básico e que fez carreira na medicina, particularmente em relação ao campo das doenças nervosas, tendo como resultado último a constituição da nosologia.
           
Neste período pré-psiquiátrico, duas medicinas se opõem: a medicina dos vapores e a medicina dos nervos. A primeira era muito antiga e remetia a Galeno enquanto que a segunda desenvolve-se na pegada da obra de Newton.

Desde Galeno, o grande médico do Lácio ao lado de Celsus, supunha-se que fermentações uterinas levariam a histeria, e mesmo o nome histeria é útero em grego (hysteron). Já na Idade Média desenvolveu-se uma terapêutica pautada em inalações fétidas e fumigações vaginais com odores agradáveis, que intentavam devolver ao útero seu valor natural e dissipar o efeito de coisas em decomposição como sangue menstrual e sêmen. Mesmo críticos como J. Fernel (1497-1558) acreditavam que os vapores pútridos uterinos alteravam o funcionamento normal dos órgãos e que, uma vez, no cérebro causariam loucura e furor. Em 1702, J. Purcell relacionou as doenças vaporosas com questões passionais. Em 1756, P. Hunauld defendia que a doença vaporosa era acompanha de uma série de caprichos e de comportamento estranhos[50].
           
Se o século das Luzes acreditava que tudo poderia ser explicado pela razão, várias crenças inexplicadas ainda viviam, Por exemplo, de que a mulher é um homem incompleto ou que ela é destinada a maternidade, postulados de Galeno[51]. Na Inglaterra e na Escócia as damas da alta estirpe aos poucos buscaram médicos que, paulatinamente, passaram a se preocupar com elas. W. Smillie e W. Hunter desenvolveram técnicas ginecológicas, por exemplo, aperfeiçoando o fórceps. Não imperava o amor nos matrimônios, em beneficio da mariage de raison[52] e muitas técnicas Era por sua fertilidade que se avaliava a mulher, reduzida a vida privada. As mulheres ocupavam um papel especial e a medicina tinha sob elas um olhar agudo, particularmente a medicina dos vapores.

“‘Vocês são apenas o seu sexo’ dizia-se a elas [as mulheres]. E este sexo, acrescentam os médicos, é frágil, quase sempre doente e sempre indutor da doença. E este movimento muito antigo se acelerou no século XVIII, chegando a patologização da mulher: o corpo da mulher torna-se objeto médico por excelência” (FOUCAULT, 2007c, p. 234)
           
Toda uma problemática greco-latina esquecida acerca da reprodução do aleitamento, dos casamentos, da reprodução e da contracepção surge ou ressurge no século XVIII. A tradição médica reforçava questões como a de que era vetado às lactantes terem novos filhos, fazendo proliferar as amas de leite, o que, contudo conduzia a uma alta taxa de mortalidade infantil, pois as mulheres tinham filhos atrás de filhos. Há toda uma campanha do mundo médico visando encorajar o processo de ablactação que culmina na criação da mamadeira em 1786[53].

            A problemática dos vapores, e amiúde o das doenças nervosas, não pode, de forma alguma ser desligada deste processo, pois as afecções desta estirpe atingiriam sobremaneira as damas — eram moléstias uterinas, sobretudo. Seus sintomas — como coréias, irritabilidade, mania, sonolência—, no entanto, poderiam ir além do útero. O movimento dos vapores no corpo, com a suavidade e volatilidade que lhes é característica, tornava todos os órgãos como potencialmente infectáveis Se atacassem o cérebro, por exemplo, poderiam gerar furor; se restritos ao útero, não era raro que gerassem furor genital, com as condutas sexuais antissociais que produzia.

Há de se notar também que, este processo de colocação em cena, por meios médicos, de questões referentes não somente aos comportamentos sexuais stricto senso, mas, relativas a questões demográficas, de natalidade, sem dúvida faz parte do movimento de formação da biopolítica. Mas tarde integrados, ao menos em parte à psiquiatria, estas questões tornar-se-ão centrais na integração entre medicina mental, anátomopolítica e biopolítica, ou, para ser mais claro, atuarão como fios-condutores de uma ampla medicalização da vida, com a disciplinarização necessária e a forja de dispositivos de controle.
   
No século das Luzes “a sensibilidade feminina, seu poder cativante e sedutor é perigosa para o homem, mas também o é quando aparecem vapores, pois as expõem a burla social ou submete-as aos caprichos mais estranhos” (SAURI, 2005, p. 77).

Doutro lado desta medicina está a medicina ilustrada. Th. Willis (1621-73) tem especial importância, pois aplicou com extremo rigor o modelo galiléico-newtoniano à medicina. É tido como o inventor do “sistema nervoso” pois postulou que a medula, o cérebro e os nervos tinham relações sistêmico-funcionais. O funcionamento deste sistema dava-se graças à ação dos espiritus animales — formados pelo sangue arterial destilado no cérebro — sendo móveis e atuantes nas sensações e movimentos. A alma sensível acoplava-se à alma racional, transcendente e material. Embora estas teorias fossem antigas, Wilis buscava uma explicação iatrogênica. Malgrado similares aos vapores, os espíritos animais circulariam pelo corpo através dos nervos e, tal qual os vapores, podiam gerar insanidade.
             
            Willis explicava a afecção espasmódica que é a histeria como tendo origem em um processo onde os espíritos animais, sobremaneira concentrados, levariam à disrupção da ordem natural e social, redundando na sobreposição da alma sensitiva à alma racional — a parte da alam encarregada dos juízos.

            Embora galênica em seu cerne, a teoria de Willis trazia várias novidades. Concebia-se que havia um princípio unitário regulador do organismo (que a doença alterava): distinguia entre forma anatômica e função fisiológica e que uma mesma função pode ser realizada por distintos órgãos. Muitas destas noções já haviam sido postuladas por Harvey no estudo da circulação. Além disto, como para Willis a origem de inúmeras morbidades era nervosa, cujo fundo comum era alterações motoras e sensitivas, a histeria tornava-se uma das patologias, juntamente com a apoplexia, mania, delírios, etc.

            É neste marco, onde se opõe vapores e nervos, que se consideravam a maior parte das afecções pouco tempo mais tarde incluídas no rol das doenças mentais. Não tinham, pois, existência distinta das demais doenças em algo como uma medicina mental: sua racionalidade era a mesma das demais doenças e, somente depois, com os fundadores, é que esta medicina mental se formulará

Cullen inventa a nosologia e a neurose
            Nesta pré-história da psiquiatria há, ainda, outro episódio que merece menção: a invenção da nosologia e da neurose.

            Em 1777 o médico escocês William Cullen publicou First Lines in the Practice of Physics, onde propunha o conceito de neurose como agrupador de uma série de morbidades cujo fundo comum era serem prenaturais, resultado de alterações no sistema nervoso particularmente na motricidade e na sensibilidade, além da pirexia não fazer parte dos sintomas primários. A intenção fundamental de Cullen era circunscrever o cada vez maior campo das enfermidades nervosas, com sua riqueza sintomatológica e pouca precisão. Pouco tempo antes, Cullen havia publicado um livro chamado Nosologia, onde propugnava a utilização dos procedimentos dos naturalistas na ordenação das enfermidades nervosas. Amplamente utilizada nos países latinos, sobretudo graças a Pinel e Chiaruggi, o termo nosologia caiu no ostracismo na Grã-Bretanha[54].

            Se em fins do século XVII a medicina já havia catalogado inúmeras espécies de doenças, reconhecendo em muitas seu caráter local. Os trabalhos de Morgagni mostraram a existência de patologias gerais, sem, contudo, dar conta daquelas que em sendo gerais possuíam sintomas inagrupáveis e sem substrato orgânico apontável. Cullen buscou resolver estas questões: a neurose não dependeria de nenhuma alteração local, mas do sistema nervoso central, à sensibilidade e à motricidade. 

Muito embora a revolução inglesa tenha aplacado as disputas religiosas, nem por isso estas cessaram. Ainda no século XVII Shaftsbury condenava os cultos chamativos e o comportamento entusiasmático dos quakers. O comportamento entusiasmado era condenado, pois, naquele período de Ilustração, o homem ilustrado era aquele que aderia a ordem social dada: o comportamento entusiasta levava a fenômenos inusitados e, em último caso, reviam as convenções sociais. O entusiasmo levava ao desenvolvimento de uma imaginação passional e à excitação, que, segundo Malebranche, citado por Sauri, era contagiosa e ameaçava todo o grupo. O entusiasmo e seus efeitos constituíam o campo do preternatural, i. é, daquilo que está por si fora do habitat; com o termo preternatural, o médico Ilustrado designava em suma o insólito que, embora sua especificidade, não extravasavam os limites da natureza, o que comportava também as enfermidades dos nervos. Rompendo os limites rígidos oitocentistas entre público e privado, as crises histéricas ou as entusiásticas desconcertavam. A sua ininteligibilidade fez com que Cullen classificasse as doenças mentais nestes termos.

O empirismo de Hume e de Locke, ao salientar a origem sensível das idéias, fez alimentar a busca pela origem sensível das loucuras e da relação destas com o cérebro. No século XVIII as experiências de Haller, que estimulava os músculos com eletricidade ou amônia, levaram-no a formular a tese segundo a qual o sistema nervoso tinha uma propriedade especifica que era a sensibilidade, a qual compartilhava com os órgãos que se relacionavam com ele. Disto Fouquet concluía que todos os órgãos, à exceção das mucosas, que são imóveis (por terem como base os nervos) ou são sensíveis ou podem se mover. Cullen se apropriou tanto das idéias de Haller quando das de Fouquet, ligando a noção de sensibilidade com a de irritabilidade, ambos relacionando-se com os sentimentos.

Os trabalhos de Galileu e Newton fundaram um novo paradigma para tratar a questão do movimento. Desde Aristóteles, o movimento era uma categoria que dizia respeito a uma mudança substancial. Rompendo com este paradigma, o pensamento contemporâneo considerava o movimento no interior de um dualismo móvel-motor, colocando em pauta, pois, a questão da causa eficiente. Na medicina isto se refletiu na iatromecânica, a qual já explicamos brevemente, e nos estudos acerca das fibras musculares que, contraídas, levam ao movimento, que também fizemos referência. Embora a influência destas idéias sobre Cullen, elas já haviam caído em descrédito. Contudo, Cullen entendia as convulsões uterinas, histéricas, hipocondríacas e intestinais como resultados de alterações nervosas transtornantes da mobilidade corporal, seguindo, desde modo, as idéias de F. Hoffmann (1680-1740). Este havia abandonado a teoria dos espíritos animais em benefício da noção de um principio movens, o éter, que não só garantia o tônus das fibras, como dava coerência e resistência ao corpo humano. Hoffmann postulava a existência de um fluido nervoso, cuja circulação garantia a contração e dilatação da duramater[55]. A atonia[56] e hipertonia[57] das fibras levavam a estados patológicos, pois perturbavam a circulação do fluido nervoso.

Estes postulados permitiram que Cullen empreendesse o desenho nosológico mais preciso das enfermidades nervosas. Para elaborar uma nosologia, Cullen descrevia como primeiro passo listar as notas tomadas, passando-se, pois, a operar sobre abstrações, não mais sobre concretudes, que serão organizadas segundo um código especifico estabelecido pelo nosólogo, segundo seus referenciais (sintomas, momento da aparição, cursus morbis, etc.). Operando em um espaço ideal, o nosólogo do Iluminismo desconsiderava as interações com a realidade, deixando, pois, as causas e o sentido da enfermidade em segundo plano. Esta agrupação é que permite que se adote o more botanico. Ainda que insuficiente, estes procedimentos nosológicos serviram para dar alguma ordem ao confuso campo patológico de então. Em relação à neurose, Cullen registrou o que ela era concluindo o que deveria ser: a partir de um modelo abstrato, especificou as características da neurose, esquecendo, pois, as manifestações clinicas concretas da morbidez.

O modelo do more botânico, proposto por Lineu, prescrevia as classificações segundo semelhanças sintomatológicas. Aplicado na medicina, isto levou a um agrupamento sintomatológico, marcadamente empírico, das doenças, em agrupamentos abstratos cada vez mais amplos: espécies, gêneros, ordens e classes. Dando primazia ao Olhar, e buscando classificar o real em função deste, a nosologia intentava estabelecer um espaço abstrato onde o que é desse condições de se estabelecer o vir-a-ser da doença. Atuando no espaço ideal do quadro, onde características eram distribuídas idealmente, confundiam os classificadores seus princípios ordenadores com a própria realidade.

Se contribuíram efetivamente com a ordenação das afecções — e com a formação da psiquiatria, pois — por outro lado, os nosólogos constituíram um conhecimento abstrato, que deixava-se de se referir ao ordenado, referindo-se, antes à própria classificação — o que Pinel e mesmo Lineu buscaram combater preenchendo os espaços em branco do quadro nosológico com agrupamentos heurísticos advindos de similaridades superficiais.

Vejamos a nosologia culleriana: ele considerava que neuroses, tétanos, epilepsias e palpítações pertenciam a uma mesma agrupação, a dos espamos, sua semelhança sintomática. As doenças nervosas com alterações motoras e sensitivas foram agrupadas por ele em outra classe, chamada de neurose

Criando novas categorias, a nosologia necessitou de novos vocábulos para dar conta delas. Assim, com o termo neurose, Cullen pretendia dar realidade semântica e classificatória às enfermidades nervosas. Bem se sabe que, no século das Luzes, o nome adquiria importância nodal: ele garantia o bom entendimento e o exato ordenamento dos nomes era o exato ordenamento das coisas — não fora Adão que dera o Nome sob inspiração direta do Altíssimo? Dar o nome correto e classificar corretamente era necessário para dar a cada fenômeno seu lugar correto e exato na ordem das coisas e no ficheiro do cientista.

Para Cullen tratava-se, antes, não de uma neurose, mas, pois, de neuroses, uma classe de doenças que cobriria todo um campo mórbido heterogêneo: “afecções gerais do sistema nervoso, não acompanhadas de febre e atingindo de forma privilegiada a sensibilidade e o movimento” (PEREIRA, 2005, p. 130). As neuroses englobavam, assim, os comas (como a apoplexia), as adinamias (enfraquecimento dos movimentos nas funções vitais), as afecções espamódicas sem febre (tétano, epilepsia, asma, histeria) e as vesânias (mania, i. é, loucura; melancolia).

Embora Cullen tenha influenciado muitos, particularmente Charcot e Ballet[58], aos poucos este sentido que Cullen dava à neurose perdeu força e já Pinel as definia como doenças nervosas sem base orgânica O sentido contemporâneo, contudo, somente advirá no final do século seguinte e começo do XX com Janet, Breuer e Freud, sobretudo: morbidez mental que mantém o eu intacto.


7.1. Rumo à biopolítica: as três medicinas sociais da Ilustração e a tecnologia do hospital

No final do século XVIII, nas articulações que armavam o século da burguesia, surgiam novos projetos, instituições e linhas de demarcação que somente hoje, com o distanciamento necessário, é possível ver demarcando-se no passado.

Dentre estes novos caminhos que se abriam, cumpre que ressaltemos, neste curto ensaio, a emergência do que se convencionou chamar de medicina social, que ocupa um papel duplo, sem dúvida, pois se pauta em uma nova posição do hospital, que se tornava médico em fins do século XVIII — portanto, em uma anatomopolítica—, e, ao mesmo tempo, com as questões que coloca em relação às populações e ao seu modo de vida, é um dos carros-chefe da biopolítica. De acordo com Foucault, os séculos XVIII e XIX desenvolveram três versões da medicina social: a medicina de estado, a medicina urbana e a medicina do trabalho. Vejamos cada uma delas:

A medicina de estado desenvolveu-se desenvolvida no que viria a ser a Alemanha, na primeira metade do século XVIII juntamente ao desenvolvimento da noção de Staadtswissenschaft, ciência do estado conhecimento dos recursos e da população de um espaço e do funcionamento do aparelho político, bem como dos procedimentos por meio dos quais o estado garante seu funcionamento. Lembremos a situação destes territórios no século XVIII, que, muito fragmentados em pequenos reinos e cidades-livres, levava ao imperativo de que os pequenos estados buscassem conhecer-se, saber como funcionavam. Tradicionalistas e estagnados economicamente, à burguesia germânica restou aguardar até o século XIX para fundar seu estado-nação, tendo que apoiar-se, pois, em um bem-organizada e forte burocracia estatal . Por isso o primeiro estado moderno europeu é a Prússia, malgrado ser uma das regiões mais pobres, menos desenvolvidas e mais conflituosas da Europa.

Se desde o século XVI há uma preocupação com a saúde das populações européias, trata-se de uma preocupação mercantilista: aumentar a produção da população para fazer subir o fluxo da moeda e, assim, com o influxo de riquezas, aumentar a potência do estado; i. é, fazer crescer a população para fazer crescer a riqueza do estado. A Alemanha tem outro desenvolvimento: ali se desenvolveu uma Medizinichepolizei, “política médica”, termo cunhado em 1764 por W. T. Ray. Tratava-se de contabilizar os fenômenos mórbidos da população, o que foi seguido pela normalização da prática e dos conteúdos ensinados nas escolas de medicina; organizou-se toda uma administração da prática e do saber médico, bem como das relações entre médicos e população, além de tornarem-se os próprios médicos administradores da saúde.

Surgida antes mesmo da medicina cientifica, o objetivo da Medizinichepolizei não é o corpo enquanto força de trabalho, mas enquanto força de estado, pois a população é corpo. Portanto, uma medicina que já nasce estatizada e que servirá de modelo para o desenvolvimento de toda medicina social nos séculos XVII-XIX.

A segunda grande medicina social que se estabelece na Europa é a urbana, surgida na França, século XVIII. Até este século, uma cidade francesa era um emaranhado de territórios governados por poderes civis, eclesiásticos e monárquicos distintos. Em fins do século, urgia que a cidade se tornasse unitária: sendo centro comercial e produtivo, a cidade não poderia perpetuar-se fragmentada por inúmeras jurisdições. A emergência do mundo urbano também simplificava as lutas políticas, antes dispersas entre disputas entre corporações, ofícios, etc., e tipicamente campesinas; agora, mais e mais caminhavam para se tornar lutas entre ricos e pobres e, com isto, a necessidade de controlar as populações urbanas.   

Juntamente ao crescimento da cidade, emerge um pânico político-sanitário: medo do crescimento demográfico, das epidemias, dos esgotos, dos cemitérios, etc. Existiam, então, dois grandes esquemas de organização médica das cidades: o da lepra[59] (esquema religioso de purificação: segregação do doente do espaço urbano em espaços fora da cidade, como leprosários e manicômios) e o da peste[60] (esquema militar de revista: individualização dos habitantes, vigilância inspeção contínua com registro dos fatos). O modelo da peste, modelo da quarentena, servirá de base ao desenvolvimento da medicina urbana e da higiene pública.

Três objetivos desta medicina das cidades: 1. “analisar os lugares de acúmulo e amontoamento de tudo que, no espaço urbano, pode provocar doenças, lugares de formação e difusão de fenômenos epidêmicos ou endêmicos” (FOUCAULT, 2007c, p. 89); reestruturam-se os cemitérios e os matadouros, afastando-os da cidade rumo às periferias. 2. Controle de circulação das coisas, sobretudo água e o ar: no século XVIII tanto o ar quanto a água eram considerados elementos patógenos graças à noção de miasma, o ar pútrido que cercaria os doentes e os mortos; o ar deve circular, donde uma série de prescrições de reordenação do espaço urbano; a água era vista como dissipadora do miasma: ela o levaria para afora do espaço urbano, cumprindo que houvesse canais. 3. Por fim, o espaço urbano deve ser organizado de modo a garantir a distribuição dos bens necessários á vida comum: fontes de água, esgoto, etc.

A medicalização do espaço urbano contribui apara que a medicina passasse a integrar o discurso cientifico ainda no mesmo século XVIII. Enquanto medicina das condições de existência, do meio, passou-se progressivamente para uma análise dos organismos que compõe o meio, donde se desenvolverá a noção de salubridade — base da higiene pública e da medicina sanitária.

Por fim, a medicina social inglesa, medicina do trabalho, não pode ser entendidade se não for situada no contexto que a nutre: o da revolução industrial e do inchaço urbano. Até o segundo terço do século XIX, os pobres não eram enxergados como risco sanitário na medida em que as mínimas tarefas de limpeza e administração sanitária do espaço urbano eram feitas por eles: recolher dejetos, transportar água, etc.  Contudo, o crescimento populacional e as perspectivas sediciosas que a Revolução Francesa abrem para os pobres fazem mudar este cenário; além do que, uma grande epidemia de cólera tem lugar em Paris em 1832, alterando o espaço urbano em bairros ricos e pobres, dando ensejo para o que será a grande reforma urbana de Hoffman na década de 1870.

A partir da lei dos pobres, a medicina social inglesa tomará corpo com o desenvolvimento de uma assistência controlada que intentava agir tanto sobre a saúde e a pobreza dos pobres, quanto proteger os ricos de fenômenos epidêmicos. Este sistema será completado pelos de health service (vacinação obrigatória, registro de epidemias atuais ou possíveis, obrigatoriedade em declarar-se doente quando se estiver, etc.), que são administrados pelos health officers — 1875. Se a lei dos pobres dirigia-se somente a estes, esta social medicine aplica-se sobre toda a população inglesa. Esta medicalização suscitou uma série de resistências urbanas, muitas das quais assumiram formas religiosas que se mantém hodiernas.

A social medicine objetivava controlar o corpo das classes baixas para torná-las mais aptas ao trabalho e ao mesmo tempo reduzir-lhes a vontade sediciosa. Este sistema inglês ligava assistência médica aos pobres, controle da saúde da força de trabalho e esquadrinhamento médico da sociedade, e fazia a junção entre uma medicina administrativa, uma medicina assistencial e uma medicina privada. Justamente pela sua riqueza operacional e sistemática, a medicina inglesa foi à única a triunfar dentre estas três medicinas sociais.

O hospital
No mesmo turbilhão no qual estas três medicinas se encontram, a medicina terminaria por formular a sua principal tecnologia política: o hospital, entendido como instrumento e suporte da terapia.

O hospital que funciona na Europa desde a Idade Média não era uma instituição médica e de prática médica — não era uma instituição hospitalar, no sentido que damos hoje. Já vimos que até o século XVIII, o hospital é uma instituição de assistência aos pobres e não aos doentes, mas é também uma instituição de exclusão; é uma instituição de caridade destinada a garantir a salvação da alma tanto do pobre quanto do pessoal que nele trabalha. A prática médica, por seu turno, não tinha na instituição hospitalar seu lugar de formação em si e, tampouco, a prática médica supunha a intervenção contínua, própria a prática hospitalar; a intervenção médica dava-s em torno da “crise”: momento em que saúde e doença se enfrentam no doente. O médico deveria observar os sinais, elaborar o prognóstico, buscar ajudar a saúde na luta contra a doença, ou seja, tratava-se de uma relação absolutamente individual entre doente e médico. Em suma, as “séries hospital e medicina permaneceram, portanto, independentes, até o final do século XVIII” ((FOUCAULT, 2007c, p. 103).

Ao longo do século XVIII inúmeros inquéritos sobre o hospital se desenvolvem, com objetivos distintos, mas dentre os quais um se destaca: estabelecer um programa de reforma e reconstrução dos hospitais, pois se considerava que nenhuma teoria esgotava o tema e que somente um exame empírico daria conta da questão — é o hospital deixando de ser simples fato arquitetônico e se tornando fato hospitalar. Não se tratava da descrição de um monumento, muito ao contrário, interroga-se sobre o número de doentes, a relação doentes-leitos, a área do hospital, a estrutura das salas, as taxas de cura e de mortalidade, as relações entre fenômenos patológicos e organização espacial, o percurso dos materiais médico-hospitalares, a taxa de sucesso das operações, etc.

Este processo duplo de medicalização do hospital e de hospitalização da medicina deu-se, primeiramente, com a anulação dos efeitos nocivos, patológicos, que o hospital acarretava. O modelo de partida da reorganização hospitalar são os hospitais marítimos; por meio deles, fazia-se tráfico de mercadoria entre a metrópole e a colônias, o que suscitou o protesto de autoridades alfandegárias, terminando por gerar um regulamento de controle desses hospitais. Os hospitais marítimos e militares tornam-se focos de reforma porque a invenção do fuzil (final do século XVII) encarecera o custo de formação de um soldado, de modo que eles agora não eram tão facilmente obtidos ou dispensáveis; devia-se evitar a deserção dos soldados, devia-se diminuir sua mortalidade por doenças no exército: com alto custo para sua formação, que morressem na guerra, ao menos.

 A reorganização dos hospitais marítimos e militares foi feita a partir das tecnologias políticas disciplinares. Se os mecanismos disciplinares são antigos no Ocidente (mosteiros, empresas escravagistas, empresas coloniais, legião romana, etc.[61]), os séculos XVII e XVIII os aperfeiçoaram enquanto mecanismos de gestão de multiplicidades de homens visando majorar o efeito de seu trabalho. Uma série de coisas emerge:

1. O exército era, até o século XVIII, um amontoado de homens que a invenção do fuzil tratou de organizar espacialmente visando obter o máximo de efeito nos soldado; do mesmo modo nas escolas os alunos amontoavam-se e eram atendidos individualmente, pois o atendimento coletivo pressupõe distribuição espacial, e a “disciplina é, antes de tudo, análise do espaço. É a individualização pelo espaço, a inserção dos corpos em um espaço individualizado, classificatório, combinatório” ((FOUCAULT, 2007c, p. 106).

2. o controle disciplinar é sobre o desenvolvimento da ação, não sobre seus resultados; na oficina aparece a figura do contra-mestre, destinado a observar como trabalho é feito, como pode ser melhorado, bem como o resultado final; no exército surge o sub-oficial, destinado a dirigir os exercícios, as manobras e sua decomposição.

3. a disciplina implica uma vigilância continua dos individuo; no exército a hierarquia somada as revistas, paradas e inspeções destinam-se a tal.

4. a disciplina põe em prática um registro contínuo das ações individuais e uma transmissão vertical desses registros de modo que nada escape do saber e o poder possa agir sobre o detalhe da ação individual; “é o poder de individualização que tem o exame como instrumento fundamental. O exame é a vigilância permanente, classificatória, que permite distribuir os individuo, julgá-los, medi-los, localizá-los e, por conseguinte, utilizá-los ao máximo” ((FOUCAULT, 2007c, p. 107).

O hospital se medicaliza porque adota mecanismos disciplinares que serão centralizados no médico; a medicina passava por mudanças importantes nesta mesma época. O grande modelo de inteligibilidade da doença no século XVIII é a botânica de Lineu com seu método do more botanico: a doença deve ser entendida como um fenômeno natural, como uma espécie com características observáveis e desenvolvimento; o individuo adoece quando exposto a determinadas ações do meio; as ações da medicina devem se dirigir mais ao meio e menos à doença: trata-se de uma medicina do inquérito em substituição a uma medicina da crise. Disciplinarização do hospital e medicina do meio marcam a emergência do hospital como instrumento terapêutico.

Este hospital-médico tem características próprias muito bem marcadas. Pensado com instrumento terapêutico, o local de sua construção atende deve ser pensado nestes termos. Se localizado na cidade deve ocupar um espaço tal que a difusão dos miasmas, da água poluída, etc., não contamine o entorno. Do mesmo modo, organização do espaço interno do hospital é concebida de forma a que a própria arquitetura, ou antes, a própria disposição dos corpos no interior do hospital seja, ela mesma, meio de cura: o leito deve ser individualizado de acordo com o doente, a doença e seu grau de evolução.

Ocorrem mudanças no sistema de poder no interior do hospital, pois, até o século XVIII, o médico estava subordinado ao pessoal religioso — que administrava o hospital e cuidava dos doentes —, sendo sua atuação secundária em relação aqueles. O hospital-médico, o hospital que deve curar, torna o médico responsável pela organização hospitalar e pela administração econômica. O médico torna-se presente no hospital, pois o ritmo de visitas passa a aumentar a partir do século XVIII, de modo que em 1770, deve um médico residir em cada hospital: é o surgimento do grande médico como médico de hospital, em substituição ao médico privado, até então o grande médico; é o surgimento da medicina dos residentes e do hospital com continuidade do corpo do médico.

No cerne deste processo de disciplinarização do espaço hospitalar, organiza-se um sistema de registro permanente no hospital: identificação dos doentes, registro de entradas e saídas, diagnóstico dos doentes que entram e resultados quando saem, registro de retiradas dos medicamentos na farmácia. O hospital torna-se local de registro, acúmulo e formação de saber e se formulam exigências de que o corpo médico confronte seus resultados com suas teorias. Assim, entre 1789-90 o hospital torna-se obrigatório para a formação de um médico, sobretudo na França.

Enfim, o individuo passa a ser o alvo da intervenção médica, devendo ser inscrito em um processo que vai do diagnóstico, passando pela terapêutica e cujo ápice, cujo resultado deve ser a cura, o restabelecimento da saúde do enfermo.

 “O individuo e a população são dados simultaneamente como objetos de saber e alvos de intervenção da medicina, graça a tecnologia hospitalar. A redistribuição dessas duas medicinas será um fenômeno próprio do século XIX. A medicina que se forma no século XVIII é tanto uma medicina do individuo quanto da população” ((FOUCAULT, 2007c, p. 111)

7.2. Pinel, francês
           
Apontamos como a noção de doença mental é recente; na Idade Clássica, a loucura era mais uma dentre as doenças, integrada na racionalidade da medicina geral da época. São os psiquiatras de fins do século XVIII que inventarão este conceito. O regime de internamento dos loucos pautava-se em uma exclusão de cunho moral e social, nunca médico, e que se fazia acompanhar de uma demonização da loucura. O regime de internamento era brutal: os lugares eram insalubres e as condições precárias: o louco era um monstro, uma aberração incurável ligada ao que há de mais pecaminoso na terra, somente lhe restando esperar a expiação da morte.

Pinel teria descido as escadas da masmorra do Hôpital de Bicêtre e libertado os loucos. Se este ato ocorreu ou não, pouco nos importa[62]: Pinel é considerado um dos fundadores da psiquiatria, ao lado de Tuke, Chiaruggi, Wagnitz e Riel. Em fato trata-se de um abuso: o nome psiquiatria é de origem alemã e, ao longo dos séculos XIX, três psiquiatrias com procedimentos, conceitos e operacionalidades distintas disputarão este campo novo: a francesa, a anglo-saxã e a germânica. Por exemplo, os franceses diziam médécin mentale, conquanto os germânicos psychiatrie.

            Ao soltar os loucos de seus grilhões Pinel tratou de forjar outros: estava a aberta a era da medicalização do comportamento. Nem Pinel nem nenhum destes psiquiatras rompeu com o internamento como ele se dava, mas fizeram com que o internamento girasse em torno do louco. No asilo-modelo de York, criado sob os auspícios dos quakers ingleses, Tuke montou um aparato de quase-família, visando impor ao louco uma vida moral que infantiliza e culpabiliza o louco, com castigos, privações e humilhações de toda ordem. Se Pinel considerava que "os alienados, longe de serem culpados a quem se deve punir, são doentes cujo doloroso estado merece toda a consideração devida à humanidade que sofre e para quem se deve buscar pelos meios mais simples restabelecer a razão desviada” (apud PEREIRA, p. 114), em Bicêtre impôs uma lei de ferro.

            O que há de novo em Pinel é a tentativa de estudar sistemática e metodicamente a loucura. Influenciado pela botânica e zoologia, o método de Pinel calcava-se na observação dos pacientes, seguida pela classificação dos sintomas. Pinel considerava que a alienação tinha um substrato essencialmente mental, embora mantivesse relações dinâmicas com o organismo do alienado, quer dizer, ele postula o caráter subjetivo da alienação e sabe distinguir o paciente de seus sintomas, além de conceber uma terapêutica para a loucura e de pensar o asilo enquanto instituição voltada para a cura.

            Sob o pomposo nome de terapêutica moral, Pinel, como de resto toda a psiquiatria emergente, vai se apropriar das técnicas médicas e disciplinares já utilizadas — fundadas em uma fisiologia própria da Idade Clássica — para colocá-las em funcionamento em um regime estritamente disciplinar: duchas, cadeiras giratórias (para fazer movimentar os espíritos animais), gaiolas, etc., que tinham uma conotação médica passam a ser utilizadas como elemento punitivos em um regime moral dentro de um espaço de exclusão. Não medicalização do asilo, mas utilização de técnicas médicas já desatualizadas em um regime moral.

            Lembremos que foi a revolução francesa que fez mudar este quadro. Ora, mera coincidência, ou será que a revolução que ergue a burguesia ao topo do planeta, já não havia começado, em sussurros, a lentamente modificar as formas de a apropriação do corpo? Somente outra pesquisa nos poderá responder.



























8. Conclusões

            Ao longo do texto, vimos, primeiramente, algumas questões de métodos, notadamente, os problemas envoltos na genealogia. Vimos a relação entre Foucault e os epistemológos franceses, sobretudo Canguilhem, e como Foucault herda deles certas concepções epistemológicas. Expusemos os métodos arqueológico e genealógico do filósofo francês, mostrando os débitos deste em relação a Nietzsche, bem como defendemos que a genealogia está ancorada em uma ontologia política do saber, estofo de sua epistemologia política

            Vimos, depois, como Foucault ensaia uma genealogia da psiquiatria, em diversos textos, envolvendo a determinação dos sujeitos criados, os loucos e os médicos, as relações entre o saber psiquiátrico e poder político, na figura do médico que comanda esta instituição de controle que é o hospital. Vimos também como o internamento precede a medicalização da loucura, e como, juntamente com o louco, mendigos, bruxas e sodomitas, dentre outros, foram também capturados na máquina asilar.

            Ao mesmo tempo, passamos em revista, ainda que brevemente, a história da psiquiatria, expondo como os psiquiatras fazem uma história tradicional de sua disciplina, que Foucault e Canguilhem, ao que tudo indica, reprovariam. Introduzimos alguns elementos da psiquiatria contemporânea, nos esforçando para mostrar como os psiquiatras operam, se não atualmente, ao menos no último período.

            E o que concluir? Devemos jogar fora a psiquiatria e buscar outras alternativas para trabalhar com os loucos? O diagnóstico que Foucault e a tradição da antipsiquiatria faz da medicina mental é, no mínimo, alarmante, colocando em xeque, mesmo, suas bases epistemológicas mais profundas. Ao mesmo tempo, conforme parcialmente discutido, a psiquiatria contemporânea tornou-se mais sutil, e os mecanismos de sua atuação se estilhaçaram. Pode-se dizer que Foucault mira uma sociedade disciplinar, quando atualmente vivemos em uma sociedade de controle (DELEUZE, 1992).

            Se a psiquiatria que Foucault mirou não existe mais, tendo ocorrido verdadeira ruptura, tão a gosto de parte da filosofia francesa mais contemporânea, a presença de manicômios ainda assombra muitos lugares, e é o destino de milhares de pessoas no Brasil, em forte sofrimento não só psíquico, como social. As críticas dos antipsiquiatras, Foucault incluso, certamente contribuíram com essa mutação epistemológica e terapêutica da psiquiatria, posto que a velha psiquiatria policial parece incompatível com sociedades modernas e democráticas.

            Dizemos parece, posto que o perigo dos manicômios é constante. Em tempos de retrocesso em muitas áreas, com setores abandonado de mala e cuia as conquistas do iluminismo e dos direitos humanos, a maquinaria asilar pode bem retornar, com os usos políticos que dela foram feitos, como se viu. É necessário manter vigilância contínua sobre este ponto, como em outros. Afinal, se, como vimos, a história dos positivistas do século XIX não existe, periga que velhos fantasmas voltem a nos assombrar.























Bibliografia


ALEXANDER, F.G., SELESNICK, S.T.; História da Psiquiatria, São Paulo: IBRASA, 1966
ARAÚJO, D. N.; Pinel e Tuke, CientiFico, ano II, v. I, agosto-dezembro 2002
BACHELARD, G.; O novo espírito científico, RJ: Tempo Universitário, 2000, 3ª ed.
BAYLE, A.-L.; Pesquisas sobre doenças mentais, Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., São Paulo, v. 12, n. 4, p. 752-758, dezembro 2009
BERLINCK, M.T.; O que é Psicopatologia Fundamental, SP: Escuta, 2000
BINSWANGER, L.; Sobre a psicoterapia, Rev. Latinoam. Psicop. Fund. IV, 1, 143-166
BOCK, A. M. et. al; Psicologias – introdução ao estudo da psicologia, SP: Saraiva, 1999, 13ª ed.
BRUNI, J. C.; Foucault: o silêncio dos sujeitos, SP: Tempo social; Rev. Sociol., USP, n.1, v.1, 1. sem. 1989, p. 199-207
CAMPAILLA, G.; Manual de psiquiatria, SP: Martins Fontes, 1982
CANGUILHEM, G.: Ideologia e racionalidade nas ciências da vida, Portugal: 70, 1977
CAPONI, S.: Para una genealogía de la anormalidad: la teoría de la degeneración de Morel, Scientiæ, Studia, São Paulo, v. 7, n. 3, p. 425-45, 2009
CECHINI, P.; Carta aos "dottores", Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., VIII, 1, 150-156
CHARCOT, J.-M. ; A grande histeria ou hístero-epilepsia, Rev. Latinoam. Psicop. Fund., II, 3, 166-172
CROCE, D., CROCE JÚNIOR, D.; Vocabulário Médico-Forense, SP: Saraiva, 1994
CUNHA, M.C.P.; O espelho do mundo, RJ: Paz e Terra, 1988, 2ª ed.
DELEUZE, G.; Post-scriptum sobre as sociedades de controle in Conversações: 1972-1990, RJ: Ed. 34, 1992, p. 219-226, disponível em http://www.somaterapia.com.br/wp/wp-content/uploads/2013/05/Deleuze-Post-scriptum-sobre-sociedades-de-controle.pdf, acessado em 11/06/2019
ENGUIX, S. C. et al; Manual del residente de psiquiatria, s/l: Smith Beechan, s/d, disponível em www.sepsiquiatria.org/sepsiquiatria/manual/directr.htm, acessado em novembro de 2010
FÉDIDA, P.; De uma psicopatologia geral a uma psicopatologia fundamental. Nota sobre a noção de paradigma, Rev. Latinoam. de Psicopatologia Fundamental v. 1, n. 3, setembro de 1998
FERNANDES, M.I.A., SCARCELLI, I.R., COSTA, E.S. ; Fim de século ; ainda manicômios ?, SP : IP-USP, 1999
FERREIRA, A.P., NETO, V.M. O ensino da clínica psicopatológica: o caso da sessão clínica, Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., São Paulo, v. 12, n. 3, p. 481-496, setembro 2009
FOUCAULT, M; A arqueologia do saber, RJ: Forense, 2007a, 7ª ed.
______________; A ordem do Discurso, SP: Loyola, 2005a, 12 ed.
______________; A verdade e as formas jurídicas, RJ: NAU, 2005b, 3ª ed.
______________; Doença Mental e Psicologia, RJ: Tempo Brasileiro, 1975
______________; É preciso defender a sociedade (1975-1976), Martins Fontes, 1999
______________; Eu, Pièrre Rivière, que degolei minha mãe, meu irmão e minha irmã, 1973
______________;Histoire de la folie à l'âge classique, France: Gallimard, 1972
______________; História da Sexualidade I: a vontade de saber, RJ: Graal, 2007b, 18ª ed.
______________; Microfísica do poder, RJ: Graal, 2007c, 24ª ed.
______________; Nascimento da biopolítica, SP: Martins Fontes, 2008
______________; Nascimento da clínica, RJ: Forense, 2008, 6ªed
______________; Os anormais, SP: Martins Fontes, 2001
______________; O poder psiquiátrico, SP: Martins Fontes, 2006
______________; O que é o iluminismo?, disponível em www.unb.br/fe
­­­_______________; Resumo dos cursos do Collège de France: 1970 -1982, RJ: Jorge Zahar, 1997
______________; Vigiar e Punir, RJ: Vozes, 2006, 31ª ed.
FRAYZE-PEREIRA, J. A.; O que é loucura, SP: Brasiliense, 1994, 10ª ed.
FREUD, S.; A história do movimento psicanalítico, SP: Abril Cultural, 1978
__________; Cinco Lições de Psicanálise, SP: Abril Cultural, 1978
GRAEFF, F.G.; Neurociência e Psiquiatria, Psic. Clin., Rj, v.18, n.1, p. 27 – 33, 2006
GRANDINO, A., NOGUEIRA, D.; Conceito de psiquiatria, SP: Ática, 1985
JASPERS, K.; A abordagem fenomenológica em psicopatologia, Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., VIII, 4, 769-787
LANTERI-LAURA, G.; Leitura das perversões: história de sua apropriação médica, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1994
MACHADO, R.; Ciência e saber: a trajetória da arqueologia de Michel Foucault, RJ: Graal, 1988, 2ª ed.
MADALENA, J.C.; História da Esquizofrenia, RJ : Imago, 1982
MINKOWSKY, E.; A noção de perda de contato vital com a realidade e suas aplicações em psicopatologia, Rev. Latinoam. Psicop. Fund. VII, 2, 130-146
________________; Breves reflexões a respeito do sofrimento (aspecto prático da existência), Rev. Latinoam. Psicop. Fund. III, 4, 156-164
NIETZSCHE, F.; Genealogia da moral: uma polêmica, SP: Companhia das Letras, 2007
PAIM, I.; Curso de psicopatologia, SP: Grijalbo, 1977, 3ª ed.
PAOLIELLO, G.; O problema do diagnóstico em psicopatologia, Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., IV, 1, 86-93
PAPAKOSTAS, I. et al; Eletroconvulsoterapia: critérios e recomendações da Associação Mundial de Psiquiatria, Rev. Psiq. Clín. 33 (5); 262-267, 2006
PENNA, A.G.; Introdução à epistemologia, RJ: Imago, 2000
PEREIRA, L.M.F.; Franco da Rocha e a teoria da degeneração, Rev. Latinoam. Psicop. Fund. VI, 3, 154-163
PEREIRA, M.E.C.; A “loucura circular” de Falret e as origens do conceito de “psicose maníaco-depressiva, Rev. Latinoam. Psicop. Fund. V, 4, 125-129
______________; A perda do contato vital com a realidade na esquizofrenia, segundo Eugène Minkowski, Rev. Latinoam. Psicop. Fund. VII, 2, 125-129
______________; Bayle e a a descrição da aracnoidite crônica na paralisia geral: sobre as origens da psiquiatria biológica na França, Rev. Latinoam. de psicopatologia Fundamental, SP, vol. 12,  nº 4, pgs. 747-751
______________; Bleuler e a invenção da esquizofrenia, Rev. Latinoam. Psicop. Fund., III, 1, 158-163
________________; C’est toujours la même chose: Charcot e a descrição do Grande Ataque Histérico, Rev. Latinoam. Psicop. Fund., II, 3, 159-165
_______________; Cullen e a introdução do termo “neurose” na medicina, Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., São Paulo, v. 13, n. 1, p. 128-134, março 2010
_______________; Formulando uma Psicopatologia Fundamental, Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental v. 1, n. 1, março de 1998
_______________; Kraepelin e a criação do conceito de “Demência precoce”, Rev. Latinoam. Psicop. Fund. IV, 4, 126-129
_______________; Kraepelin e a questão da manifestação clínica das doenças mentais, Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., São Paulo, v. 12, n. 1, p. 161-166, março 2009
_______________; Krafft-Ebing, a Psychopathia Sexualis e a criação da noção médica de sadismo, Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., São Paulo, v. 12, n. 2, p. 379-386, junho 2009
_________________; Minkowski ou a psicopatologia como psicologia do pathos humano, Rev. Latinoam. Psicop. Fund. III, 4, 153-155
_________________; Morel e a questão da degenerescência, Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., São Paulo, v. 11, n. 3, p. 490-496, setembro 2008
_________________; Pierre Janet e os atos psíquicos inconscientes revelados pelo automatismo psíquico das histéricas, Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., São Paulo, v. 11, n. 2, p. 301-309, junho 2008
_______________; Pinel - a mania, o tratamento moral e os inícios da psiquiatria contemporânea, Rev. Latinoam. Psicop. Fund. VII, 3, 113-116, setembro 2004
_______________; Sobre os fundamentos da psicoterapia de base analítico-existencial, segundo Ludwig Binswanger, Rev. Latinoam. Psicop. Fund. IV, 1, 137-142
RODRIGUES, A.C.T.; Karl Jaspers e a abordagem fenomenológica em psicopatologia, Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., VIII, 4, 754-768
ROUDINESCO, E.; Filósofos na tormenta – Canguilhem, Sartre, Foucault, Althusser, Deleuze e Derrida, RJ-RJ, Zahar, 2007
SABBATINI, R.M.E., A História da Terapia Por Choque em Psiquiatria, UNICAMP
SAURI, J.J.; A construção do conceito de neurose (I). Os vapores e os nervos, Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., VIII, 1, 73-85
______; A construção do conceito de neurose (II). Nosologia e neurose, Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., VIII, 2, 289-302
VAN DEN BERG, J.H.; O que é psicoterapia?, São Paulo: Mestre Jou, 1979





[1] Cf FERNANDES, M.I.A., SCARCELLI, I.R., COSTA, E.S. ; Fim de século ; ainda manicômios ?, SP : IP-USP, 1999

[2]BAYLE, A. L., Pesquisas sobre doenças mentais, Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., São Paulo, v. 12, n. 4, p. 752-758, dezembro 2009; PEREIRA, M.E.C., Bayle e a descrição da aracnoidite crônica na paralisia geral: sobre as origens da psiquiatria biológica na França, Rev. Lat. Americana de Psic. Fund., SP, v. 12, nº4, p. 747-71;
[3]GRAEFF, F.G.; Neurociência e Psiquiatria, Psic. Clin., Rj, v.18, n.1, p. 27 – 33, 2006

[4] Ibidem nota 4
[5] CUNHA, M.C.P.; 1988, p. 100
[6] Ibidem.
[7] Cf. MADALENA, J.C.; História da Esquizofrenia, RJ : Imago, 1982
[8] Cf. SABBATINI, R.M.E., História dos tratamentos de choque, Campinas: UNICAMP, 1997
[9] “Falta de oxigênio no sangue. Anoxemia” (CROCE, D., CROCE JÚNIOR, D., 1994, p. 17)
[10] Terapia pelo esfriamento do corpo. Cf. SABBATINI, R.M.E, 1997, p. 7
[11] CECHINI, P.; Carta aos "dottores", Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., VIII, 1, 150-156
[12] (...) “as injeções, por portugueses que nunca jamais em tempo algum viram tubos de injeções. O Dr. Franco da Rocha não vem ás enfermarias, está entregue o hospício sobre a direção de boçais portugueses. A mim me mandaram dormir na rotunda, lugar este que nem as cisternas da capital fedem tanto a urina quanto este quarto” (CUNHA, M.C.P.; 1988, p. 98) e, também, como Lima Barreto descreve uma notícia de jornal, onde havia se publicado um relato de um ex-interno do Juquery: (...)“eu, que ai achei-me internado de março a setembro de 1903, presenciei, por mais de uma vez, de que modo certos portugueses grosseiros, boçais, propiciavam os medicamentos aos infelizes que, receosos de serem envenenado, não queriam engolir os ditos remédios. Derrubavam o paciente, punham um pé (uma pata) sobre o pescoço do mesmo, apertavam-lhe o nariz, etc. Naquele tempo (e quiça agora) a maioria, na vossa presença [enquanto jornalistas e pessoas externas] e na de outros médicos, a maioria daqueles empregados mercenários mostrava-se humilde, comedida; quando se achavam a sós com os infelizes reclusos, que triste ...reverso da medalha” (apud CUNHA, M.C.P.; 1988, p. 91-2)
[13] DAUD JR, N.; Neoliberalismo, luta antimanicomial e pós-neoliberalismo in: FERNANDES, M.I.A., SCARCELLI, I.R., COSTA, E.S. ; Fim de século ; ainda manicômios ?, SP : IP-USP, 1999
[14]SALLEH, M.A.; PAPAKOSTAS, I.; ZERVAS, I.; CHRISTODOULOU, G.; Eletroconvulsoterapia: critérios e recomendações da Associação mundial de Psiquiatria, Rev. Psiq. Clin. 33 (5), p. 262-267, 2006
[15] WEISSMANN, Karl; O hipnotismo: psicologia, técnica, aplicação, RJ-RJ, Prado, 1958
[16] FREUD, S.; SP: A história do movimento psicanalítico, SP: Abril Cultural, 1978

[17] Especialmente depois dos trabalhos de Wundt, mestre de Krafft-Ebing. Wundt é considerado o fundador da medicina experimental i. é, da psicologia considerada enquanto ciência, distinguindo-se, pois, da filosofia. Cf. BOCK, A. M. et. al; Psicologias – introdução ao estudo da psicologia, SP: Saraiva, 1999, 13ª ed.

[18] PAIM, I.; Curso de psicopatologia, SP: Grijalbo, 1977, 3ª Ed; PAOLIELLO, G., O problema do diagnóstico em psicopatologia, Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., IV, 1, 86-93; FÉDIDA, P.; De uma psicopatologia geral a uma psicopatologia fundamental. Nota sobre a noção de paradigma, Rev. Latinoam. de Psicopatologia Fundamental v. 1, n. 3, setembro de 1998; RODRIGUES, A.C.T.; Karl Jaspers e a abordagem fenomenológica em psicopatologia, Rev  Latinoam. Psicopat. Fund., VIII, 4, 754-768

[19] FÉDIDA, P.; De uma psicopatologia geral a uma psicopatologia fundamental. Nota sobre a noção de paradigma, Rev. Latinoam. de Psicopatologia Fundamental v. 1, n. 3, setembro de 1998
[20] CAMPAILLA, 1982, Cap. III, p. 5-15
[21] RODRIGUES, A.C.T.; Karl Jaspers e a abordagem fenomenológica em psicopatologia, Rev  Latinoam. Psicopat. Fund., VIII, 4, 754-768

[22] Cf. PAIM, 1977, p. 78-82
[23] Ibidem, p. 82-83
[24] De pródromo, ou seja, os sinais que indicam a irrupção futura da doença.
[25] Parte mais exterior do cérebro. Cf. CROCE, CROCE JR, 1994, p. 64.
[26]“Cenestesia: sentimento vago da existência sem o auxílio dos sentidos; sensibilidade” (CROCE, CROCE JR, 1994, p. 46)
[27]Cf. MOREL, B.-A., Tratado das degenerescências na espécie humana Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., São Paulo, v. 11, n. 3, p. 497-501, setembro 2008; CAPONI, S.; Para uma genealogia de la anormalidad: la teoria de la degeneración de Morel,  Scientle Studiae, SP, v. 7, no. 3, pgs. 425-45, 2009; PEREIRA, M.E.C., Morel e a questão da degenerescência, Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., São Paulo, v. 11, n. 3, p. 490-496, setembro 2008

[28] Demência precoce com tendência ao isolamento
[29] Demência precoce com alternância entre motricidade e isolamento
[30] A filosofia contribuiu bastante para a psiquiatria, especialmente para a corrente analítico-existencial, cujos principais procedimentos passam pela investigação e compreensão da vida do paciente (distinto de explicação), para mostrar onde o paciente falhou no exercício de sua liberdade e fazendo com que ele experimente-a de maneira radical. Já a teoria da comunicação, baseada nos trabalhos de Bateson (1953), buscava explicar a esquizofrenia a partir do estudo das formas de comunicação e relação afetiva nas famílias dos enfermos, mostrando como paradoxos nestas podem levar ao desate de comportamentos esquizofrênicos futuros. Para a psiquiatria que se apóia tanto na teoria geral dos sistemas quanto na cibernética, o organismo é um sistema de processos em interação e não de funções somadas; defendem os adeptos destas idéias que uma alteração na personalidade é total e não funcional, tese completamente oposta a vários compêndios de psicopatologia, que estruturam-se sob a égide função-afecção. A lingüística seja aquela reinterpretada por Lacan a partir da psicanálise seja em si, contribui para a psiquiatria na medida em que oferece elementos para a análise da fala, inclusive a dos enfermos. Cf. GRANDINO, NOGUEIRA, 1985; CAMPAILLA,1982.

[31] Dos quais já tratamos mais acima.
[32] Szasz defende a inexistência da doença mental, bem como de seu substrato orgânico, com raras exceções laboratorialmente comprováveis.
[33] AMARANTE, P. Uma aventura no manicômio: a trajetória de Franco Basaglia in História, Ciências, Saúde — Manguinhos, I(1), pp. 61-67, jul-out., 1994
[34] Conforme relata FREUD, S.; A história do movimento psicanalítico, SP: Abril Cultural, 1978, p. 44. “Nestes casos parecidos, é sempre a coisa genital, sempre, sempre”. Freud teria se espantado ao ouvir isto da boca de Charcot.
[35] Patologia pode tanto se referir a uma disciplina médica que estuda as afecções quanto ser um sinônimo de fenômeno mórbido, seja psicológico seja fisiológico. Quando utilizarmos o termo no primeiro sentido, ele virá em itálico.
[36] JANET, P.; O automatismo psicológico. Ensaio de psicologia experimental sobre as formas inferiores da atividade humana, Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., São Paulo, v. 11, n. 2, p. 310-314, junho 2008 e PEREIRA, M.E.C.; Pierre Janet e os atos psíquicos inconscientes revelados pelo automatismo psíquico das histéricas, Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., São Paulo, v. 11, n. 2, p. 301-309, junho 2008
[38] BINSWANGER, L.; Sobre a psicoterapia, Rev. Latinoam. Psicop. Fund. IV, 1, 143-166 e PEREIRA, M.E.C.; Sobre os fundamentos da psicoterapia de base analítico-existencial, segundo Ludwig Binswanger, Rev. Latinoam. Psicop. Fund. IV, 1, 137-142
[39] JASPERS, K.; A abordagem fenomenológica em psicopatologia, Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., VIII, 4, 769-787 e RODRIGUES, A.C.T.; Karl Jaspers e a abordagem fenomenológica em psicopatologia, Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., VIII, 4, 754-768


[40] A História da loucura é um livro sui generis, seja em relação aos escritos passados e futuros de Foucault, seja em relação ao que se produzira até então acerca da loucura. Sem dúvida nela encontramos uma análise que liga a formação do mundo psiquiátrico do século XIX com a sociedade de então, e todas as forças em luta. Contudo, Foucault dá ênfase excessiva à questão das mentalidades. Poderíamos chamar o livro de História das mentalidades sobre a loucura na Idade Clássica, sem que, com isto, tivéssemos que alterar uma única linha do livro de Foucault.


[42] (...) “a lettre de cachet não era uma lei ou decreto, mas uma ordem do rei que concernia a uma pessoa, individualmente, obrigando-a a fazer alguma coisa. Podia obrigar alguém até mesmo a casar-se por uma lettre de cachet. Na maiori das vezes, porém, ela era um instrumento de punição” (FOUCAULT, 2005b, p. 95)

[44] Cf. FOUCAULT, 2008
[45] Ministro de Luis XIV e teórico do mercantilismo
[46] Foucault elaborará o tema da Aliança sobretudo na História da sexualidade I: a vontade de saber, RJ: Graal,
[47] No curso de 1973-74, O poder psiquiátrico, Foucault elabora uma pequena história das tecnologias políticas da verdade. A partir de uma exposição acerca da anamnese e do interrogatório clínico, técnicas psiquiátricas, Foucault distingue duas grandes técnicas de obtenção da verdade: verdade-acontecimento e verdade-demonstração. A primeira é muito antiga e parte de um entendimento da verdade como não-universal, e dependente da ocasião para aparecer; disto, alguns operadores especiais que a incitassem, a fizessem sair da toca. A segunda, que não nos interessa no momento, parte de uma verdade universal, que necessita de alguns instrumentos, da ratio correta para ser adquirida; ela é como que um direito universal do sujeito, e teve nas técnicas de inquérito seu grande trunfo, do qual resultou a ciência moderna.
                    A verdade-acontecimento foi central para a medicina por muitos séculos. Pautava-se então, na noção de crise como nodal, como o referencial teórico-prático da operacionalidade médica. Ela era identificada como o momento no qual a essência da doença se manifesta, cabendo, pois ao médico, mostrar sua força contra a crise ao manipular, ao gerir as forças da natureza contra a morbidez. A crise não pode ser gerada; o médico deve estar atento para saber quando ela eclodirá para somente então, já preparado, intervir no curso dos fatos.

[48] Já explicaremos a quantas andava a medicina dos nervos e dos humores nestes tempos de internamento.
[49] TUBINO, P.; Medicina na Grécia antiga, UnB: 2009 e também PEREIRA, M.E.C.; Cullen e a introdução do termo “neurose” na medicina, Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., São Paulo, v. 13, n. 1, p. 128-134, março 2010

[50] SAURI, J.J.; A construção do conceito de neurose (I). os vapores e os nervos, Rev Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, VIII, nº, 73-85

[51] Ibidem, p. 76 e TUBINO, ibidem
[52] Casamentos ajeitados, geralmente mais por questões ou políticas, ou econômicas, muitas vezes pelos dois.
[53] FOUCAULT, 2007c, p. 273-276
[54] SAURI, J.J; A construção do conceito de neurose (II). Nosologia e neurose, Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., VIII, 2, 289-302

[55] Membrana que envolve o cérebro. Cf CROCE, CROCE JR, 1994, p. 83
[56] Falta de tensão das fibras. Cf CROCE, CROCE JR, 1994 p. 25
[57] Excesso de tensão
[58] PEREIRA, M.E.C.; Cullen e a introdução do termo “neurose” na medicina, Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., São Paulo, v. 13, n. 1, p. 128-134, março 2010

[59] Ambos foram fartamente expostos por Foucault em inúmeras oportunidades. Ressaltamos vp, avfj
[61] Cf. FOUCAULT, O poder psiquiátrico, SP: Martins Fontes, 2006

[62] PEREIRA, M.E.C.; Pinel – a mania, o tratamento moral e os inícios da psiquiatria contemporânea, Rev Latinoa. de Psicop. Fund., VII, 3, 113-6




Nenhum comentário:

Postar um comentário