O Iluminismo prometeu um novo homem, a maioridade do homem, que, livre do
obscurantismo e das pressões religiosas, dos abusos dos tiranos, pudesse
refletir e agir autonomamente, despregando-se das particularidades dos
diferentes coletivos pudesse enxergar a universalidade das aspirações do homem
enquanto ser genérico O sujeito prometido pelo Iluminismo seria aquele
autônomo, emancipado, ativo, capaz de refletir sobre seu cotidiano, entendê-lo
e transformá-lo. Do mesmo modo, sua expressão política por excelência, a
Revolução francesa de 1789, prometeu aos homens igualdade, liberdade e
fraternidade.
Em outros termos podemos dizer que o
Iluminismo prometia a todos os homens o acesso a Bildung, a cultura, a formação
cultural, que deveria levar à emancipação, pois seu caráter fundamental é de
gerar sujeitos livres e a autonomia. Visando seus fins, a Bildung teria dois
aspectos dialéticos os mais fundamentais, a emancipação do sujeito, visando tornar-lhe
apto a resistir, e a adaptação ao mundo, pois, caso contrário, torna-se mentira
alienada das condições de vida.
Os séculos XIX E XX viram as
promessas do Iluminismo desfazerem-se
no pó — seja aquele das fábricas com suas precárias condições de
trabalho, seja aquele dos ossos reduzidos a migalhas dos homens, destruídos
pela guerra, pelas barbáries e, ainda, o dos produtos econômicos desfeitos pela
sanha belicosa dos capitalistas e dos burocratas, bem como o dos homens,
reduzidos a bestas fragmentárias no mundo das imagens dominante, das mentiras
institucionalizadas e das violências xenofóbicas. Em suma, tudo que o
Iluminismo prometeu, não só não se cumpriu, como resultou no contrário do
prometido.
As lutas operárias tornaram
realidade diversas conquistas, mas, as classes dominantes continuaram a negar
aos trabalhadores a oportunidade da Bildung; o projeto Iluminista, projeto
filosófico da burguesia nascente, nunca se realizou, pois, mesmo diante da
fúria popular contra as elites, estas conseguiram fazer com que parecesse que
lhes ofereciam a Bildung, a formação cultual, por meio da semi-formação ou
Halbbildung, em alemão. O tempo livre dos trabalhadores conquista direta de
suas lutas, é ocupado integralmente pela indústria cultural, que, a pretexto de
divertir por meio da arte, ocupa integralmente o espaço destinado ao ócio.
A semi-formação e/ou semicultura ou,
ainda, semi-saber, é fruto direto da indústria cultural. Esta é o meio pelo
qual a burguesia diretamente priva os trabalhadores da reflexão, da
constituição de uma experiência, Erfharung, em nome da mera vivência, Erlebnis.
Da contradição entre a sociedade de consumo do capitalismo tardio e a promessa
iluminista de Bildung da aurora do capitalismo liberal, surge a semicultura; ao
contrário do que poder-se-ia imaginar a semi-cultura não é meio passo dado rumo
a cultura completa, cultura integral; diante da semi-cultura, é preferível a
não-cultura o não-saber, pois “no não saber há uma predisposição do homem para
a busca do saber. Sócrates colocava no auto-reconhecimento da ignorância o
inicio do filosofar. No semi-saber a pessoas se julga sabedora e se fecha às
possibilidades da sabedoria” (PUCCI, 1998, p. 96).
A diferença a mais fundamental entre
Erfharung e Erlebnis reside no fato de que aquela é fruto da Bildung, e esta da
Halbbildung. A Erfharung permite a constituição da subjetividade tal qual
pensava o Iluminismo, isto é, constituição do conceito derivado da experiência;
a memória, neste caso, mediaria a relação experiência-consciência com vistas a
constituição de uma tradição no sujeito — esta tradição é a própria
subjetividade. A Erlebnis, por sua vez, reduz as experiências à informações
fragmentárias e desconexas, o que impede a criação da tradição, da
subjetividade, e prejudica a memória; por outro lado, reduz todo o conceito a
clichês fáceis que isolam, conformam e docilizam o sujeito, o que impede
qualquer construção dialética neste; deve-se ressaltar na Erlebnis seu aspecto
fragmentário, e já veremos o motivo.
O projeto emancipatório do
Iluminismo não enfrenta as dificuldades advindas somente da realidade material,
que o nega inteiramente, mas, também, o de outra tendência na abordagem da
cultura e na proposição de meio para lidar com ela; tal tendência confunde-se
em muitos rótulos, seja o do anti-universalismo, seja o do irracionalismo,
havendo, contundo, um aspecto comum que a caracteriza enquanto corrente: a
negação de valores, princípios éticos ou meios de comparação universais,
portanto, o anti-universalismo, ou, se preferirmos, o relativismo.
Esta concepção iguala não somente as
culturas de povos diferentes, mas, também, de comunidades, classes, tribos
(urbanas ou não) no interior das nações; em suma, isola cada homem no interior
do grupo em que vive ou que nasceu, descartando qualquer possibilidade de
emancipação ou de trocas universais. Para os antiuniversalistas, a cultura
popular deve ser mantida em sua especificidade, separada da alta cultura,
aquela dos intelectuais; chega-se ao cúmulo, como aponta Rouanet, raivoso, de
defender a especificidade lingüística das classes populares, que, dado o
reduzido repertório, diminui não só a capacidade de interação social como a de
pensamento, portanto, de transformação do próprio meio; como se a teoria não
devesse estar na vida, como se a alta cultura não guardasse um projeto
universalista de libertação universal, que promete a reconciliação das classes;
como, se por trás das diferenças culturais, frutos da pura contingência (embora
determinadas pelas condições materiais), os homens não guardassem necessidades
bio-psíquicas similares, genéricas: universais. Assim é que podemos dizer que o
anti-universalismo é, ou guarda em si, defensor do status quo; além disso, com seu hermetismo cultural e com seu
antiinlectualismo, podemos vislumbrar nele os fundamentos do horror fascista.
Dividir para conquistar é o mote do imperialismo desde há muito, e os
relativistas quer saibam ou não, o defendem, terminando por defender a ordem
vigente.
O relativismo, além disso, conforme
já indicado, pode dar origem ao fascismo, a barbárie De fato, as bases
filosóficas do relativismo — Nietzsche, Bergson, o romantismo alemão — eram
reivindicadas pelos fascistas e nazistas. É que, com sua defesa das diferenças
contra qualquer projeto universalista de emancipação do homem enquanto ser
genérico, o relativismo fecha os homens e as comunidades sobre si; o isolamento
cultural, a não-troca, fermenta o chauvinismo, a soberba, é a base sobre a qual
se assenta a xenofobia. De outro lado, como a própria civilização gera o
anticivilizatório, e, tendo em vista que o Iluminismo, que prometeu a Bildung
aos homens, que prometeu a liberdade e a igualdade, e deu-lhes, no lugar disso
a Halbbildung, a indústria cultural, a claustrofobia do mundo tecnificado e
planificado contemporâneo, das relações humanas tornadas frias, da falta da
capacidade de amar, o resultado facilmente pode descambar no irracional, no
ódio aquilo que o permite, no ódio á civilização.
A diferença entre a abordagem
relativista e universalista, é, no fundo uma questão filosófica referente a
natureza da razão. Os relativistas a tomam enquanto faculdade cognitiva, por
meio da qual se dá o pensamento, i.é., tomam a razão como razão subjetiva;
deste modo, não conseguem conceber que nenhuma coisa do mundo seja racional por
si, mas, que racionalidade depende de um sujeito racional; dizer da “razão” de
algo significa dizer de seus fins, que se equivalem entre si. Doutro lado
existe aquela que se chama razão objetiva, sobre a qual todos os grandes
sistemas filosóficos se pautaram; esta concepção toma a razão não somente como
capacidade individual de reflexão e cognição, mas, também, como existente no
mundo e na sociedade, como principio explicativo universal da totalidade,
objetivo, presente nas coisas; assim é que seria possível medir, tomando como
parâmetro essa racionalidade do mundo, se algo é mais ou menor racional, sendo
até mesmo desejável a constituição de uma hierarquia que vai do mais ao menos
racional.
O relativismo dividindo os homens em
segmentos isolados os torna ferozes contra si próprios. Dividindo os homens,
divide seu conhecimento sobre o mundo, em ciências ou em conhecimentos
distintos; ora, ao passo que as diversas culturas e civilizações guardaram
promessas, a ciência ocidental tem realizações; não que ela deva substituir as
religiões, mas ela melhora a vida dos homens, libera-o dos trabalhos mais
pesados, aumenta-lhes a vida e a inteligência, permitindo com que os homens
possam dedicar-se Bildung. Ao menos esta era a promessa do Iluminismo, que
cumpre recuperar contra os relativistas.
Bibliografia
ADORNO, Theodor
W.; Educação após Auschwitz in Educação e emancipação, Paz e Terra,
RJ-RJ
BUENO, Sinésio
F., Sobre cultura de elite, cultura
popular e emancipação
HORKEIMER, Max; Eclipse da razão, Centauro
PUCCI, Bruno; A teoria da semicultura e suas contribuições
para a teoria crítica da educação in A
educação danificada, Vozes/Edufscar, Petróopólis-RJ/São Carlos-SP, 1998
ROUANET, Sérgio
P.; O novo irracionalismo brasileiro
in As razões do Iluminismo
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