quarta-feira, 12 de junho de 2019

Sobre Iluminismo e contemporaneidade (2008)


O Iluminismo prometeu um novo homem, a maioridade do homem, que, livre do obscurantismo e das pressões religiosas, dos abusos dos tiranos, pudesse refletir e agir autonomamente, despregando-se das particularidades dos diferentes coletivos pudesse enxergar a universalidade das aspirações do homem enquanto ser genérico O sujeito prometido pelo Iluminismo seria aquele autônomo, emancipado, ativo, capaz de refletir sobre seu cotidiano, entendê-lo e transformá-lo. Do mesmo modo, sua expressão política por excelência, a Revolução francesa de 1789, prometeu aos homens igualdade, liberdade e fraternidade.

            Em outros termos podemos dizer que o Iluminismo prometia a todos os homens o acesso a Bildung, a cultura, a formação cultural, que deveria levar à emancipação, pois seu caráter fundamental é de gerar sujeitos livres e a autonomia. Visando seus fins, a Bildung teria dois aspectos dialéticos os mais fundamentais, a emancipação do sujeito, visando tornar-lhe apto a resistir, e a adaptação ao mundo, pois, caso contrário, torna-se mentira alienada das condições de vida.

            Os séculos XIX E XX viram as promessas do Iluminismo desfazerem-se  no pó — seja aquele das fábricas com suas precárias condições de trabalho, seja aquele dos ossos reduzidos a migalhas dos homens, destruídos pela guerra, pelas barbáries e, ainda, o dos produtos econômicos desfeitos pela sanha belicosa dos capitalistas e dos burocratas, bem como o dos homens, reduzidos a bestas fragmentárias no mundo das imagens dominante, das mentiras institucionalizadas e das violências xenofóbicas. Em suma, tudo que o Iluminismo prometeu, não só não se cumpriu, como resultou no contrário do prometido.

            As lutas operárias tornaram realidade diversas conquistas, mas, as classes dominantes continuaram a negar aos trabalhadores a oportunidade da Bildung; o projeto Iluminista, projeto filosófico da burguesia nascente, nunca se realizou, pois, mesmo diante da fúria popular contra as elites, estas conseguiram fazer com que parecesse que lhes ofereciam a Bildung, a formação cultual, por meio da semi-formação ou Halbbildung, em alemão. O tempo livre dos trabalhadores conquista direta de suas lutas, é ocupado integralmente pela indústria cultural, que, a pretexto de divertir por meio da arte, ocupa integralmente o espaço destinado ao ócio.

            A semi-formação e/ou semicultura ou, ainda, semi-saber, é fruto direto da indústria cultural. Esta é o meio pelo qual a burguesia diretamente priva os trabalhadores da reflexão, da constituição de uma experiência, Erfharung, em nome da mera vivência, Erlebnis. Da contradição entre a sociedade de consumo do capitalismo tardio e a promessa iluminista de Bildung da aurora do capitalismo liberal, surge a semicultura; ao contrário do que poder-se-ia imaginar a semi-cultura não é meio passo dado rumo a cultura completa, cultura integral; diante da semi-cultura, é preferível a não-cultura o não-saber, pois “no não saber há uma predisposição do homem para a busca do saber. Sócrates colocava no auto-reconhecimento da ignorância o inicio do filosofar. No semi-saber a pessoas se julga sabedora e se fecha às possibilidades da sabedoria” (PUCCI, 1998, p. 96).

            A diferença a mais fundamental entre Erfharung e Erlebnis reside no fato de que aquela é fruto da Bildung, e esta da Halbbildung. A Erfharung permite a constituição da subjetividade tal qual pensava o Iluminismo, isto é, constituição do conceito derivado da experiência; a memória, neste caso, mediaria a relação experiência-consciência com vistas a constituição de uma tradição no sujeito — esta tradição é a própria subjetividade. A Erlebnis, por sua vez, reduz as experiências à informações fragmentárias e desconexas, o que impede a criação da tradição, da subjetividade, e prejudica a memória; por outro lado, reduz todo o conceito a clichês fáceis que isolam, conformam e docilizam o sujeito, o que impede qualquer construção dialética neste; deve-se ressaltar na Erlebnis seu aspecto fragmentário, e já veremos o motivo.

            O projeto emancipatório do Iluminismo não enfrenta as dificuldades advindas somente da realidade material, que o nega inteiramente, mas, também, o de outra tendência na abordagem da cultura e na proposição de meio para lidar com ela; tal tendência confunde-se em muitos rótulos, seja o do anti-universalismo, seja o do irracionalismo, havendo, contundo, um aspecto comum que a caracteriza enquanto corrente: a negação de valores, princípios éticos ou meios de comparação universais, portanto, o anti-universalismo, ou, se preferirmos, o relativismo. 

            Esta concepção iguala não somente as culturas de povos diferentes, mas, também, de comunidades, classes, tribos (urbanas ou não) no interior das nações; em suma, isola cada homem no interior do grupo em que vive ou que nasceu, descartando qualquer possibilidade de emancipação ou de trocas universais. Para os antiuniversalistas, a cultura popular deve ser mantida em sua especificidade, separada da alta cultura, aquela dos intelectuais; chega-se ao cúmulo, como aponta Rouanet, raivoso, de defender a especificidade lingüística das classes populares, que, dado o reduzido repertório, diminui não só a capacidade de interação social como a de pensamento, portanto, de transformação do próprio meio; como se a teoria não devesse estar na vida, como se a alta cultura não guardasse um projeto universalista de libertação universal, que promete a reconciliação das classes; como, se por trás das diferenças culturais, frutos da pura contingência (embora determinadas pelas condições materiais), os homens não guardassem necessidades bio-psíquicas similares, genéricas: universais. Assim é que podemos dizer que o anti-universalismo é, ou guarda em si, defensor do status quo; além disso, com seu hermetismo cultural e com seu antiinlectualismo, podemos vislumbrar nele os fundamentos do horror fascista. Dividir para conquistar é o mote do imperialismo desde há muito, e os relativistas quer saibam ou não, o defendem, terminando por defender a ordem vigente.

            O relativismo, além disso, conforme já indicado, pode dar origem ao fascismo, a barbárie De fato, as bases filosóficas do relativismo — Nietzsche, Bergson, o romantismo alemão — eram reivindicadas pelos fascistas e nazistas. É que, com sua defesa das diferenças contra qualquer projeto universalista de emancipação do homem enquanto ser genérico, o relativismo fecha os homens e as comunidades sobre si; o isolamento cultural, a não-troca, fermenta o chauvinismo, a soberba, é a base sobre a qual se assenta a xenofobia. De outro lado, como a própria civilização gera o anticivilizatório, e, tendo em vista que o Iluminismo, que prometeu a Bildung aos homens, que prometeu a liberdade e a igualdade, e deu-lhes, no lugar disso a Halbbildung, a indústria cultural, a claustrofobia do mundo tecnificado e planificado contemporâneo, das relações humanas tornadas frias, da falta da capacidade de amar, o resultado facilmente pode descambar no irracional, no ódio aquilo que o permite, no ódio á civilização.

            A diferença entre a abordagem relativista e universalista, é, no fundo uma questão filosófica referente a natureza da razão. Os relativistas a tomam enquanto faculdade cognitiva, por meio da qual se dá o pensamento, i.é., tomam a razão como razão subjetiva; deste modo, não conseguem conceber que nenhuma coisa do mundo seja racional por si, mas, que racionalidade depende de um sujeito racional; dizer da “razão” de algo significa dizer de seus fins, que se equivalem entre si. Doutro lado existe aquela que se chama razão objetiva, sobre a qual todos os grandes sistemas filosóficos se pautaram; esta concepção toma a razão não somente como capacidade individual de reflexão e cognição, mas, também, como existente no mundo e na sociedade, como principio explicativo universal da totalidade, objetivo, presente nas coisas; assim é que seria possível medir, tomando como parâmetro essa racionalidade do mundo, se algo é mais ou menor racional, sendo até mesmo desejável a constituição de uma hierarquia que vai do mais ao menos racional.

            O relativismo dividindo os homens em segmentos isolados os torna ferozes contra si próprios. Dividindo os homens, divide seu conhecimento sobre o mundo, em ciências ou em conhecimentos distintos; ora, ao passo que as diversas culturas e civilizações guardaram promessas, a ciência ocidental tem realizações; não que ela deva substituir as religiões, mas ela melhora a vida dos homens, libera-o dos trabalhos mais pesados, aumenta-lhes a vida e a inteligência, permitindo com que os homens possam dedicar-se Bildung. Ao menos esta era a promessa do Iluminismo, que cumpre recuperar contra os relativistas.

Bibliografia

ADORNO, Theodor W.; Educação após Auschwitz in Educação e emancipação, Paz e Terra, RJ-RJ
BUENO, Sinésio F., Sobre cultura de elite, cultura popular e emancipação
HORKEIMER, Max; Eclipse da razão, Centauro
PUCCI, Bruno; A teoria da semicultura e suas contribuições para a teoria crítica da educação in A educação danificada, Vozes/Edufscar, Petróopólis-RJ/São Carlos-SP, 1998
ROUANET, Sérgio P.; O novo irracionalismo brasileiro in As razões do Iluminismo

Nenhum comentário:

Postar um comentário